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Não inclusão de precatórios na proposta orçamentária. Crime de responsabilidade. Teoria da impossibilidade material

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Agenda 01/03/2002 às 00:00

4. Questões de Mérito

Que a definição dos crimes de responsabilidade está submetida à reserva de lei (lei federal, diga-se de passagem) não resta dúvida. A Constituição Federal, nesse ponto, é bastante clara (art. 85, parágrafo único). Dessa forma, o princípio da estrita legalidade (reserva legal), com todos os seus consectários, aplica-se integralmente na tipificação dos crimes funcionais. Não há crime de responsabilidade sem lei federal anterior que o defina, devendo a referida lei tipificar com precisão e de forma cristalina a conduta proibida. Porém, não é qualquer conduta que pode ser definida pela lei como crime de responsabilidade. Essa conduta, antes de tudo, deve ser uma conduta que atente contra a Constituição. É que o caput do art. 85, da CF/88, determina que "são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição, e, especialmente...". Por esta razão, qualquer ato de autoridade contrário aos mandamentos constitucionais pode, em tese, se a lei federal assim o determinar, configurar um crime de responsabilidade [23]. Nessa matéria, como informou o Min. Celso de Mello, "mostra-se essencial que os comportamentos legalmente qualificados como crimes de responsabilidade traduzam, sempre, atos de violação da Constituição ou dos princípios que ela adota" (MS 21.564-DF).

Percebe-se que não é qualquer ato de autoridade que viole a Constituição que será considerado crime de responsabilidade. Do contrário, toda vez que um ato administrativo(e.g. uma medida provisória, um decreto etc) fosse declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário, deveria haver a imputação de crime de responsabilidade à autoridade que o editou. É fundamental, pois, que, além de inconstitucional, o ato seja típico, vale dizer, configure, em tese, um crime de responsabilidade, conforme definido em lei.

Embora caiba a um órgão próprio o julgamento do Governador do Estado nos crimes de responsabilidade, esta circunstância, por si só, não afasta a possibilidade do controle jurisdicional da própria existência, em tese, da imputação de um crime. Confira-se, nesse sentido, trecho de voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do Mandado de Segurança 21.546/DF:

"Desse modo, Senhor Presidente, não excluo a verificação da existência, em tese, da imputação de um crime de responsabilidade, dada a exigência constitucional, que é peculiar ao nosso sistema, de sua tipificação em lei, ainda que não exclua a ampla discricionariedade e a exclusividade do juízo do Senado na concretização dos conceitos indeterminados na definição típica dos crimes de responsabilidade".

Da análise do voto, infere-se a importância de um adequado juízo jurídico por parte do Poder Legislativo, na aferição da ocorrência ou não da conduta criminosa imputada às autoridades. Não basta desejar politicamente o afastamento do Governador; antes é preciso, inexoravelmente, saber se ele cometeu algum crime de responsabilidade [24]. Assim, para o impeachment do Governador faz-se fundamental que a concorrência de dois fatores inafastáveis: (a) o ânimo político dos deputados estaduais desejando o afastamento e, (b) que o Governador tenha cometido, de fato, algum crime de responsabilidade definido em lei federal. Com relação ao ânimo político, nenhum comentário há a fazer: trata-se de matéria que escapa inteiramente a qualquer apreciação jurídica. A análise da tipicidade formal e material da conduta, por outro lado, demanda um raciocínio essencialmente jurídico, empírico-dialético, através do qual o jurista, diante dos fatos, dos valores e das normas fornecidos, pode trilhar com certa segurança. Será nesta seara jurídica que se caminhará doravante.

4.2. O Caso Concreto

O crime de responsabilidade que se imputa ao Governador do Estado, no caso ocorrente, é não haver incluído na proposta orçamentária de 2001 a verba necessária ao pagamento dos precatórios trabalhistas. Teria, com isso, o Chefe do Executivo local violado a norma constitucional constante do §1º, do art. 100, da Constituição, que prescreve:

"art. 100. (...)

§1º. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de débitos constantes de precatórios judiciais, apresentados até 1º de julho, data em que serão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte".

Essa norma, justamente por ser de status constitucional, é, potencialmente, hábil a configurar um crime de responsabilidade, desde que haja a sua definição típica em uma lei federal [25]. A Constituição, por si só, não cria tipos penais; delega a uma lei especial a sua definição. Não fosse assim seria completamente inútil o cânone inscrito no parágrafo único, do art. 85, pelo qual os crimes de responsabilidade serão definidos em lei especial. Desse modo, para verificar se houve ou não o cometimento de crime de responsabilidade por parte do Governador, não basta aferir se houve a violação da norma constitucional. É preciso, a par disso, avaliar se houve afronta direta às leis federais que definem tais crimes.

A denúncia oferecida não deixa claro qual foi especificamente o crime cometido pelo Governador e os Secretários de Estado. Há a citação de uma série de normas, sem qualquer indicação da moldura típica delituosa, o que, sem dúvida, pode resultar em prejuízo à eventual defesa das autoridades indicadas. Sem adentrar na polêmica de saber se, por este motivo, a denúncia seria inepta [26], vale analisar todos os dispositivos legais citados pelo Tribunal-denunciante, combinando com outros correlatos, aferindo se houve ou não o descumprimento, formal e material, dos preceitos invocados.

Compulsando atentamente a Lei 1.079/50, verifica-se que não existe dispositivo algum que tipifique expressamente como crime de responsabilidade a não-inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de débitos constantes de precatórios judiciais [27]. A definição típica mais semelhante seria a prevista no art. 10 (crimes contra a lei orçamentária), inc. I: "não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa". Obviamente, a conduta omissiva do Governador do Estado, no caso, não foi essa, uma vez que a proposta orçamentária foi remetida dentro do prazo determinado. Resta verificar os dispositivos citados pelo denunciante.

Fundou-se a representação, entre outros, nos artigos 10 e 73, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Eis o que enunciam tais dispositivos legais:

"art. 10. A execução orçamentária e financeira identificará os beneficiários de pagamento de sentenças judiciais, por meio de sistema de contabilidade e administração financeira, para fins de observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição".

"art. 73. As infrações dos dispositivos desta Lei Complementar serão punidas segundo o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950; o Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967; a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e demais normas da legislação pertinente".

Não é preciso muito esforço intelectual para compreender que a conduta omissiva do Governador não se enquadra na hipótese. Pelo contrário, somente com muita tortura do texto é possível dizer que houve, por parte do Chefe do Executivo, violação ao preceito normativo citado. A norma expressamente menciona e trata da "execução orçamentária e financeira". Ora, a execução orçamentária e financeira ocorre em momento posterior ao envio da proposta orçamentária à Assembléia. Não há falar em execução orçamentária, sem lei orçamentária aprovada a ser executada. O dispositivo, portanto, é manifestamente inaplicável ao caso ocorrente, não se prestando a embasar qualquer denúncia por crime de responsabilidade, em razão da não inclusão no orçamento da verba necessária ao pagamento dos débitos decorrentes de precatórios. Nesse ponto, a denúncia apresentada foi leviana, irrefletida e precipitada. A indignação da douta Juíza Presidente do Tribunal trabalhista, com tal argumento, sobrepujou a prudência, que deve orientar os passos dos operadores do direito. É deplorável que, no intuito de defender seu ponto de vista, tenha o denunciante apresentado tão gritante despropósito argumentativo, capaz de comprometer toda a seriedade da representação.

Por último, resta a análise do dispositivo previsto no art. 12, da Lei 1.079/50, citado pelo denunciante. Eis o que prescreve o texto legal:

"art. 12. São crimes de responsabilidade contra as decisões judiciárias:

1. impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;

2. recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo;

3. deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral;

4. impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária".

O Órgão denunciante parece entender que, por não ter o Chefe do Executivo incluído na proposta orçamentária a verba necessária ao pagamento dos precatórios trabalhistas, houve, indiretamente, descumprimento às decisões judiciais. Sendo verdadeira a assertiva, a responsabilidade dos Secretários de Estado, no caso, já estaria afastada, uma vez que ao Governador – e não aos Secretários de Estado – compete remeter ao Poder Legislativo a proposta orçamentária. Só comete a infração penal quem praticar a conduta - ação ou omissão. Não há responsabilidade penal se a pessoa não estiver indicada (expressa, ou implicitamente) no tipo legal de crime; logo, não há que se imputar a omissão aos Secretários, que não possuem a obrigação (em sentido normativo) de remeter a proposta orçamentária ao órgão legiferante. Talvez tenha sido por esse motivo que não foi requerida sanção alguma aos Secretários. Assim, afastada a responsabilidade dos Secretários indicados, passa-se ao exame da conduta omissiva do Governador.

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4.2.1 O Cumprimento das Decisões Judiciais como Cânone Constitucional: Princípio da Sujeição da Administração às Decisões do Poder Judiciário

O respeito às decisões proferidas pelo Poder Judiciário, sobretudo as decorrentes de sentenças transitadas em julgado, constitui dogma a ser observado por todos que compõem a estrutura orgânica do Estado. Como explicou o Ministro Celso de Mello, a exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República (IF nº 590-CE - QO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 09/10/98).

A sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário é considerado por Eros Roberto Grau um princípio jurídico fundamental implícito, vale dizer, que se encontra em estado de latência, "descoberto" no sistema. Nem por isso perde ele o seu caráter normativo, com força vinculante, num grau máximo de juridicidade, e com uma normatividade potencializada e predominante.

Os princípios jurídicos podem estar expressamente enunciados em normas explícitas ou podem ser descobertos no ordenamento jurídico, sendo que, neste último caso, eles continuam possuindo força normativa. Ou seja, não é por não ser expresso que o princípio deixará de ser norma jurídica. Reconhece-se, destarte, normatividade não só aos princípios que são, expressa e explicitamente, contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentes de seu sistema, são anunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar o Direito (ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 55). Como observa LUÍS ROBERTO BARROSO, "os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, e sem pretender enveredar por discussão filosófica acerca do positivismo e jusnaturalismo, tem-se, aqui, como fora de dúvida que estes bens sociais supremos existem fora e acima das regras legais, e nelas não se esgotam, até porque não tem caráter absoluto e se encontram em permanente mutação. No comentário de Jorge Miranda, ‘o Direito nunca poderia esgotar-se nos diplomas e preceitos constantemente publicados e revogados pelos órgãos do poder’" (BARROSO, Luís Roberto. Direito...p.288). Nessa categoria de princípios, que, embora não expressos no texto constitucional ou em qualquer outro diploma escrito, são de obrigatória observância situa-se o princípio do respeito às ordens judiciais. Logo, como consectário da harmonia entre os poderes, o Executivo não pode se furtar de cumprir as determinações oriundas dos órgãos jurisdicionais.

4.2.2 A Relatividade dos Princípios Constitucionais

"Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese, pois uma tal obediência unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa - digamos, individual - termina por infringir uma outra - por exemplo, coletiva. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um ‘princípio de proporcionalidade’, para que se possa respeitar normas, como os princípios - e, logo, também as normas de direitos fundamentais, que possuem o caráter de princípios -, tendentes a colidir" Willis Santiago Guerra Filho, A Norma de Direito Fundamental

Afirmar que os princípios constitucionais são, ontologicamente, normas jurídicas, vinculantes, com um teor máximo de juridicidade e normatividade potencializada e predominante, não significa dizer que sua aplicação é ilimitada, absoluta e irrestrita. Claro que não. Os princípios constitucionais vivem em uma tensão permanente e recíproca, limitando-se entre si, de modo que a relatividade dessas normas é nota característica de sua própria essência.

Essa tensão existente entre os princípios é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte originário. Esses interesses, como não poderiam deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções - típica em um "Estado Democrático de Direito" que é a fórmula política adotada por nós - um estado permanente de tensão entre as normas constitucionais. Como explica MÜLLER, a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as necessidades, o método e os sentimentos da época (apud BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 460).

Ademais, o simples fato de os princípios constituírem um sistema aberto, ou seja, permitirem uma compreensão fluida e plástica, já insinua (ou deixa subentendido) que podem existir fenômenos de tensão entre esses princípios componentes dessa dinâmica ordem sistêmica, sujeita a uma variabilidade infinita de circunstâncias influenciadoras. Por essa razão, nos casos concretos, é muito comum o jurista deparar-se com dois princípios conflitantes. É o que costuma denominar-se de colisão de princípios [28].

Como se sabe, a situação de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia. Há três critérios clássicos, apontados por BOBBIO e aceitos quase universalmente, para solução de antinomias: o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios, na forma do tudo ou nada (no all or nothing [29]): "se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão" [30].

No caso de colisão de princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia [31], vez que não se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles. Portanto, não há que se falar em aplicação destes critérios para solucionar eventual colisão de princípios constitucionais. Como assevera CANOTILHO, "assim, por ex., se o princípio democrático obtém concretização através do princípio maioritário, isso não significa desprezo da proteção das minorias (...); se o princípio democrático, na sua dimensão económica, exige a intervenção conformadora do Estado através de expropriações e nacionalizações, isso não significa que se posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do Estado de direito (princípio de legalidade, princípio de justa indenização, princípio de acesso aos tribunais para discutir a medida da intervenção)" (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 242).

Surge, em razão dessa impossibilidade de se aplicar os critérios clássicos para resolver antinomias, no caso de conflito entre princípios, uma tormentosa questão: quid iuris no caso de uma colisão de princípio constitucionais, já que eles possuem a mesma hierarquia normativa e, portanto, devem ser igualmente obedecidos?

Entre as diversas soluções apontadas pela doutrina (concordância prática [32], proporcionalidade, dimensão de peso e importância [33]) todas vão desembocar em uma vala comum: a necessária ponderação dos valores em jogo. O intérprete, no caso concreto, através de uma análise necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e subjetivos, qual o valor que o ordenamento, em seu conjunto, deseja preservar naquela situação.

Partindo dessas premissas teóricas, é possível concluir que o princípio da sujeição da Administração às decisões judiciais não é absoluto. Há limites, naturais e econômicos, para a sua fiel observância. Veja-se.

A Constituição, é certo, exige que o administrador inclua na proposta orçamentária o montante necessário ao pagamento dos precatórios. Por outro lado, a Constituição também impõe (1) que os servidores públicos, aposentados e pensionistas sejam pagos; (2) que o Administrador invista vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino, conforme dispõe o art. 212; (3) que o Estado repasse aos Municípios cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios, na forma do art. 158, III; (4) que o Estado repasse aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, de acordo com o art. 158, IV; (5) que o Estado pague, em dia, suas dívidas com a União e suas autarquias, sob pena de retenção de recursos federais, no modo estipulado no art. 160, parágrafo único; (6) que o Administrador invista recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, conforme dispõe o art. 198, §2º e 3º, com a redação dada pela EC nº 29/2000; (7) que invista em práticas esportivas, na cultura, no turismo, no desenvolvimento científico, pesquisa e capacitação tecnológica, na proteção ao meio-ambiente, na assistência social, enfim, em todos os valores assegurados na Constituição.

Considerando essas imposições constitucionais, extraem-se algumas conclusões quanto aos limites à aplicação do princípio do cumprimento das decisões do Poder Judiciário, que importem em dispêndio de verbas para a Administração:

1ª Situação. Havendo ampla disponibilidade orçamentária não haverá limite ao cumprimento das decisões judiciais, salvo se um interesse maior (vida, liberdade, dignidade da pessoa humana etc) estiver sendo ameaçado pela obediência da decisão. No caso, todas os deveres constitucionais impostos ao Estado poderão ser cumpridos.

2ª Situação. A disponibilidade de dinheiro não é suficiente para saldar as dívidas decorrentes de decisão judicial, nem para cumprir as demais imposições constitucionais. Aqui o problema se complica e é precisamente nessa situação que se encontra o Estado de Alagoas. Não há verba suficiente para pagar os débitos decorrentes de precatórios, nem para cumprir as obrigações determinadas na Constituição. O princípio da sujeição da Administração às decisões judiciais está, portanto, limitado por um fator econômico intransponível: a ausência de verba para pagar as dívidas. Tal situação convencionou-se denominar de "exaustão orçamentária" e será analisada no tópico seguinte.

4.2.3. A Exaustão Orçamentária: Teoria da Impossibilidade Material

A exaustão orçamentária, conforme adverte Eros Roberto Grau, "é a situação que se manifesta quando inexistirem recursos suficientes para que a Administração possa cumprir determinada ou determinadas decisões judiciais. Não há, no caso, disponibilidade de caixa que lhe permita cumpri-las". E continua o autor: "Aqui não importa a prevalência do princípio da sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário, em relação ao princípio da legalidade da despesa pública. Ainda que afastadas as regras que a este último conferem concreção, ainda assim não terá condições, a Administração de dar cumprimento às decisões judiciais". (Despesa Pública. Conflito entre Princípios e Eficácia das Regras Jurídicas. O Princípio da Sujeição da Administração às Decisões do Poder Judiciário e o Princípio da Legalidade da Despesa Pública, RTDP, n. 2, Malheiros editores, São Paulo, 1993, p. 144).

Nesse caso, a exaustão da capacidade orçamentária estabelece um conflito entre as decisões judiciais e a realidade. Entre a realidade e o direito. Sob tal ângulo, a compreensão da exaustão da capacidade orçamentária importa considerar a força normativa da Constituição. A força normativa da Constituição perece quando ela não corresponde à natureza singular do momento. Opera-se o condicionamento material da finalidade de suas normas que estejam em conflito com a realidade, porquanto ela se transforma em obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças sociais. Como adverte Konrad Hesse:

"Em síntese, pode afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. Contatam-se os limites da força normativa da Constituição quando a ordenação constitucional não mais se baseia na natureza singular do presente. Estes limites não são, todavia, precisos, uma vez que essa qualidade singular é formada tanto pela idéia de vontade de Constituição quanto pelos fatores sociais, econômicos e de outra natureza" (A Força Normativa da Constituição, Sérgio Fabris editor, Porto Alegre, 1991, p. 24).

Nesse momento, cumpre tecer alguns comentários acerca da teoria da impossibilidade material, bem abordada por Ives Gandra Martins, em parecer intitulado Ordem Judicial de Pagamento – Ausência de Recursos Orçamentários – Teoria de Impossibilidade Material, publicado na Revista de Direito Administrativo, nº 187, 1992.

O emérito professor inicia sua abordagem afirmando que o princípio da impossibilidade material deve nortear a aplicação do direito pelos poderes constituídos à luz da ordem constitucional vigente. Tal princípio – prossegue – decorre do fato de que não pode a determinação judicial exigir algo que, nas diversas alternativas de execução, a materialidade fenomênica demonstre ser irrealizável. Como exemplo, cita o caso de uma decisão judicial impor a um paraplégico, como cumprimento de uma obrigação, corresse os 100 metros rasos em 10 segundos.

Há que se distinguir, contudo, a impossibilidade material da impossibilidade circunstancial. Enquanto a primeira torna sem eficácia o conteúdo material da sentença, fazendo com que ela não existisse no mundo do Direito, a impossibilidade circunstancial acarreta uma mera ineficácia temporal, provisória, sem tirar a eficácia potencial da sentença. Como exemplo de impossibilidade circunstancial, o jurista cita a seguinte hipótese: um juiz que determine, em ação de execução cambial, a penhora dos bens do devedor e estes, por circunstâncias várias, inexistam, poderá condenar o devedor, mas, à falta de patrimônio, sua decisão será inexeqüível, perdendo, momentaneamente, a sua eficácia. Assim, a decisão judicial que esbarre nas impossibilidades circunstanciais fica com sua eficácia apenas suspensa.

Em casos tais, em que não há recursos suficientes para cumprir as decisões judiciais, aplica-se integralmente a teoria da impossibilidade material: "as decisões do Poder Judiciário não se discutem, cumprem-se, desde que haja possibilidade material de seu cumprimento. Aplica-se, como demonstrei no início do parecer, a teoria da impossibilidade material não só das leis, como às decisões judiciais" (p. 358). Nessa hipótese, não há que se falar em crime de responsabilidade, porquanto, embora o administrador deseje cumprir a ordem, não tem materialmente como faze-lo. Como explica Eros Roberto Grau, afirmando que a inexistência de dinheiro é causa excludente da antijuridicidade:

"Estaremos, então, diante de situação que não tenho dúvida em referir como estado de necessidade, a importar que a decisão ou decisões judiciais não devam ser cumpridas pela Administração" (Despesa Pública – Princípio da Legalidade – Decisão Judicial. Em caso de exaustão da capacidade orçamentária deve a Administração Demonstrar, perante o Supremo Tribunal Federal, a impossibilidade do cumprimento de decisão judicial condenatória. RDA nº 191, São Paulo, 1993, p. 326).

Esclareça-se que não se está aqui aplaudindo o erro ou incitando à total desobediência às ordens judiciais. O respeito aos cânones constitucionais é cláusula gravada em pedra. Ante a qualquer desrespeito à Constituição não há espaço para conivência. Porém, a obediência às normas constitucionais está submetida à "reserva do possível", naturalmente limitada por circunstâncias de ordem extrajurídica (econômica, natural etc). Muitas vezes, o descumprimento de ordens judiciais torna-se impossível, por razões que escapam à vontade do sujeito compelido a cumprir a determinação do Poder Judiciário [34]. É o que ocorre no caso do Estado de Alagoas.

4.2.4. O Caráter Excepcional [35] (Ultima Ratio) do Impeachment e a Teoria Substancial dos Crimes de Responsabilidade

"As constituições não são regulamentos administrativos, não são tratados casuísticos, não são roteiros de precauções meticulosas contra a chicana, a ignorância, ou a subserviência mental da rabulice interessada, ou míope. Uma constituição é a caracterização, nitidamente contornada, de um sistema político, indicado nas suas linhas capitais, entregue, na evolução da sua vida orgânica, à ação da consciência popular, confiado, na interpretação das suas conseqüências legislativas, à intuição dos homens de Estado. A evidência das regras diretrizes, a luz do alto, que desce dos princípios, ilumina os casos particulares, ditando, a cada ocorrência imprevista, a cada combinação dos fatos, a solução definida pelas necessidades da harmonia geral." Rui Barbosa, Obras Completas

Mesmo que se considere que a ausência de verbas não justifica o descumprimento da decisão judicial condenatória, o que se diz apenas para concluir o raciocínio, ainda assim é bastante duvidosa a imputação de crime de responsabilidade ao Governador. É que a única sanção para os crimes dessa espécie – salvo se se tratar de Prefeito – é o afastamento da autoridade de seu cargo (impeachment). Logo, somente em casos extremos, quando esgotados todos os demais meios para solução do problema (pedido de intervenção, por exemplo [36]), será justificável cogitar em responsabilizar os detentores de cargos políticos por eventual cometimento de crime de responsabilidade. Não basta, por isso mesmo, que a conduta praticada pela autoridade se amolde, formalmente, à figura típica prevista na norma penal incriminadora. Insta, fundamentalmente, que a conduta seja de tamanha gravidade que justifique o afastamento do Presidente, Ministros, Governadores, Secretários etc. de seus cargos, sobretudo aqueles que foram investidos em suas funções em razão da soberana manifestação da vontade popular.

Essa teoria substancial ou material dos crimes de responsabilidade, através da qual somente ofensas sérias podem torna-se base para o procedimento de impeachment, tem fundamento na doutrina norte-americana. Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gonçalves de Oliveira, proferido, no Hábeas Corpus 41.296DF, citando Harold Zink:

"The Constitution is clear enough when it setsdown treason and bribery as the basis for impeachment: It is not so clear when it adds ´other hight crimes and mis demeanors´. In general, it is understood that only serious offenses of a criminal nature can be made the basis impeachment procedings (Harold Zink, American Government and Politics, 1958, p. 184) [37].

Por certo, a nossa Constituição Federal vigente não adotou expressamente o modelo norte-americano. Tal fato, porém, não retira do crime de responsabilidade um conteúdo material, consistente na gravidade do fato hábil a ocasionar a derrocada, inclusive, da autoridade máxima do Estado, escolhida para ocupar o cargo pela soberana vontade popular. Somente ofensas sérias ao texto constitucional podem justificar o impeachment do Chefe do Executivo. Se assim não fosse, não havia a Constituição estabelecido o quorum de dois terços para que a Câmara dos Deputados autorize o processo, bem como para que o Senado julgue a acusação. Portanto, como anotou o Min. Celso de Mello, o processo de impeachment visa, antes de qualquer coisa, "inibir e reprimir práticas atentatórias daquelas constelação de valores ético-jurídicos e político-administrativos que a Carta Federal consagra como indeclináveis pressupostos axiológicos, fundantes do próprio sistema que estabelece" (MS 21.623 – DF). Um instituto que se destina a operar a destituição constitucional de uma autoridade legitimamente investida pelo povo, além de inabilitá-lo, temporariamente, para o exercício de qualquer função pública, eletiva ou de nomeação, não pode ser utilizado de forma mecânica, sem qualquer ponderação dos interesses em jogo. A função da Assembléia Legislativa, no caso, somente terá sentido se comprometida com os postulados constitucionais; do contrário, sua decisão não conterá qualquer quociente de legitimidade. Antes de aplicar acriticamente os "rigores da lei", tal qual um poeta parnasiano do século passado, através do velho exercício mecânico da lógica formal de subsunção dos fatos à norma, o intérprete deve fazer uma análise tópica, empírico-dialética do caso concreto, buscando, com base na proporcionalidade [38], preservar os valores supremos protegidos pela Constituição.

A propósito, o Min. Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal, ao examinar pedido de impeachment de Ministros de Estado, por supostos cometimentos de crimes de responsabilidade, consistentes precisamente no não-cumprimento de ordens judiciais, ponderando os valores em jogo, decidiu o seguinte:

"a relevância dos fatos narrados na inicial, há de sopesar-se, sob o ângulo do risco, os valores envolvidos. Sobrepõem-se, no caso, os ligados à necessidade de rechaçar-se atos precoces quando em jogo o exercício de funções relevantes como são as atribuídas aos Denunciados, mormente em quadra de turbulência econômica, financeira e social, abrangente de todo mercado mundial" (PETMC 1392 – DF, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 26/11/97).

Voltando à hipótese aqui debatida, afigura-se inarredável que os fatos narrados na denúncia não são hábeis o suficiente a dar justa causa ao processo de impeachment do Governador, sobretudo levando em conta o processo de transição política por que passa o Estado de Alagoas. O eventual recebimento da denúncia pela Assembléia Legislativa e, em razão disso, o afastamento do Governador provocará conseqüências danosas ao ambiente político estadual. Contemporizar com esta catástrofe extrema seria vestir a mortalha do caos. Não é essa a função que o operador do direito deve buscar; afinal, a segurança jurídica é a pedra de toque do Estado Democrático de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

. Não inclusão de precatórios na proposta orçamentária. Crime de responsabilidade. Teoria da impossibilidade material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16464. Acesso em: 22 nov. 2024.

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