OS PAGAMENTOS REALIZADOS A TÍTULO DE PLR, NO PERÍODO AUTUADO, PREENCHEM OS REQUISITOS DA LEI ESPECÍFICA
Conforme visto anteriormente, a Constituição imunizou a PLR determinando, por preceito constitucional indiscutivelmente auto-aplicável neste particular, a sua exclusão do conceito de remuneração decorrente do vínculo empregatício. De se lembrar, também, que a Corte Suprema proclamou definitivamente que, a partir do advento da MP 794/94, deu-se a implementação do preceito constitucional que desvincula a participação nos lucros da remuneração devida ao empregado.
O importante é constatar que os pagamentos feitos a esse título decorreram de lucros/resultados apresentados pela empresa. Comprovam esse fato os balanços fiscais referentes ao período de 1996 a 2003, bem como os demonstrativos de resultados pertinentes ao mesmo período, juntados aos autos do processo administrativo NFLD nº 35.132.833-5. Por isso, no relatório do sr. Auditor do INSS ficou consignado: ‘Esta fiscalização na análise dos documentos que originaram esta Notificação, não encontrou indícios de intenção dos responsáveis pela Empresa de sonegar a contribuição ora apurada’ (item 13).
Forçoso é concluir que o fisco só promoveu o lançamento da contribuição no equivocado entendimento de que a PLR deve ser paga com observância dos requisitos previstos na lei específica para fazer jus à não-incidência da contribuição previdenciária. Em nenhum momento desconsiderou a natureza jurídica dos pagamentos feitos. O fisco apenas questionou a forma de distribuição dos lucros ou resultados, no seu entender, sem estabelecer previamente ‘critérios de apuração e avaliação individual com o desempenho de seus funcionários’ como que fazendo as vezes de um agente fiscal do trabalho.
Ora, uma vez constatado que o montante pago representa rateio do lucro ou resultado, portanto, imune à tributação, não há mais interesse jurídico do INSS em questionar o critério livremente convencionado entre a Comissão de Empregados e a Empresa, com interveniência do respectivo sindicato, imiscuindo-se em seara alheia.
Contudo, não se furta a demonstrar o cumprimento dos requisitos da lei específica.
Todos os pagamentos a título de PLR, abrangidos pela autuação, preenchem os requisitos estabelecidos pela Lei nº 10.101/00, não bastasse a imunidade tributária antes examinada.
De fato, a empresa apurou os valores a serem pagos a cada empregado mediante análise dos demonstrativos de resultado de cada período, bem como do exame das Fichas de Gestão de Desempenho por Competência e Resultado, constatadas pelo fisco. O ‘Programa de Gestão de Desempenho por Competência e Resultados’ contém três partes. Na Parte I, denominada ‘Competências Gerenciais’, avaliam-se critérios de capacidade estratégica, de liderança, habilidade de integração, inovação e outros, com comentários do colaborador avaliado. Na Parte II, referente à avaliação de ‘Resultados’, são considerados critérios objetivos a serem atingidos pelo colaborador, levando em conta a estrutura de custos, a performance industrial, e a ‘competitive manufactoring management’, onde consta, também, a manifestação do superior hierárquico do colaborador avaliado, bem como a análise final dos resultados apurados nas Tabelas I e II, estabelecendo pontuação com base na Tabela III, para efeito de posterior fixação do percentual a ser recebido a título de PLR. E finalmente a Parte III, referente às Necessidades de Treinamento e Ações de Desenvolvimento, consiste numa espécie de feedback dado pelos superiores diretos do colaborador como meio de planejar ações de desenvolvimento profissional.
Apesar de constatada pelo fisco a existência desse ‘Programa de Gestão de Desempenho por Competências e Resultados’, ele não foi levado em conta, sob o singelo argumento de que tal programa não alcança ‘os colaboradores que se encontram nos níveis abaixo e que foram contemplados de forma individualizada na notificação.’
Ora, em uma empresa de porte como a consulente, com quinze mil empregados, não seria racional, razoável, nem exeqüível a avaliação individual de cada empregado. Não existe, nem pode existir participação sobre metas individuais, a não ser sobre metas por equipes, como no caso da consulente, em que o programa de metas é dirigido a chefes de grupo de aplicações, a chefes de setores das fábricas, aos engenheiros e aos chefes da região leiteira. Se as chefias e os engenheiros atingiram as metas previstas no ‘Programa de Gestão de Desempenho por Competências e Resultados’, de forma satisfatória nas respectivas áreas de sua atuação, de conformidade com a avaliação feita pelos respectivos superiores hierárquicos, é porque eles atuaram de forma tal que os empregados sob sua subordinação emprestaram colaboração indispensável para o atingimento dessas metas.
Tanto os trabalhos de administração, como os de fábricas sempre deverão nortear-se pelo princípio da unidade e harmonia de atuação das equipes. O engenheiro, ou o chefe de agrupamento, por si sós, seriam incapazes de produzir uma única barrinha de chocolate. Não há dúvida, portanto, que o ‘Programa de Gestão de Desempenho’, mantido pela consulente e constatado pelo fisco, cumpre satisfatoriamente os requisitos da legislação específica que, repita-se, não impõe critérios inflexíveis para a avaliação do desempenho funcional dos empregados.
Outrossim, quanto à afirmativa do fisco, contida no item 2.3.4 da decisão monocrática, no sentido de que para os valores pagos em 11/95 não houve acordo sobre participação nos resultados, não é suficiente para descaracterizar a sua natureza jurídica, desvinculada da remuneração do empregado. A ausência de ‘Programa de Metas’ para pagamento da PLR de 1995 não poderia descaracterizar a natureza jurídica que lhe é própria, quer em função da imunidade tributária da participação nos lucros de que já falamos, quer em razão da vigência da MP nº 794, praticamente a partir de 1º de janeiro de 1995.
DA EXCLUSÃO DOS EXERCENTES DE CARGOS COM SALÁRIOS SUPERIORES A R$1.500,00 DA PLR NOS EXERCÍCIOS DE 1998 E 1999
O fato de os exercícios de 1998 e 1999 terem sido excluídos do pagamento da PLR aos empregados exercentes de cargos com salários superiores a R$ 1.500,00, não tem a menor relevância jurídica para o exame da matéria sob consulta, por duas razões.
Em primeiro lugar, porque os pagamentos das PLRs a que se refere o item 2.3.3.3 da decisão monocrática, não foram acordados entre a Empresa e a Comissão de Empregados, mas resultaram de ‘Convenção Coletiva entre o Sindicato e a Federação dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de São Paulo’, como apontado naquela r. decisão. Assim, o critério de pagamento da PLR obedeceu àquele estabelecido na Convenção a que se refere o item II do art. 2º da Lei nº 10.101/00 e regulada no art. 611 da CLT. Não cabia à consulente interferir nos termos da convenção firmada entre os sindicatos patronal e dos empregados, que agiram em substituição às partes (art. 8º, III da CF).
Em segundo lugar, essa exclusão dos empregados com salário superior a R$ 1.500,00 não é questão pertinente ao lançamento tributário, que é um ato administrativo vinculado. Não cabe ao INSS promover a defesa dos excluídos.
DOS PRINCÍPIOS BÁSICOS QUE REGEM O PROCESSO ADMINISTRATIVO
Conforme se depreende do item 17 do Relatório que antecede a r. decisão recorrida, o fisco constatou, durante a diligência, que a Empresa ‘possui um programa gerencial anual (introduzido em 1996) onde se estabelece previamente objetivos a serem alcançados, com posterior acompanhamento (através das Fichas de Gestão de Desempenho por Competência e Resultados), para os níveis Gerenciais/Chefias (Gestores), chamado de Sistema de Gestão de Desempenho....’.
Mas esse programa foi totalmente desconsiderado porque não alcançou ‘os colaboradores que se encontram nos níveis abaixo e que foram contemplados de forma individualizada na notificação’ (sic, fls. 12).
Diante disso, pode-se afirmar que o fisco não agiu de acordo com os princípios constitucionais expressos no art. 37 e no art. 5º e inciso LV da CF/88 e nem observou as normas básicas sobre processo administrativo, previstas na Lei nº 9.784/99, como adiante se verá.
O art. 37 prescreve que a atuação da administração pública, onde se insere o órgão julgador de primeira instância administrativa, prolator da decisão recorrida, deverá obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O órgão administrativo julgador, seja ele monocrático ou colegiado, não deve submissão ao princípio da hierarquia funcional. O servidor público investido no cargo ou função de decidir deve posicionar-se de forma eqüidistante dos interesses em conflito entre a administração e o particular. Admitir submissão ao princípio da hierarquia funcional seria o mesmo que ignorar os princípios constitucionais concernentes à igualdade das partes, à proibição do juízo de exceção e os princípios do contraditório e da ampla defesa.
De fato, está proclamado no caput do art. 5º da Carta Política que todos são iguais perante a lei. Outrossim, a CF/88 estatuiu o princípio do juiz natural que vem expresso no art. 5º, incisos XXXVII e LIII nos seguintes termos:
‘XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção.’
‘LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.’
Muitos autores somente vislumbram o princípio sob comento no inciso LIII retro transcrito. Entretanto, claro é que a proibição de criar tribunais de exceção representa um complemento ao princípio do juiz natural.
Conforme muito bem assevera o ilustre autor Nelson Nery Jr., o princípio do juiz natural, é tridimensional, consagrando três garantias: a) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial.
Segundo o princípio do juiz natural somente o juízo competente poderá conhecer da causa. Essa competência sempre deverá ser atribuída por lei, de forma a limitar a atuação do órgão jurisdicional e prever abstratamente o juiz competente.
Com efeito, os limites impostos à atuação do órgão jurisdicional podem ter natureza variada, porém, sempre de conformidade com os critérios norteadores da divisão de trabalho jurisdicional ou critérios de atribuição de competência entre os órgãos jurisdicionais. Via de regra, a competência jurisdicional é dividida em razão: a) da matéria; b) do valor; c) da pessoa; d) do território e; e) do critério funcional.
O tribunal de exceção, por sua vez, é aquele criado ou designado por deliberação legislativa ou executiva, para julgar caso específico, consumado ou não, podendo o tribunal ser criado até mesmo posteriormente ao fato in concreto a ser ‘julgado’. Trata-se, na verdade, de um tribunal sob encomenda, para julgar com parcialidade, para beneficiar ou prejudicar alguém.
É de se ver, portanto, que o princípio do juiz natural tem por finalidade precípua garantir um julgamento justo.
Esse princípio aplica-se, obviamente, aos órgãos judiciários e aos órgãos administrativos de julgamento, independentemente de ser órgão julgador singular ou colegiado, pois está expresso na Constituição que ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’ (art. 5º, LV da CF). Ora, não assegurar a neutralidade do órgão administrativo julgador, singular ou colegiado, mediante submissão integral ao princípio do juiz natural, é o mesmo que fazer do contraditório e da ampla defesa um nada.
Finalmente, a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que estabelece ‘normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração’, prescreve em seu art. 2º:
‘A Administração Púbica obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência’.
E o parágrafo único desse art. 2º enumerou vários critérios a serem observados no processo administrativo, dentre eles, o da atuação conforme a lei e o Direito (inciso I); o da atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (inciso IV); e o da observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados (inciso VIII).
Certamente, desconsiderar um documento favorável ao sujeito passivo da contribuição social exigida, constatado pelo fisco no decorrer da diligência efetuada e expressamente mencionado no corpo da decisão administrativa, viola os princípios e os critérios retro apontados.
O servidor público que ignora os preceitos legais e constitucionais concernentes ao processo administrativo tributário comete desvio de poder, por omissão que, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello consiste na ‘utilização de uma competência em desacordo com a finalidade que lhe preside a instituição’. Maria Sylvia Zanella Di Pietro afasta dos órgãos administrativos de julgamento do controle hierárquico quando afirma: ‘A segunda modalidade de órgãos que estão fora da hierarquia são justamente os órgãos administrativos encarregados do processo administrativo tributário. É verdade que principalmente os órgãos de 1ª instância exercem outras funções além dessas funções julgadoras, e, nessas outras funções, estão integrados na hierarquia. Mas, no que diz respeito especificamente às decisões no processo administrativo fiscal, não estão integrados na hierarquia; também não obedecem ordens, não seguem instruções; eles têm que agir com imparcialidade.’ Igualmente Ruy Cirne Lima proclama que a jurisdição administrativa funciona ‘fora do âmbito da escala hierárquica’.