Muito se debate nos dias atuais sobre a possibilidade de o Superior Tribunal de Justiça (STF) decidir pela taxatividade do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é utilizado pelas seguradoras de saúde como parâmetro para o fornecimento ou não de tratamentos médicos.
O STJ está se debruçando sobre um caso que promete pacificar o entendimento acerca do que as seguradoras são ou não obrigadas a fornecer aos seus segurados, a título de tratamentos prescritos por profissionais médicos. O STJ precisará definir que o rol de procedimentos da ANS tem um perfil taxativo ou exemplificativo.
Caso o STJ entenda que se o rol de procedimentos da ANS tem um perfil taxativo, isso significa dizer que as seguradoras estão obrigadas a fornecer apenas os tratamentos que estão previstos nessa lista que, como é de conhecimento de muitos, é defasada e sofre com inúmeras dificuldades para ser atualizada. Qualquer tratamento fora dessa lista poderia ser negado pela seguradora, e o cidadão teria enormes dificuldades para obter decisões judiciais que lhe garantisse qualquer direito.
Por sua vez, caso o STJ entenda que se o rol de procedimentos da ANS tem um perfil exemplificativo, fica como já é hoje: a seguradora está obrigada a fornecer os tratamentos previstos na lista, mas o cidadão pode recorrer ao Poder Judiciário no caso em que haja qualquer negativa, com a confiança de que, havendo previsão médica, são boas as chances dele ter concedida uma decisão que lhe garanta o tratamento.
Esse julgamento no STJ é muito importante para a sociedade, e está em jogo a continuidade do acesso a tratamentos e procedimentos para, aproximadamente, 50 milhões de usuários de planos de saúde. Alterar-se o formato atual, sob a alegação de que a exemplificidade do rol da ANS causaria prejuízos financeiros irremediáveis às operadoras, é um enorme desrespeito à sociedade, ainda mais se observamos que, atualmente, estas empresas possuem lucros exorbitantes, mesmo já submetidas a decisões judiciais que as obrigam a fornecer tratamentos e procedimentos que, originariamente, negam aos seus clientes.
O fato é que mudar a natureza exemplificativa do rol da ANS significaria, na verdade, incentivar um aumento exponencial na negação de cobertura das operadoras, além de impedir que o cidadão tenha acesso ao Poder Judiciário para garantir o respeito ao seu direito à saúde. Qualquer tratamento ou procedimento não listado no rol poderia ser imediatamente rejeitado pela seguradora, mesmo que seja clinicamente indicado e comprovadamente eficaz.
O rol da ANS, que já é desatualizado, sofreria muito mais com a inoperância e a indiferença dos órgãos de controle, que se aliam aos interesses das grandes corporações, em detrimento aos usuários.
No julgamento do STJ, o ministro-relator Luis Felipe Salomão proferiu voto no sentido de reconhecer a taxatividade do rol, prevendo exceções limitadíssimas. Fazendo um contraponto, a ministra Nancy Andrighi se colocou na defesa da exemplificidade do rol da ANS, e valeu-se de princípios e garantias da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Planos de Saúde para defender a ideia de que a ANS - favorável ao rol taxativo - não teria a prerrogativa de limitar o alcance das coberturas, quando a própria lei que regula o setor não o faz. Em seu voto, a ministra assim se posicionou:
O rol é uma relevante garantia enquanto instrumento de orientação, mas não pode representar a delimitação taxativa da cobertura assistencial, alijando o consumidor de se beneficiar de todos os procedimentos em saúde que se façam necessários para seu tratamento. (...) A taxatividade esvazia a razão de ser do plano de referência, que é garantir ao usuário tratamento efetivo a todas as doenças.
Nancy Andrighi sustentou que o rol exemplificativo, tal como já é interpretado majoritariamente pelo Poder Judiciário, tem o condão de proteger o consumidor de uma sanha predatória das seguradoras, e chegou a questionar, com base em dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e da própria ANS, a ideia de que a manutenção do atual modelo encareceria as mensalidades.
Ao temer o risco de elevação exponencial do preço das mensalidades a partir do reconhecimento da natureza exemplificativa do rol, a ANS incorre em um sofisma. Essa afirmação não condiz com as informações disponibilizadas no portal eletrônico da própria Agência quanto às receitas e despesas das operadoras. (...) Dadas as circunstâncias, uma eventual elevação exponencial do preço não teria outra finalidade a não ser a de aumentar a lucratividade das operadoras, onerando injustificadamente o consumidor.
O julgamento foi paralisado, mas em breve será retomado, e a sociedade precisa estar atenta. O fato é que o rol da ANS é notoriamente defasado, e não acompanha a evolução da Medicina. Muitos são os tratamentos reconhecidos pela sociedade científica e já praticado em vários locais, mas que não estão previstos nesta lista.
E limitar o acesso do segurado apenas ao que nela consta ocasionará em sérios prejuízos à assistência em saúde. O julgamento favorável a uma interpretação taxativa do rol de procedimentos implica dizer que a saúde dos beneficiários ficaria em segundo plano, em detrimento ao lucro das operadoras de planos de saúde.
Cabe ressaltar que não cabe às operadoras de planos de saúde o julgamento sobre qual seria o melhor tratamento de doenças, sob o risco de se usurpar a própria autonomia do médico responsável e se intrometer na relação médico-paciente.
Caso o STJ dê ganho de causa aos planos de saúde e o rol da ANS se torne taxativo, será um prejuízo muito grande ao direito à saúde da população. Pacientes diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA), doenças raras e graves, por exemplo, seriam diretamente afetadas, e exames importantíssimos, como o PET SCAN (para diagnóstico de câncer), terapia ABA (para autismo), hidroterapia, imunoterapia, entre outros, poderiam ser negados pelas seguradoras, por não constarem do rol da ANS.
Hoje, com o entendimento de que a lista é exemplificativa, qualquer decisão de seguradora que negue algum tratamento ou cobertura de medicamento autorizado pela Anvisa e prescrito por médico representa um abuso, ainda que não haja previsão no rol da ANS.
A Constituição Federal impôs ao Estado o dever de garantir a cobertura de saúde da população, assegurando ao cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e sua recuperação (art. 196), classificando as ações e serviços de saúde como de relevância pública (art. 197) e, finalmente, dispondo a respeito da possibilidade de sua execução diretamente pelo Poder Público ou, sob sua fiscalização e controle, pela iniciativa privada.
Já a Lei nº 9.656/98, que regulamenta o setor de planos de saúde, é clara ao definir no seu art. 10 que a cobertura oferecida será estendida a todas as doenças previstas na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde - listadas na CID-10. Sendo assim, se o contrato entre o plano e o cidadão prevê a cobertura para aquela doença, por óbvio, se espera que todo o tratamento também esteja incluído, e que deva ser custeado pela seguradora.
Ademais, se observarmos o Código de Defesa do Consumidor (CDC), em especial nos art. 51, inc. IV c/c o § 1º desse mesmo artigo, veremos que qualquer restrição imposta deve ser tida por nula e imediatamente afastada, uma vez que se deve preservar o direito à saúde, que é o mais necessário de todos. E isso fica evidente, uma vez que qualquer condição restritiva implicaria em se suprimir procedimentos que podem ser os mais adequados ao controle da enfermidade e até para salvar uma vida, desvirtuando-se o próprio objetivo do contrato de prestação de serviço de saúde.
Portanto, é claro que os planos de saúde têm o dever de atender aos seus segurados da melhor forma possível, e que não deveriam (ou não poderiam) negar o fornecimento de procedimentos, com base em alegações burocráticas como falta de previsão no rol da ANS. O direito à saúde deveria ser o principal a ser tutelado nesta relação!
Firmar um entendimento no sentido da taxatividade se mostra inconstitucional e até irracional, e adota uma interpretação desvirtuada da legislação consumerista, servindo apenas para proteger econômica e financeiramente as empresas de planos de saúde, em detrimento das garantias constitucionais dos segurados.
É certo que não cabe às operadoras de planos de saúde e seus advogados, ou à própria ANS, limitar a realização de procedimentos, exames ou tratamentos indicados por médico especialista este sim, o único profissional competente. Tampouco estes citados deveriam ter o poder de definir qual seria o tratamento mais adequado para os pacientes. É absurdamente inconstitucional qualquer tentativa de limitação de direitos fundamentais dos segurados.