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O protagonismo dos tribunais constitucionais nas democracias e a escalada do autoritarismo no mundo

Agenda 01/08/2022 às 22:30

Os tribunais constitucionais têm sido o farol capaz de oferecer resistência aos avanços do populismo autoritário, como combatentes indeléveis aos arroubos de líderes que buscam tornar o Judiciário um poder servil.

Nos tempos atuais, em que mandatários eleitos diretamente pela escolha popular, disseminam fake news de forma açodada com a finalidade de eivar as eleições, importante consignar que a democracia constitucional foi a doutrina triunfante no último século, tendo extirpado todas as alternativas extremistas, autoritárias e fundamentalistas que se opuseram.

Características como o respeito a soberania popular, eleições livres e periódicas, limitação dos poderes dos governantes, sistema de checks and balances, estado democrático de direito, o respeito aos direitos humanos e as garantias fundamentais, são inerentes ao manto da democracia constitucional.

A rigor, na formulação democrática, deve sempre haver uma Corte ou um Tribunal Constitucional: fortificado, sem amarras e imparcial. Cujo o papel é arbitrar as tensões entre a democracia e o constitucionalismo, sopesando entre a vontade da maioria e o respeito a ordem constitucional[1].

Um dos principais equívocos do senso comum, é pensar que a democracia constitucional pressupõe tão somente a garantia da vontade da maioria. Posto que, a essência de tal acepção, também admite o inverso, na medida em que é a salvaguarda para que essa maioria não cerceie os direitos da minoria[2].

De modo que, em grande parte das nações democráticas, existe, em algum grau, a tensão exercida entre o poder político majoritário e a respectiva Corte Constitucional, que precipuamente, tem a incumbência de interpretar a constituição daquele país.

Portanto, é natural que hajam enfrentamentos ordeiros entre quem exerce o poder político majoritário e quem tem o papel de limitar esse poder, o que deve ser absorvido de maneira institucional e civilizada. Isso, é claro, para aqueles que entendem que não cabe numa democracia o poder concentrado e desenfreado nas mãos de um governante, mesmo que tenha sido eleito massivamente pela população.

Isso não é um vício do regime democrático, mas sim um papel basilar que lhe foi concebido séculos atrás, nas proposições feitas pela obra de Montesquieu. Embora a democracia tenha se sobreposto às demais formulações autoritárias de governo – através das ideias e não instituída pela imposição das armas –, muitos autores identificam que o mundo vive um momento de inúmeros retrocessos democráticos.

Basta observamos os exemplos de países como Rússia, Venezuela e Hungria, para identificar exemplos cristalinos dessa ruptura da ordem democrática, em que líderes eleitos pelo escrutínio popular, desconstroem os pilares da democracia por medidas paliativas e não mais abruptamente por meio de golpes. É possível identificar esse viés mundial, com uma inclinação autoritária e populista.

Historicamente, o constitucionalismo possui como base, dois grandes movimentos, com contextos e antecedentes distintos. O primeiro, advém da Constituição Norte-Americana (1787) e ratificada pelo Bill Of Rights (1789). O segundo, a Constituição Francesa (1791), lastreada pela Revolução que a precedeu (1789), e que incorporou os ideais iluministas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Na proposta europeia havia a prevalência da supremacia do parlamento, sendo que a constituição era um documento político, sem aplicação direta e imediata, e, tampouco, sem controle de constitucionalidade. Já no modelo americano, se sobrepôs o conceito da supremacia da constituição, uma vez que a magna carta era um documento jurídico e de aplicabilidade pelos Tribunais. Se origina daí, o caso Marbury v. Madison, de 1803, marco inicial do Judicial Review exercido pelo Poder Judiciário.

Assim, deram vazão a tipos de constitucionalismo diferentes, sendo que o norte-americano foi o modelo que floresceu com maior intensidade ao redor do mundo, sobretudo, após a derrocada da segunda guerra mundial. Esse cenário foi pautado pelo fato de que, quase todas as democracias do mundo criaram Cortes ou Tribunas Constitucionais, onde o Judiciário também passa a ser um poder político nos regimes dessa ordem.

Portanto, a ascensão do Judiciário vem em paralelo à percepção da sua importância para a mantença do estado de direito e para a preservação da democracia. A judicialização da política é, em ampla medida, uma onda mundial, tanto em questões sociais, éticas, políticas e econômicas, vez que têm a sua derradeira guarida nos Tribunais.

No entanto, é factível apontar, que há uma situação singular no Brasil, em razão do enorme apelo sobre o Supremo Tribunal Federal. Contudo, é fundamental distinguir previamente, dois termos tão em voga atualmente: judicialização e ativismo judicial.

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O primeiro, é consequência da formatação institucional do nosso Poder Judiciário, que permite que tantas questões sejam levadas à apreciação da Corte. Logo, esse conceito apenas faz referência, aos direitos e as ações que a Constituição Federal criou, com a premente finalidade de tutelá-los. Ou seja, a judicialização é um mero fato, a eventualidade de se levar uma matéria ao Judiciário e ver àquele direito tutelado.

Distintamente do que se apregoa no ativismo, pois, esse é uma maneira proativa de interpretar a norma constitucional. No cenário nacional, sem prejuízo algum, é possível afirmar que são atípicos os casos ativismo judicial. O que há, é um protagonismo excessivo do Judiciário, capitaneado pela singela razão de que, múltiplas matérias podem ser alçadas ao Supremo Tribunal Federal.

Notadamente, uma razão para o protagonismo exacerbado do STF, é que a Constituição Federal é um documento prolixo, expansivo, eclético, dirigente, e normativo, que cuida não apenas das questões materialmente constitucionais, como a forma federativa do estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes constituídos e os direitos e garantias individuais – as chamadas cláusulas pétreas[3].

Mas é também é uma carta que aborda incontáveis e importantes outros temas, como a educação, cultura, saúde, segurança pública, sistema tributário e a política ambiental. Portanto, quando o constituinte trouxe essas matérias para a constituição, as retirou do varejo político e as trouxe para o campo jurídico (aquele que diz o direito).

Outra motivação, é a ampla gama de ações diretas dirigidas ao Supremo, em que pese deveria ser uma Corte eminentemente constitucional, com uma competência restrita, debatendo as questões constitucionalmente mais complexas e divisivas do cenário nacional. Sem mencionar uma competência criminal originária extremamente vasta, e um enorme rol de legitimados ativos (muitas vezes com grande envergadura política) para propositura de tais ações.

Desta forma, não é equivocado intuir que a formatação do estado brasileiro permite uma ampla judicialização da vida nacional, com demasiadas celeumas e seus vícios inerentes. Mesmo considerando essa ampla judicialização e o protagonismo do Judiciário, também é verdade deduzir que existem raríssimos casos de ativismo judicial no Brasil, distintamente do que se tenta apregoar pelo senso comum.

Merecem destaque, pela demonstração hialina da sua essencialidade no cenário brasileiro, alguns casos emblemáticos de decisões expansivas da Suprema Corte. A criminalização da homofobia e da transfobia, por exemplo, e a sua equiparação ao crime de racismo[4], tornando-o também crime inafiançável e imprescritível, um marco na luta pela diversidade no país.

Outro caso que revela mais um grande acerto do Supremo, foi a legitimação das uniões afetivas, considerando que sequer havia lei específica sobre o tema, e se levou o princípio da igualdade[5] para dar esteio as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Portanto, o devaneio do senso comum, de que o Judiciário passa a se imiscuir em questões da vida política, através de um excessivo ativismo judicial, não possui respaldo prático, basta ver que as decisões vieram apenas para salvaguardar grupos extremamente vulneráveis da sociedade[6].

O mundo vive atualmente uma onda populista e autoritária, que, inclusive, atingiu as democracias mais consolidadas do mundo, vide o lamentável caso americano, com a utilização das redes sociais para campanhas de ódio, disseminação de desinformações e teorias da conspiração, atingindo o seu grau máximo com o desastre no Capitólio.

Sem mencionar a crise de legitimidade vivida pela Supreme Court americana, ao ser percebida como um ator político contramajoritário[7], mesmo tendo coibido os avanços de um presidente que não aceitou o resultado das eleições – característica muito própria do populismo autoritário, em que quando as regras do jogo não lhe favorecem, goza das liberdades democráticas para vilipendiá-las.

Governos que se valem do binômio populismo-autoritarismo, comumente são hostis aos valores constitucionais, pois defendem o poder apenas para as maiorias políticas. Em contraponto, o constitucionalismo e os valores democráticos, apregoam não apenas o direito da maioria eleger o seu governante, mas que esses valores não suprimam as minorias – medida essa, assegurada em último grau, pelas Cortes Constitucionais, fiadoras das premissas basilares das democracias constitucionais.

Em determinadas partes do mundo, os Tribunais Constitucionais têm sido o farol capaz de oferecer resistência aos avanços do populismo autoritário, como combatentes indeléveis aos arroubos desses líderes, que buscam tornar o Judiciário um poder servil.

As providências desses governantes se iniciam com a nomeação de magistrados submissos e a redução do poder dado as Supremas Cortes, a fim de as colocar a serviço do próprio governo, para inclusive, legitimá-lo através do peso das decisões judiciais.

A gênese desse populismo autoritário no mundo, se deu quando Viktor Orbán ascendeu ao posto de primeiro-ministro da Hungria, no ano de 2010. Solapou aquela Corte, nomeando juízes aliados, reduziu a idade da aposentadoria e suprimiu competências. A Venezuela é o caso latino-americano mais comovente, e que reflete o mesmo modelo autocrático, onde Nicolás Maduro garroteou a Suprema Corte, produzindo o palco de uma das maiores crises humanitárias e de agressão aos direitos humanos.

É possível concluir que os Tribunais Constitucionais podem salvar uma democracia, e para que não se tornem instrumento de autocracias, é necessário que haja sintonia com a sociedade civil organizada, partidos políticos de oposição fortes, uma imprensa livre e sem castrações ideológicas, e apoio institucional do parlamento e das demais instituições de estado.

Mesmo que as democracias no mundo vivam um período de recessão democrática, com uma escalada iminente do populismo autoritário, produto de disfunções da própria democracia, a ascensão do protagonismo dos Tribunais é um fator de proteção para o estado democrático de direito.


[1] A legitimidade da jurisdição constitucional se alicerça na geração de harmonia entre o governo da maioria com a defesa dos direitos fundamentais e a supremacia da constituição (KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 123-124).

[2] A proteção às minorias defronte às maiorias se dará pela função essencial dos direitos e liberdades fundamentais garantidos pelas constituições modernas, que deixam de ser garantidores de proteção dos indivíduos contra o Estado para serem mecanismos de proteção de minoria qualificada contra a maioria absoluta (KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.p. 67-68).

[3] Artigo 60, § 4º, da CF.

[4] Lei n º 7.716/1989.

[5] O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera [...] na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça e classe social. (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 65).

[6] Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a CF quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado. (MORAES, 2002. p. 58).

[7] O choque entre as duas figuras ocorre de forma muito clara quando decisões de uma maioria política afronta direitos fundamentais de grupos minoritárias politicamente. Em razão desse conflito é que se destaca o papel do Judiciário como função que não decide em conformidade com as maiorias, e sim de acordo com o ordenamento constitucional, inclusive adotando posicionamentos contramajoritários. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 2020. p. 475-479).

Sobre o autor
Luis Ricardo Saavedra

Advogado. Assessor de Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP-DF - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (2024). Pós-Graduado em Direito Constitucional pela ABDConst - Academia Brasileira de Direito Constitucional (2023). Graduado em Direito pela Faculdade Cesusc (2020). Pesquisador do GConst/UFSC - Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Perspectivas Contemporâneas da Jurisdição Constitucional do IDP-DF, sob a orientação do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Prof. Dr. Gilmar Ferreira Mendes e do Prof. Dr. Victor Marcel. Membro das Comissões de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da OAB/SC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAAVEDRA, Luis Ricardo. O protagonismo dos tribunais constitucionais nas democracias e a escalada do autoritarismo no mundo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6970, 1 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99283. Acesso em: 22 dez. 2024.

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