Foi recém editado o Decreto nº 11155/2022, o qual contempla particular conteúdo objetivando produzir direto cerceamento de defesa, em relação às pessoas acusadas em processos administrativos disciplinares, no âmbito da Advocacia Pública Federal.
Pelo referido decreto, as decisões punitivas do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral Federal, adotadas em decorrência de poderes delegados, não seriam passíveis de recurso, cabível apenas, por uma vez, o pedido de reconsideração, para a própria autoridade que promoveu o julgamento.
Não demanda muito esforço intelectual perceber que a nova regulamentação é absolutamente inaplicável, na medida em que tenta por meio de simples decreto produzir reforma em normatização supralegal, bem como em lei ordinária.
Nesse sentido, vale destacar que o decreto ocupa posição específica na hierarquia normativa. Conforme a conhecida Pirâmide de Kelsen, os decretos, por serem de menor grau hierárquico, devem obedecer às normas de maior ordem hierárquica, como as leis ordinárias e, evidentemente, as normas supralegais, não podendo lhes alterar o conteúdo ou limitar suas regras.
Importante observar, conforme já detalhei no artigo A fragilidade dos filtros ao exercício do poder punitivo no âmbito administrativo disciplinar, serem as sanções impostas nos processos administrativos disciplinares, manifestações do poder punitivo do Estado, portanto, submetidas aos filtros estruturados no âmbito penal, os quais objetivam reduzir as irracionalidades e estruturar de maneira republicana e democrática o exercício das punições.
Ocorre que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (pacto de San Jose - Costa Rica) é taxativa no artigo 8º, item 2, letra h, ao estabelecer ser direito da pessoa processada recorrer ao menos uma vez para instância superior, conteúdo extensível aos processos administrativos disciplinares, na medida em que, conforme já assinalado, a regras e garantias de contenção do poder punitivo, estruturadas no Direito Penal, lhe são totalmente aplicáveis.
No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 466.343 (J. 03/12/2008), o Pretório Excelso consolidou o entendimento de que a Convenção Americana de Direitos Humanos tem posição hierárquica supralegal, ou seja, está acima de toda legislação, exceção da Constituição Federal.
Nessa toada, a tentativa do Decreto 11155/2022 de impedir qualquer recurso, das punições administrativos disciplinares, para âmbito hierárquico superior, labora em significativa inconvencionalidade, por tentar afastar convenção dotada de caráter supralegal e fixadora do mínimo para ser o Estado brasileiro considerado dotado de compromisso com os direitos humanos, permitindo, assim, dizer, além de sua inaplicabilidade, ser proposta de verdadeiro rebaixamento civilizatório.
Não bastasse, o Decreto nº 11555/2022, volta-se contra a lei nº 9784/99, a qual no artigo 14, § 3º é expressa em dizer serem as decisões proferidas por ato delegado consideradas editadas pelo delegado, prevendo cabimento recursal no artigo 56, conforme já decidiu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do MS 17449/DF.
Assim sendo, a partir da simples hierarquia normativa é bastante evidente não ter o decreto o condão de afastar a disciplina da matéria ofertada pela lei ordinária e, na medida em que a lei nº 9784/99 não restringe o cabimento de recursos, quando diante de punição aplicada a partir de poder delegado, não pode o decreto o fazer, pois, estaria havendo limitação de direitos processuais fixados em lei formal, ou seja, a qual foi objeto de regular processo legislativo constitucional, com apreciação plena pelo Parlamento, por meio de simples decreto.
A hipótese, é de clara ruptura na estrutura tripartite dos poderes, pois, o ato do Poder Executivo ventilado pela via do decreto, tenta limitar a legislação, sem que seja seguido o processo legislativo estabelecido na Constituição Federal.
Além das questões já apontadas, condutoras da evidente inaplicabilidade do decreto em análise, não é excessivo mencionar não poder ser admissível, no Estado Democrático de Direito, valer-se o Poder Executivo de atuação normativa direta para bloquear o exercício da defesa de pessoas processadas.
Fosse aceitável referida situação, haveria evidente migração do processo brasileiro para o modelo autoritário e policial, sendo abandonadas suas bases democráticas, com construção de preocupante cenário de aceitação de atuação executiva por via de decreto, sem qualquer controle, para limitar os direitos e garantias fundamentais.
Não socorrem argumentos sensacionalistas de facilitação do combate à corrupção ou agilização das medidas disciplinares contra maus servidores, pois, conforme bem destacou o Desembargador Conrado Kurtz, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento do recurso em relação ao rumoroso julgamento do caso da Boate Kiss, não podem existir duas regras de processo, para serem escolhidas, conforme a natureza do caso, menos ainda, sendo possível aceitar que quem julgar crie seu procedimento próprio.
O conteúdo processual, em matéria punitiva, deve ser compatível com o sentido ofertado pela Constituição Federal, qual seja, a maior habilitação possível da defesa, com preservação de direitos e garantias, para que eventual condenação tenha sido decorrência da análise racional dos fatos, a partir de amplo debate sobre a matéria colocada, o que se incompatibiliza de todo com o modelo proposto pelo inaplicável Decreto nº 11155/2022, pelo qual há habilitação punitiva, a partir de decisão irrecorrível, contra a qual somente é cabível pedido de reavaliação pela própria autoridade que já decidiu pela punição.