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Princípio da consunção:

o problema conceitual do crime progressivo e da progressão criminosa

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Agenda 01/08/2000 às 00:00

5. Progressão Criminosa

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Nalguns casos, pode ocorrer que o agente deseje a prática de um ilícito penal e se prontifique a executá-lo, utilizando-se dos meios necessários para o seu cometimento. No entanto, antes, durante ou após cometer aquela infração penal, decide ir mais além, perpetrando outra conduta que, pertencente ao mesmo iter criminis, num mesmo contexto, é mais grave que a anterior, já cometida. Exemplo: O agente decide praticar lesões corporais em seu desafeto, e o faz, mas logo após decide matá-lo. In casu, crimes diferentes — sendo o homicídio mais grave que as lesões corporais —, num mesmo iter criminis, mas que causam a ofensa, ou o perigo de ofensa, a bens jurídicos distintos pertencentes a um mesmo sujeito passivo.

Por fim, pode o sujeito ativo praticar um ilícito penal que ofende um mesmo bem jurídico X pertencente a um mesmo sujeito passivo Y, e depois, dentro ou não de um mesmo contexto (de tempo, lugar e modus operandi), pratica outro, menos grave que o anterior, contra o mesmo bem jurídico X, do mesmo sujeito passivo Y. Nessa hipótese, crimes diferentes, sendo o posterior menos grave que o anterior, ambos importando na ofensa, ou no perigo de ofensa, a um mesmo bem jurídico pertencente a um mesmo sujeito passivo.

Nas duas hipóteses supra citadas temos o que se chama de "progressão criminosa em sentido amplo". A primeira hipótese é conhecida pela doutrina sob a denominação de "progressão criminosa em sentido estrito", e a segunda, "postfactum impunível". Em ambas há responsabilidade criminal por delito único, e não por dois (como a priori se poderia supor), graças ao princípio da consunção.

Há quem credite ao antefactum impunível ser ele uma espécie do gênero progressão criminosa em sentido amplo, com o que discordamos, pelas razões que expomos no subitem 4.2, supra. Assim é que propugnamos o estudo da progressão criminosa como em vindo a se limitar, apenas, à progressão criminosa em sentido estrito e ao postfactum impunível.

          5.1. Progressão Criminosa em Sentido Estrito:

A progressão criminosa em sentido estrito muito se assemelha ao crime progressivo, mas com este não se confunde.

Decerto, a progressão criminosa em sentido estrito, do ponto de vista objetivo, nada mais é do que a absorção de um ou mais crimes que, pertencentes a um mesmo iter criminis, é/são absorvido(s) pelo último, sempre mais grave. A diferença, no entanto, está em que enquanto no crime progressivo os delitos menos graves são meios de que o agente se utiliza para a prática do crime-fim, mais grave, na progressão criminosa em sentido estrito o que o agente intenciona é a prática de um certo crime (este é, em princípio, o seu fim); porém, durante ou depois da execução ou consumação, ele decide ir mais além, prontificando-se a cometer delito mais grave (há como que uma transmutação finalística do querer delituoso).

Isso significa dizer o seguinte: no crime progressivo, o agente, desde o início, está determinado a cometer um ilícito penal X, delito este que para ser alcançado precisa, no caso concreto, passar necessariamente pelos ilícitos Y, Z, etc., menos graves que X, e por este absorvidos. Porque, se bem que Y, Z, etc., constituam ilícitos autônomos, eles, diante do caso concreto, funcionam como meras fases sucessivas — e portanto de menor gravidade — que convergem a uma finalidade última, o ilícito penal X, sempre com maior poder de lesão ou de perigo de lesão. As "fases sucessivas" (crimes-meios), por conseguinte, são absorvidas pela "finalidade" (crime-fim), finalidade esta que, em última análise, sempre foi, antes, durante e depois da execução de suas "fases sucessivas", a vontade do agente — finalidade subjetivamente imutável durante todo o percurso do iter criminis —, como no exemplo do ladrão que, para furtar objetos duma casa (art. 155 do Código Penal), precisa antes violá-la (art. 150 do Código Penal).

Já no que tange à progressão criminosa em sentido estrito, o agente deseja cometer um fato típico e antijurídico X contra um certo sujeito passivo. No entanto, durante ou depois de sua execução, ou de sua consumação, decide perpetrar ilícito penal Y, de maior gravidade, contra aquele mesmo sujeito passivo. Exemplo: O sujeito, desejando apenas ofender a integridade corporal do seu inimigo, espanca-o (art. 129 do Código Penal); logo após, por um motivo qualquer, determina-se a matá-lo, e o mata (art. 121 do Código Penal). Nesse caso, o crime por último praticado (homicídio) absorve o anterior (lesão corporal), pelo princípio da consunção, tal como ocorre com o crime progressivo. A distinção, no entanto, está em que neste último a finalidade ilícita do agente sempre fora a mesma, não se modificou durante o prolongamento do contexto em que se encontrara. Na progressão criminosa em sentido estrito, a finalidade do agente antes era uma, e durante ou após atingi-la (quer dizer, quando da prática do delito a que ele se propunha primeiramente) decide cometer, contra o mesmo sujeito passivo, ilícito mais grave.

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Portanto, na progressão criminosa em sentido estrito a finalidade encontrada no volitismo do agente era uma (e. g., somente perturbar a tranqüilidade de alguém, por acinte ou por motivo reprovável — art. 65 da Lei das Contravenções Penais). Após, põe em mente outro fim, no qual o ilícito que o constitui (e. g., injúria — art. 140 do Código Penal) é mais grave que o anterior, e absorvente deste: lex consumens derogat legi consumptæ(11).

No entanto, não há lugar para se falar em "ilícito(s)-meio(s)" na progressão criminosa em sentido estrito, até porque, aqui, fala-se em pluralidade de finalidades, sendo a derradeira mais grave que as anteriores, ao contrário do que ocorre no crime progressivo, no qual se encontram ilícitos-meios para a consecução de um único (e imutável no iter criminis) fim.

O fundamento jurídico-penal para a consunção do crime anterior, de menor gravidade, pelo posterior, de maior poder ofensivo, é que o objeto jurídico ofendido pelo segundo ilícito penal, dada a sua natureza e amplitude, abrange o do primeiro ilícito. É o que acontece com o bem jurídico "vida" tutelado pela norma do art. 121 do Código Penal, que abrange a "integridade física e a saúde", prevista no art. 129 do Código Penal: uma lesão corporal (mormente a grave) significa um perigo à vida de alguém, e a ofensa a esta, i. e., a morte de alguém, é o grau máximo de lesividade à saúde de outrem, ofensa esta que se traduz na destruição completa da integridade física e saúde da pessoa humana.

Destarte, na progressão criminosa em sentido estrito, o agente só terá de responder pelas conseqüências penais, processuais penais e executórias decorrentes do crime derradeiramente desejado e consumado, haja vista que a ofensa ao bem jurídico de maior relevância jurídico-penal, porém de mesma ou análoga natureza, mantém com a ofensa ao objeto jurídico de menor relevância uma espécie de relação de gênero e espécie. Ou melhor, o bem jurídico de menor relevância constitui, em última análise, uma projeção de menor grau do de maior importância para o Direito — pressupondo-se sempre, é claro, que ambos os bens pertencem a um mesmo sujeito passivo, e que ambos os ilícitos penais integram um mesmo contexto, um mesmo iter criminis, enfim.

Em sendo assim, nada mais lógico que punir o crime de maior gravidade, já que ele integra o de menor: quando se tem o mais, tem-se forçosamente o menos.

          5.2. Postfactum Impunível:

Hipóteses há nas quais o sujeito pratica duas infrações penais, uma posterior à outra, possuindo ambas em comum, no entanto, o fato de ofenderem ou exporem a perigo de lesão um mesmo bem jurídico, de um mesmo sujeito passivo. Quer dizer, dois delitos, X e Y, são ambos cometidos contra um mesmo bem jurídico (identidade de objetos jurídicos), de um mesmo sujeito passivo (identidade de sujeitos passivos), em contextos ou iter criminis distintos, de tempo e/ou lugar, assim como ocorre com a figura do antefactum impunível.

Questiona-se, pois: Ao agente que pratica essas duas infrações penais deverão ser imputadas as normas que as descrevem, ou somente o tipo penal de uma delas tão-somente?

Segundo o princípio da consunção, quando a primeira infração ofende o mesmo bem jurídico, de um mesmo sujeito passivo, da segunda, menos grave que a primeira, tem-se que a posterior é absorvida pela anterior, pelo que se diz que o segundo fato é postfactum (ou fato sucessivo) impunível. Ao agente só será imputada a norma incriminadora do primeiro ilícito penal praticado, pelas mesmas razões de objetividade jurídica a que aludimos na progressão criminosa em sentido estrito, i. e., pune-se apenas a primeira infração porque esta representa um grau de ofensa ao bem jurídico maior que a segunda — o ilícito de maior potencialidade (infração anterior) integra o de menor (postfactum impunível), absorvendo-o.

O postfactum de um crime significa a aparente desobediência aos mandamentos imperativos de duas normas penais incriminadoras (o indivíduo pratica duas infrações penais, em contextos diferentes, sendo a posterior menos grave que a anterior), mas existe um único bem jurídico ofendido e um único sujeito passivo vitimado. Quem rouba um carro e depois o vende a outrem (sabendo este terceiro da procedência criminosa do veículo) não responde por disposição de coisa alheia como própria (art. 171, § 2º, I, do Código Penal), mas apenas pelo roubo (art. 157 do Código Penal).

Na definição de postfactum impunível, assim já se explicou e exemplificou(12):

"Existe o postfactum impunível quando um fato posterior menos grave é praticado contra o mesmo bem jurídico e do mesmo sujeito passivo, para a utilização de um fato antecedente e mais grave, e disto para deste tirar proveito, mas sem causar outra ofensa. Assim, se após o furto o ladrão destrói a coisa subtraída, só responde pelo furtum rei, e não também pelo dano (Código Penal, art. 163). Neste caso, a lesão ao interesse jurídico causada pela conduta precedente torna indiferente o crime de dano."

No postfactum impunível, da mesma forma como ocorre com o antefactum, é necessário que se trate de um mesmo bem jurídico e de um mesmo sujeito passivo. Se, por exemplo, o ladrão subtrai uma valiosa pintura alheia e, quando cercado o seu esconderijo pela polícia, destrói-a, não há o que se falar de concurso com crime de dano. Existe apenas responsabilidade por um único crime, o de furto, pois o bem jurídico é um só, o patrimônio, e o sujeito passivo é o mesmo (proprietário da pintura). O sujeito ativo subtraiu e destruiu um bem pertencente a uma mesma pessoa(13).

Dessa forma, se por exemplo X subtrai ou rouba um objeto de Y e depois o vende a Z, conhecedor da origem da res, o primeiro responderá apenas por crime de furto ou roubo, e Y, somente por receptação. No entanto, se Z compra o bem de boa-fé (i. e., ao contrário do primeiro exemplo, ele sinceramente acredita que a coisa pertence de fato a X, e não que ela tem procedência criminosa), não responderá por delito algum(14). Devem, porém, a X ser imputadas as conseqüências e efeitos penais e processuais penais do crime de furto (art. 155 do Código Penal) ou roubo (art. 157 do Código Penal) contra Y, e por disposição de coisa alheia como própria (art. 171, § 2º, I, do Código Penal) contra Z, haja vista que, apesar da identidade de objetos jurídicos violados — o furto, o roubo e o estelionato integram o Título II da Parte Especial do Código Penal, os "crimes contra o patrimônio" —, os delitos foram perpetrados contra vítimas diferentes.

Na hipótese, o agente responde por dois crimes em concurso material (regra do art. 69 do Código Penal — cumulação das penas), pois está violando o bem jurídico (patrimônio) de Y, vítima da subtração, e de Z, que adquiriu de boa-fé a coisa de X como se a este realmente pertencesse.

Outros exemplos poderão ser ainda analisados. A doutrina vez ou outra cita o caso de quem falsifica documento público e depois dele faz uso, seja para prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. Responderá o agente por dois delitos, falsidade de documento público (art. 297 do Código Penal) e uso de documento falso (art. 304 do Código Penal)? Haja vista o princípio da consunção, o agente apenas por falsidade de documento público haverá de ser condenado, porquanto o segundo delito, menos grave que o primeiro, é postfactum impunível deste: o agente ofendeu, em ambas as infrações penais, um mesmo bem jurídico (fé pública) de um mesmo sujeito passivo (Estado).

No entanto, de qualquer sorte não se poderá falar em consunção — e nesse caso a lei não será tão "benevolente" — na hipótese de o agente ter falsificado o documento para "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio", com o seu uso "induzindo alguém em erro". Aqui, o delinqüente cometera dois delitos em concurso: falsidade de documento público (art. 297 do Código Penal) — cujos objeto jurídico e sujeito passivo são, respectivamente, a fé pública e o Estado — e estelionato (art. 171 do Código Penal), no qual o objeto jurídico (patrimônio) e o sujeito passivo ("alguém") são distintos(15).

Em contrapartida, questão que poderia ser suscitada é: Se no postfactum o crime posterior é menos grave, e na progressão criminosa em sentido estrito é exatamente o último delito que é o mais grave, consuntivo, absorvente dos anteriores, por que ambos são tratados como modalidades ou espécies de progressão criminosa em sentido amplo? Porque, subjetivamente, tanto em um quanto em outra há pluralidade de finalidades, vale dizer, pluralidade de intenções/fins, de forma que há tantas vontades quantos forem os ilícitos cometidos, na mesma sucessão contextual, pelo agente.

E a distinção entre ambos? Como acabamos de assinalar, na progressão criminosa em sentido estrito o último ilícito penal cometido é que é o consuntivo; o seu tipo penal, e não o de outro, é que incidirá no caso concreto. No postfactum impunível, o crime mais grave (consuntivo) é exatamente o primeiro, e não os ulteriores, que são absorvidos. Por exemplo, quem furta um objeto e depois o destrói só responde por furto (1 a 4 anos de reclusão, e multa), não por este e por dano (1 a 6 meses de detenção, ou multa) em concurso material.

Sobre o autor
Guilherme da Rocha Ramos

acadêmico da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Guilherme Rocha. Princípio da consunção:: o problema conceitual do crime progressivo e da progressão criminosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/996. Acesso em: 22 dez. 2024.

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