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Ação contra plano de saúde que paga os medicamentos aos hospitais com base na tabela de preços dos genéricos

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DO DIREITO

Após as considerações iniciais, vale frisar que a principal transgressão jurídica levada a cabo pela ré diz respeito a prática abusiva de adotar uma modificação unilateral do contrato, prática esta expressamente vedada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Deflui do sistema legal o preceito consubstanciado no art. 115 do Código Civil Brasileiro:

Art. 115 - São lícitas, em geral, todas as condições, que a lei não vedar expressamente. Entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o ato, ou sujeitarem ao arbítrio de uma das partes.

Diante do exame do referido mandamento legal resta claro que a conduta patrocinada pela ré no sentido de promover a modificação unilateral do contrato de prestação de serviços médicos e hospitalares fere de forma contundente o preceito legal em apreço.

Qualquer modificação contratual pressupõe a manifestação volitiva das partes interessadas na concretização do ato jurídico para que o mesmo seja convalidado. Neste aspecto o mestre Cáio Mário da Silva Pereira tece importantes considerações a respeito:

É um negócio jurídico bilateral, e de conseguinte exige o consentimento; pressupõe de outro lado a conformidade com a ordem legal, sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato negocial, tem por escopo aqueles objetivos específicos. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, volume III, 10ª ed., pg. 02).

Ao trazer a definição dos contratos ainda assevera o referido jurista:

Com a pacificidade da doutrina, dizemos então que o contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos. Podemos definir contrato como "acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos". (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, volume III, 10ª ed., pg. 02).

Todo contrato parte do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida em conformidade com a lei. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, volume III, 10ª ed., pg. 10).

Diante de tais considerações resta patente a obrigatoriedade da ré no sentido de submeter à apreciação dos parceiros contratuais as modificações contratuais sugeridas sob pena de caracterizar uma ofensa à manifestação volitiva das partes contraentes.

Face ao cotejo dos diversos instrumentos contratuais firmados entre os hospitais e a empresa ré, pode-se inferir que os mesmos primam pelo consentimento mútuo das partes no que tange às hipóteses de alteração contratual, não sendo em momento algum facultado à ré a prerrogativa de alterar unilateralmente o contrato sem a anuência dos nosocômios conveniados.

Para elucidar a questão, cabe trazer à colação alguns trechos extraídos dos aludidos pactos contratuais, "verbis":

1.4 – Para a execução dos serviços previstos neste contrato, o CONTRATADO se compromete a observar, desde que não se oponha, instruções escritas, de caráter operacional, dadas a cada oportunidade pela UNIMED-BH , desde que tais instruções não constituam ingerência na atividade administrativa do CONTRATADO. Para isto a UNIMED-BH deverá promover contato permanente com o CONTRATADO, no sentido de mantê-lo atualizado quanto as normas, procedimentos e métodos vigentes, obrigando-se a envia-las sempre por escrito e devidamente protocoladas, e observando a antecedência necessária, para a efetiva adequação do CONTRATADO às mesmas. (grifos nossos).

1.5 – À UNIMED-BH e ao CONTRATADO cabem o direito de apresentação e celebração de termos aditivos que se fizerem necessários ao bom desempenho dos serviços ora contratados, de comum acordo entre as partes e sempre de forma escrita. (grifos nossos).

2.1 – Além dos serviços descritos nesta cláusula, outros poderão ser incluídos de comum acordo entre as partes contratantes, em instrumento de aditamento ao presente, devidamente assinado pelas partes. (grifos nossos)

Com relação a prescrição de medicamentos, os próprios contratos informam que a ré obriga-se a fornecer a medicação de acordo com o que fora prescrito pelo médico assistente. Cite-se como exemplo a cláusula 2ª que informa:

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2 - O CONTRATADO se obriga a executar, por si ou por terceiros por este contratados, dentro das necessidades dos associados da UNIMED-BH e do Sistema Nacional Unimed, respeitados os limites impostos pelos anexos citados no item 1.6 da cláusula 1ª, pelas especificações contratuais constantes da CARTEIRA DE IDENTIFICAÇÃO DOS ASSOCIADOS DA UNIMED-BH e do SISTEMA NACIONAL UNIMED e pelas guias de autorização de procedimentos médico-hospitalares, os seguintes serviços:

b) Medicação prescrita pelo médico assistente

Os contratos em apreço também expressam de forma clara qual seria a forma de pagamento dos medicamentos:

3.1 – Os produtos farmacêuticos prescritos e utilizados no período de internação serão pagos de acordo com os valores constantes da Tabela BRASINDICE, adotando-se como referência o "PREÇO DE FÁBRICA" acrescidos do percentual de 35% (trinta e cinco por cento) ou, na inexistência desta referência, o "PREÇO MÁXIMO AO CONSUMIDOR", com um redutor de 3,5 (três vírgula cinco por cento).

Os instrumentos contratuais também destacam que eventuais modificações nas tabelas de remuneração por procedimentos devem compreender sempre a anuência expressa dos hospitais:

3.11 – À UNIMED-BH poderá, a qualquer momento, inserir outros procedimentos na TABELA DE REMUNERAÇÃO POR PROCEDIMENTOS, anexo III, ou modificar os já existentes, desde que com a expressa anuência do CONTRATADO, o que se fará mediante a alteração do Anexo III deste instrumento.

Neste particular ainda dispõe os aludidos contratos:

10 – As tabelas de preços especificadas neste contrato serão revistas anualmente, com base na variação de custos verificada no período ou, a qualquer momento, de comum acordo entre as partes, após as devidas negociações, caso constatada essa necessidade através da planilha de custos efetivamente apurados, visando o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, para continuidade da prestação de serviços.

Outro dispositivo contratual que merece destaque é o que diz respeito a impossibilidade de a ré vir a impor alterações em pontos que envolvam ofensas a deveres éticos e legais para com o paciente, cumpre transcrever:

13.3 – A UNIMED-BH não pode em hipótese alguma, obrigar ou induzir o CONTRATADO a descumprir normas técnicas regulamentadoras e legislações vigentes emanadas por órgãos governamentais, fiscalizadores ou definidores de padrões técnicos, pertinentes às atividades na área hospitalar e de saúde, bem como o compromisso e deveres éticos e legais para com o paciente.

Cotejando todos os dispositivos contratuais supra transcritos com a conduta maledicente levada a cabo pela ré, depreende-se que a mesma afronta não apenas os ditames legais vigentes, mas os próprios pactos contratuais firmados diretamente com os hospitais.

Tal fato é plenamente suficiente para demonstrar qual o tratamento comumente despendido pela ré aos seus "parceiros contratuais", qual seja, de desrespeito e inobservância às disposições avençadas entre as partes.

Também restou evidenciado não existirem cláusulas contratuais autorizadoras das condutas cometidas pela ré. Ademais, mesmo que tais cláusulas se fizessem presentes nos aludidos contratos, estas deveriam ser consideradas nulas de pleno direito, visto que os contratos em questão configuram-se como típicos contratos de adesão nos quais a única vontade que prevalece é a da empresa ré.

Ao que parece, trata-se, na verdade, de uma atitude motivada exclusivamente pela busca de redução das despesas hospitalares a qualquer preço.

Não se nega que ocorre ainda na espécie uma hipótese de abuso de direito, considerando, outrossim, as peculiaridades da relação jurídica estabelecida, estando em jogo interesses constitucionalmente protegidos, como o direito subjetivo do cidadão à saúde.

Incumbe à ré o dever jurídico de agir de forma leal, sendo vedado a esta impor ao outro parceiro contratual prejuízos injustificáveis, sob pena de violação ao princípio da boa fé objetiva, razão pela qual conduta como esta deve ter sua validade elidida pelo Poder Judiciário.

Cabe ainda ser invocado ao caso dos autos o instituto do pacta sunt servanda que resulta na força obrigatória dos contratos e segundo o qual o contrato faz lei entre as partes.

A respeito da força obrigatória dos contratos o Jurista Orlando Gomes preceitua que:

"celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos."

Segundo Maria Helena Diniz, tal princípio se justifica porque "o contrato, uma vez concluído livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo um a verdadeira norma de direito".

Já para Cláudia Lima Marques, a vontade das partes é o fundamento absoluta da força obrigatória. De acordo com a jurista, "uma vez manifestada esta vontade, as partes ficariam ligadas por um vínculo, donde nasceriam obrigações e direitos para cada um dos participantes, força obrigatória esta, reconhecida pelo direito e tutelada judicialmente."

Por força dos ensinamentos supra, resta à ré o dever legal de respeitar os preceitos contratuais que impedem modificações unilaterais do contrato e que dispõem que eventuais alterações devem ser alcançadas de comum acordo entre as partes contraentes.

Não há que se falar, no caso em tela, em aplicação da teoria da imprevisão ou cláusula rebus sic stantibus, uma vez que inocorreu hipótese de alteração do equilíbrio contratual por meio de fato superveniente imprevisível. Vale aqui frisar que se existe algum desequilíbrio não é em relação a Unimed e sim os Hospitais que, conforme já mencionado, recebem pagamentos da ré, como diárias, taxas, com uma defasagem em razão da ausência de correção monetária dos valores, não obstante as previsões contratuais, há mais de 4 anos. A medida adotada pela ré, objeto de discussão nos autos, é a "gota d’água" de uma série de imposições da empresa que se prolongam no tempo gerando indubitavelmente uma condição de desequilíbrio econômico-financeiro para as entidades hospitalares.

O jurista Arnoldo Medeiros da Fonseca aponta quatro principais requisitos necessários à aplicação da teoria da imprevisão: a) o diferimento ou a sucessividade na execução do contrato; b) alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação ao momento da celebração do contrato; c) excessivas onerosidade para uma parte contratante e vantagem para outra; d) imprevisibilidade daquela alteração circunstancial.

No caso dos autos não se percebe a presença de qualquer dos requisitos supra de modo a justificar uma modificação contratual unilateral como pretende fazer valer a ré. Se houve qualquer desequilíbrio que pudesse alterar as condições contratuais, este por certo se deu em desfavor dos hospitais conveniados e não da ré.


DA COMPETÊNCIA PARA REGULAMENTAR E FISCALIZAR OS MEDICAMENTOS

A Saúde teve um tratamento especial por parte da Carta Magna de 1988, sendo assegurada no artigo 196 como um direito de todos e dever do Estado. No dispositivo subseqüente, qual seja, artigo 197, as ações e serviços de saúde foram elevados ao status de relevância pública, figurando como atribuição do Poder Público "dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado."

A Constituição Federal ainda determinou, em seu artigo 200, ser competência do SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, nos termos da lei infraconstitucional, "controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos".

A Lei 8080/90 veio regulamentar os aludidos mandamentos constitucionais dispondo sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes em todo o território nacional. É conclusivo o referido texto legal acerca da competência exclusiva do Poder Público, representado pelo SUS na esfera da vigilância sanitária, pela regulamentação de equipamentos e insumos, incluído os medicamentos, facultando o mesmo diploma apenas a possibilidade de execução dos serviços e ações voltadas para a saúde. Vale transcrever os dispositivos correspondentes:

"Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I - a execução de ações:

a) de vigilância sanitária;

(...)     

VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção;

VII - o controle e a fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde;

(...)

§ 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo:

I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e

II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.

(.......)

Art. 20. Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde.

Art. 21. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

Art. 22. Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento." (grifos nossos)

Portanto, resta induvidoso ser atribuição do Poder Público fomentar políticas relacionadas a distribuição e fabricação de medicamentos, incluindo a fiscalização da qualidade e segurança dos fármacos.

Afigura-se, pois, inadmissível a conduta adota pela ré, que além de infringir disposições dos contratos firmados com os Hospitais, ignora preceitos legais, inclusive de ordem constitucional, adotando uma prática agressiva que nem seria admissível caso implementada pelo Poder Público. Isso porque toda a regulamentação legal adotada pela administração pública até a presente oportunidade pautou-se por uma política de incentivo ao consumo dos medicamentos genéricos, mas nunca de uma imposição forçada na sua aquisição.

Note-se pelo disposto no artigo 22 da Lei 8080/90 que as pessoas jurídicas de direito privado deverão respeitar os princípios éticos e as normas expedidas pela direção do Sistema Único de Saúde. Revela-se, na ocasião, momento oportuno para invocar os princípios éticos do exercício da medicina, segundo os quais os médicos, verdadeiros responsáveis pela identificação de diagnósticos, não podem sofrer qualquer tipo de imposição ou limitação que prejudiquem o livre exercício da profissional, assunto este que será tratado adiante.

Sobre os autores
Daniel Diniz Manucci

advogado em Minas Gerais

Roberto de Carvalho Santos

Advogado em Belo Horizonte (MG).

Kátia Rocha

advogados em Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANUCCI, Daniel Diniz; SANTOS, Roberto Carvalho et al. Ação contra plano de saúde que paga os medicamentos aos hospitais com base na tabela de preços dos genéricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16536. Acesso em: 16 set. 2024.

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