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A affectio societatis

Agenda 29/06/2022 às 13:30

A affectio societatis é elemento essencial ou apenas característica inicial de determinados contratos sociais? Traduz-se em pressuposto de existência e mantença da sociedade?

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O presente ensaio se destina a apresentar algumas breves reflexões acerca da affectio societatis, importante e clássico instituto [ou conceito] do direito empresarial[1] [2], qual sói ocorrer em determinadas sociedades empresárias.

A affectio societatis - tipo especial marcante de vontade, com vinculação efetiva - tem a ver com boa-fé objetiva [que deveria imperar no direito societário[3]] interna [entre os componentes da pessoa jurídica], e externa [para com clientes, fornecedores, demais contratantes etc.], intenção de união, ajustamento de tais intenções, firme liame afetivo entre os componentes da sociedade, estreita e mútua confiança e lealdade, ajustamento de vontades, visando a união de esforços para a criação de determinado tipo societário.

É uma vontade dirigida [consentimento especial dos contratantes] de forma ativa para a consecução de determinado objeto social, efetiva junção de esforços visando o bem comum da entidade, intenção colaborativa [cooperação] e um elo emocional abstrato e subjetivo entre parceiros comerciais[4], visando a mantença de agente econômico estável e o lucro [inexiste sociedade empresária sem visar o lucro] decorrente da atividade desenvolvida no mercado. Rubens Requião disserta:

Podemos, portanto, fixar na confiança mútua, ou na mútua estima, como diz Thaller, o elo fundamental que se encontra nas raízes históricas e naturais das sociedades mercantis, que nelas se aferra como elemento imprescindível e intrínseco.

Esse elemento, convém repetir, é natural e essencial. Sem ele a sociedade não pode constituir-se. Ulpiano batizara esse elo afetivo pela expressão universalmente consagrada que com perfeição o traduz - affectio societatis[5]

Duas questões guardam relevância no presente texto e é sobre ela que se passa a tratar.

A primeira diz respeito a uma importante indagação. A affectio societatis é elemento essencial - núcleo fundamental -, necessário [requisito de existência] ou apenas e tão somente característica inicial de determinados contratos sociais? Traduz-se, em outras palavras, em pressuposto de existência e mantença da sociedade?

Elemento inicial dá a conotação de requisito indispensável - no plano da validade (Código Civil, art. 104) - do contrato social, o que se não parece, porquanto, em tese, partindo de tal pressuposto, sem a affectio societatis, inexistiria tal avença.

A afirmação não corresponde à realidade, salvo engano, porquanto, de somenos importância da presença da affectio societatis para a constituição da sociedade, de modo que o contrato não é irregular. 

A affectio societatis, salvo entendimento mais abalizado, é apenas uma característica inicial e não elemento essencial do contrato societário.

Dito de outro modo, não se exige tal presença para a validação do ato entre as partes. Importa, outrossim, os elementos contidos no citado art. 104 do Código Civil, além de outros requisitos específicos nele contido, sem descuidar, por exemplo, das regras previstas na Lei 6.404/76.

Esclarece Rubens Requião:

Esse elemento característico do contrato societário é altamente útil na prática da vida comercial para distinguir a sociedade de outros tipos de contrato, que tendem a confundir, aparentemente, com a sociedade de fato ou presumida. O conceito é subjetivo, o elemento é intencional, e se deve perquirir dos reflexos aparentes e exteriores, se a intenção do agente foi de unir seus esforços para obter resultados comuns que isoladamente não seriam tão plenamente conseguidos[6]

A outra questão não menos relevante: a eventual quebra, por assim dizer, da affectio societatis seria motivo plausível, por exemplo, para a dissolução societária  ou mesmo exclusão de sócio.

Em primeiro lugar, para que se busque a exclusão de sócio, há de se configurar a justa causa[7] e a quebra de affectio societatis não está elencada como hipótese.

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As regras dos artigos 1.033, 1.034, 1.044 e 1.087 do Código Civil, por exemplo, não apresentam a quebra de affectio societatis como motivo, por assim dizer, pra fins de dissolução da sociedade. Por mais que se leia e releia tais dispositivos legais deles não se encontra a hipótese de que o rompimento da affectio societatis autoriza a dissolução total da pessoa jurídica.

Além do que, a título argumentativo, considerando a função social do agente econômico [Constituição Federal], a dissolução total da sociedade é hipótese mais afastada, prevalecendo a exclusão de sócio (consoante hipóteses legais que autorizem, imperando a justa causa) ou dissolução parcial.

A quebra de affectio societatis não é adotada na lei civil como justa causa para fins de exclusão de sócio ou mesmo dissolução total da entidade.

Fábio Tokars cita interessante exemplo para ilustrar a questão:

Imagine-se que, numa partida de futebol de final de semana, dois sócios estão jogando em times adversários, e, envolvidos num lance de falta, começa a discutir se houve ou não houve infração. A discussão fica mais e mais acalorada, até o ponto em que ambos partem para as vias de fato, declarando recíproco ódio mortal. Neste caso, é evidente que o desentendimento gerará, temporária ou definitivamente, um sério abalo na vinculação pessoal entre os sócios, afetando a affectio societatis. Neste quadro, poderá o sócio exigir a saída do outro, ante a alegação de quebra da affectio societatis como fundamento à exclusão?  Evidente que não, pois o fato que levou ao efeito do abalo nas relações interpessoais não se configura como justa causa, como conduta irregular que impeça o desenvolvimento da atividade econômica. Se, eventualmente, um dos sócios não aceita mais conviver com o outro, deve o ofendido solicitar o seu próprio afastamento da sociedade, e não o agora inimigo[8]

A desinteligência (discussão em partida de futebol) entre sócios não foi considerada em relação a ato omissivo ou comissivo em relação à pessoa jurídica, mas por evento externo. Não haveria qualquer configuração de justa causa no âmbito da entidade.

Portanto, salvo engano, a affectio societatis não é elemento, e sim característica inicial em determinadas sociedades e eventual quebra não gera a dissolução societária, porquanto não prevista em lei de regencia.

 

 

 

 


[1] Não será abordada a questão relativa ao intuitus personae, ou seja, especial tipo de vontade existente em determinadas sociedades [notadamente de pessoas, com elos mais fortes - sociedades familiares pode ser um bom exemplo. Por outro lado, uma companhia aberta nunca terá a affectio societatis; em uma sociedade anônima fechada, em tese, pode ser verificada a affectio societatis].

[2] Para bem compreender a extensão e profundidade do tema, recomenda-se a leitura da tese apresentada pelo prof. Rubens Requião para o concurso à Cátedra de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, 1959, intitulada A preservação da sociedade comercial pela exclusão do sócio.

[3] A propósito, a lição de Jair Gevaerd, segundo a qual, o princípio da boa-fé se fez notar com grande ênfase no campo societário. Direito societário: teoria e prática da função. Volume II. Curitiba: Gênesis Editora, 2001, p. 654.

[4] Op. cit., p. 654.

[5] Op. cit., pp. 37-38.  Destaques no original.

[6] Curso de direito comercial. 1º Volume. 14ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1984, p. 282.

[7] Observe-se: arts. 1.004, 1.030 e 1.085 do Código Civil. Deles não consta que a quebra de affectio societatis é motivo para a exclusão de sócio.

[8] Sociedades limitadas. São Paulo: LTr Editora, 2007, p. 364. Grifos no original.

 

 

 

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. A affectio societatis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6937, 29 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98889. Acesso em: 24 nov. 2024.

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