Capa da publicação Quilombo: sentidos de colonialidade na ADI 3239
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Disputa de sentidos do conceito de quilombo.

Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239

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4 REFLEXÕES DECOLONIAIS FINAIS

Esta pesquisa qualitativa analisou, sob a perspectiva de colonialidade e decolonialidade, o conceito de quilombo que foi disputado no campo jurídico, autonomizado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 3239.

Na referida ação, o Partido Democratas pretendia que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, editado para regulamentar o artigo constitucional quilombola – art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988.

O julgamento da ADI 3239 encerrou-se em 8 de fevereiro de 2018, portanto, 14 anos após o seu ajuizamento. Apenas o relator da ação, Cézar Peluso, votou a favor do pedido dos Democratas. Votaram pela constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 as ministras Rosa Weber, Carmem Lúcia, e os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio, Celso de Mello57.

No entanto, Dias Toffoli e Gilmar Mendes adotaram o entendimento, minoritário, de que apenas as comunidades que se encontravam de posse de suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição republicana, ou que comprovassem a suspensão ou a perda da posse em função de atos criminosos praticados por terceiros possuiriam o direito ao título de propriedade.

Dessa forma, o giro decolonial grafado em algumas partes do texto do Decreto 4.887/2003, materializado, principalmente, pelos critérios da autoatribuição e pela territorialidade, manteve-se incólume na leitura que os ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram da mencionada norma jurídica.

Dissipa-se, portanto, em parte, o olhar do colonizador sobre as comunidades quilombolas. Anteriormente tipificadas como crime, agora sinalizam um direito que se adquire pela posse de terras. Em um solo praticamente ocupado por brancos, os quilombos enegreciam as terras brasileiras. É disso de que se tratavam as comunidades quilombolas: a luta de homens negros e de mulheres negras contra a desumanização e por terra onde pudessem cultivar os seus modos de criar, de fazer e de viver.

A orientação teórica foi oriunda do pensamento do grupo modernidade/colonialidade que possibilitou lançar olhar sobre esta realidade para perceber que as regras ditadas pelas instituições do Brasil Colônia e do Brasil Império em relação às negras e aos negros foram revogadas como normas. Todavia, a colonialidade do poder, do saber e do ser ainda determina quais são os papéis e os lugares destinados à comunidade negra na organização social. Ainda os mantêm na desigualdade e os trata como seres inferiores.

A colonialidade desconhecendo, pois, qualquer barreira, porventura existente, entre Colônia, Império e República, assenzala os negros e as negras nas periferias, nas favelas, nos manicômios e nos presídios. Não há no direito contemporâneo brasileiro regramento que considere os afrodescendentes como objeto, mas a colonialidade os desumaniza, os coisifica, por meio da miséria, do analfabetismo, do aprisionamento e de outras inúmeras barreiras sociais. Os indicadores sociais brasileiros afirmam: corpos negros são descartáveis.

Em um primeiro momento, os quilombos reagiam contra a coisificação e contra a desumanização desencadeadas pelo direito; agora, são instrumentos de luta ante a continuidade desse processo de negação da humanidade de homens negros e de mulheres negras provocada pela colonialidade.

A quilombagem de Clóvis Moura e o quilombismo de Abdias Nascimento revelam que os mecanismos de resistência negra à colonialidade não ocorrem de forma singular, ao contrário, são múltiplos, diversos, envolvendo cores, sons, silêncios, articulações diferentes, embora todos expressem a força simbólica do significado de um quilombo. Por isso, o RAP, as escolas de samba, as ocupações dos sem-terra são quilombos. Ousa-se dizer aqui que os brincantes do bumba meu boi, do samba de cumbuca, do pagode do Mimbó, do tambor de crioula são expressões quilombolas.

Os quilombos representam, pois, a decolonialidade, uma vez que subvertem as hierarquias, os lugares e os papéis tipificados pela colonialidade e um giro decolonial ao valorizar os saberes e os sabores das comunidades quilombolas.

Os quilombos materializam, portanto, a resistência à classificação imposta pela colonialidade e a seus mecanismos de poder, de controle e de reprodução social. Assim, a inclusão do artigo constitucional quilombola no texto constitucional representa a decolonialidade. Onde há colonialidade, há quilombos.

A experiência da comunidade negra na luta contra a opressão da colonialidade do poder encontra-se estampada na principal lei da República. Por isso, não há como esquecer essa tática negra de resistência. Há uma norma que garante terras às comunidades negras quilombolas envoltas a outras que divinizam a propriedade privada e que elevam a livre concorrência como princípio da atividade econômica brasileira.

Na verdade, cuida de um leve giro decolonial. A própria localização da norma constitucional quilombola, incluída entre aquelas que constituem o corpo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, demonstra que a colonialidade encontrava-se atenta para as movimentações efetuadas pelos quilombolas, reagindo oportunamente.

Do mesmo modo, o Decreto 4.887/2003, cujo conteúdo anuncia um giro decolonial, sofreu uma oposição sistemática da colonialidade, por meio do ajuizamento de uma ação judicial: a ADI 3239.

Não se pode esquecer que como texto decolonializado, sua interpretação, e, portanto aplicação, encontra-se sujeita à visão de mundo de instituições formatadas na colonialidade. Esta foi a aposta do Partido da Frente Liberal, atual Democratas. A tática adotada pelo DEM parecia acertada, uma vez que o relator da ADI 3239, Cézar Peluso, considerou que o Decreto 4.887/2003 feria a Constituição.

Em seu voto, Peluso destila colonialidade. Em primeiro lugar, entende que o artigo 68 do ADCT não é uma norma de eficácia plena e de aplicação imediata e que o Decreto 4.887/2003 seria responsável pela desestabilização da paz social. Pondera, ainda, que as comunidades quilombolas deveriam comprovar que haviam procurado abrigo nas terras que, agora, reclamavam como suas, antes ou logo após a abolição, e lá permanecido até a promulgação da Constituição de 1988.

Eis a colonialidade materializada no voto de Cézar Peluso: os quilombos expressam um fenômeno social que findou com o fim do regime escravocrata em terras brasileiras. Os negros e as negras fugiam para conquistar a tão sonhada liberdade.

No entanto, os discursos de Rosa Weber e de Dias Toffoli que floram da ADI 3239, embora dúbios, contraditórios, apontam para uma visão decolonial da resistência negra coletiva. É a partir deles, principalmente, que emergem da ADI 3239 o conceito decolonial das comunidades quilombolas. Quilombo é toda comunidade negra que se autoidentifica como tal, independentemente, portanto, de elaboração de laudo antropológico ou de quaisquer outras espécies de perícia administrativa ou judicial para avaliar a veracidade de tal afirmação. E pelo fato de o artigo 68 do ADCT abrigar um direito fundamental, cabe ao Estado organizar sua estrutura administrativa a fim de titular a parcela das terras que a comunidade, baseada em critérios de territorialidade, identifica como integrante do quilombo.

Dessa forma, torna-se perceptível dos discursos textuais da ADI 3239 que os quilombos são direitos humanos de negros e de negras brasileiras que se expressam coletivamente na luta contra a violação da dignidade da pessoa humana negra. Direitos que são violados cotidianamente pelas situações simbólicas e reais concebidas pela colonialidade.

Deveras, a colonialidade está sempre à espreita. Entende-se, aqui, por exemplo, que, embora a ação proposta pelo DEM tenha sido julgada improcedente, a perspectiva decolonial, como texto, expressa no artigo constitucional quilombola, encontra-se sob o risco de ter sua eficácia esvaziada pela colonialidade do poder.

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As razões são diversas. O decreto 4.887/2003 abriga apenas uma das experiências das comunidades de quilombos. Há outras manifestações quilombolas, conforme apontam Abdias Nascimento e Clóvis Moura, não protegidas por aquela norma; a medição e a demarcação das terras, ainda que se respeitem os critérios de territorialidade indicados pela comunidade de quilombos, requer uma instrução procedimental em que a narrativa quilombola pode ser negada ou violada pelo conhecimento científico; a própria existência do decreto 4.887/2003 enfraquece o entendimento de que o artigo 68 do ADCT comporta uma norma garantidora de um direito fundamental e de eficácia plena, portanto, despido da necessidade de integração legislativa.

Depreende-se, portanto, que a colonialidade do poder, define, em sua maior parte, os papéis e os lugares sociais que os negros e as negras ocupam na sociedade brasileira. Mas não só isso: permanece sobre seu controle a quantidade da parcela do solo que será destinada às comunidades quilombolas e, ainda, qual a espécie de conhecimento que serve para aquilatar as falas e as experiências de homens negros e de mulheres negras. A autoatribuição é decolonial, mas a territorialidade, disciplinada no Decreto 4.887/2003, excreta colonialidade do poder, do saber e do ser.

A ambiguidade que o Decreto 4.887/2003 guarda em si talvez seja pelo fato de que a atual Constituição brasileira não propôs, explicitamente, como o fez a Constituição boliviana de 2009, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada na decolonização. Embora isto não fosse o bastante para resgatar a humanidade roubada de milhões de pessoas negras, pelo menos apontava um caminho epistêmico a ser trilhado, e, sem dúvida, assim como ocorre na Bolívia, a condição de colonialidade não estaria superada, cabendo a exigência de resistência permanente.

Independentemente de tudo isto, os quilombos continuam sendo instrumentos de resistência à colonialidade. Se, no campo jurídico, revela-se predominante intelectual, no dia a dia são as comunidades quilombolas que dão o tom rebelde. Na verdade, o giro decolonial se traduz em cores e sons diversos.

Por isso, o pensamento decolonial abriga infindas possibilidades de pesquisa social, uma vez que a colonialidade do poder, a partir de uma classificação racial, atua em cada um dos planos, dos âmbitos e das dimensões materiais e subjetivas da existência de homens negros e de mulheres negras.

É preciso, pois, decolonizar o olhar, o agir. A percepção da colonialidade do poder não permite neutralidade, ainda mais para quem tem a pele escura, como o autor da presente pesquisa. Não se pode esquecer que a colonialidade classifica os negros e as negras como seres inferiores, desprovidos de quaisquer saberes, ou mesmo de alma.

Por isso, esta pesquisa trouxe as falas de pessoas negras que escreveram sobre a escravização e sobre o fenômeno quilombola, destacando, aqui, Maria Sueli Rodrigues de Sousa (2015), Débora Cardoso (2014), Solimar Oliveira Lima (2016), Francisca Raquel Costa (2014) e Mairton Celestino da Silva (2014). Negros e negras piauienses que enfrentam a colonialidade do saber.

Ao longo destas páginas, há algumas lágrimas negras, mas há, também, a certeza da necessidade de continuar resistindo à colonialidade do poder, do saber e do ser e que o caminho a ser trilhado foi aberto pelo primeiro homem negro e pela primeira mulher negra que fugiu para as matas para organizarem coletivamente os quilombos.


Apêndices - CATEGORIZAÇÃO DOS DISCURSOS TEXTUAIS

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas. APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina. APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso. APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber. APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli. APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República. APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público.

Legenda: Colonialidade do poder – Colonialidade do saber – Colonialidade do ser

APÊNDICE A – Petição Inicial do Partido Democratas

  • A demarcação das áreas, antes de levar em conta critérios históricos-antropológicos, será realizada mediante a indicação dos próprios interessados (art. 2º, § 3°).
  • O ato normativo ora contestado refoge – e muito á matéria de que trata o mencionado dispositivo, pois disciplina direitos e deveres entre particulares e administração pública, define os titulares da propriedade das terras onde se localizam os quilombos, disciplina procedimentos de desapropriação e, consequentemente, importa aumento de despesa.
  • Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer a futuras indenizações.
  • A toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional .
  • Segundo a letra da Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos.
  • Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes-, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aquelas que efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT, e realizar, por via oblíquas uma reforma agrária sui generis.
  • Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição.
  • De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional “suas terras” constante do art.68 do ADCT.
  • Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país.
  • A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados.
  • Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural.
  • Parece evidente que as áreas a que se refere a Constituição consolidam-se naquelas que, conforme estudos histórico-antropológicos, constatou-se a localização efetiva de um quilombo.
  • Trata-se, na prática, de atribuir ao pretenso remanescente o direito delimitar a área que lhe será reconhecida. Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição.
  • A área cuja a propriedade deve ser reconhecida constitui apenas e tão-somente o território em que comprovadamente, durante a fase imperial da história do Brasil, os quilombos se formara.
  • Ademais, ter-se-ia o uso de recursos públicos por ocasião de indenização decorrentes de desapropriações realizadas ao arrepio da Constituição.

APÊNDICE B – Manifestação do Estado de Santa Catarina58

  • O Estado de Santa Catarina, como ente político, se insere no rol amplo de legitimidade, notadamente por se tratar de interesse difuso, [...] ademais, possui em seu território remanescentes das comunidades de quilombos cujos direitos sobre as terras que estejam ocupando pretende ver reconhecidos dentro do disposto pela norma constitucional, como também pretende ver respeitado o direito às demais formas de propriedade constitucionalmente asseguradas.
  • O Ato Executivo em análise pretende regulamentar direta e imediatamente preceito constitucional, com isso, transborda os limites do art. 84, IV e VI da Constituição Federal, já que disciplina direitos e deveres entre particulares e a administração pública, define os titulares das terras onde se localizam os quilombos, além de, criar nova forma de desapropriação, o que importa em aumento de despesa, sem previsão constitucional ou legal.
  • Faz tábula rasa do direito à propriedade (CF, art. 5.o., XXII) e cria nova forma de desapropriação, alargando os limites constitucionais ao direito de propriedade, sem previsão constitucional ou legal (CF, art. 5.o.,XXIV).
  • 9. – A competência para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis não pode ser compreendida como a competência para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo, com a criação de direito novo com a imposição de ônus aos particulares, melhor dizendo, não se reveste o Decreto de meio idôneo, para restringir direitos ou criar obrigações.
  • 13- O Decreto viola também o princípio da legalidade, inscrito no caput do art. 37 da Constituição Federal, pois o administrador público deve fazer o que a lei determina, não cabe a ele ditar a lei, existindo espaço para a discricionariedade, notadamente, quando se trata de invadir Direitos individuais.
  • 16 – O Decreto 4.887/2003, de 21 de novembro de 2003, ofende o princípio do contraditório e da ampla defesa assegurado pelo art. 5.o. LV da Constituição Federal, ao prever a presunção absoluta, no art. 8.o., parágrafo único, estabelecendo que haverá concordância tácita dos interessados e demais órgãos no caso de não haver impugnação do procedimento administrativo conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
  • 18. – Ademais, como vimos acima, o procedimento regulado pelo Decreto impugnado, aceita, para a apuração dos fatos que às pessoas supostamente remanescentes dos quilombos, assim se auto-declarem, como também aceita que essas mesmas pessoas que assim se autodeclararam, faça a indicação da área de terras a lhes ser titulada.
  • 19. – Ora, dessa forma, admite a norma impugnada que os interessados se declarem remanescentes dos quilombos, por vontade própria, sem estudo antropológico que possa verificar essa situação, e, a partir desse primeiro pressuposto também declarem qual a área de terras que pretendem ver reconhecida e por outro lado, na ausência de impugnação, considera como tacitamente aceito por terceiros que possam ser proprietários dessas áreas.
  • 25. – Para fins do art.68 do ADCT da Constituição do Brasil não há necessidade de desapropriação, trata-se apenas, de titular a propriedade definitiva aos remanescentes dos quilombos, que já a possuíam no momento da promulgação da Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988.
  • 27. A Constituição Federal assegurou uma realidade fática anteriormente existente, atribuindo ao Estado apena o dever de emitir o respectivo documento público, todavia, o malsinado Decreto aparentemente, sobrepõe direitos e cria conflitos de interesses, onde antes havia paz social.
  • 30. Como se observa a atribuição dada pelo art. 13.o. do Decreto impugnado, ao INCRA, viola o direito de propriedade e cria nova modalidade de desapropriação, com a perda definitiva da propriedade, pelo particular, sem amparo, na Constituição Federal ou na lei.
  • 33. Trata-se, pois, de inconstitucionalidade manifesta do Decreto 4.887/2003, que maltrata direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Política de outubro de 1988, que reclama a autuação urgente desse Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal.

APÊNDICE C – Voto do Ministro Cézar Peluso59

  • E, antes de adentrar-lhe o mérito, registro que, apesar de muitos pedidos para a realização de audiência pública, não descobri razão que a justificassem, à luz da própria legislação de regência desse instituto.
  • Ora, a toda evidência, a causa encerra matéria de direito. Os autos estão fartamente instruídos, e não há tema que envolva complexidade técnica.
  • Bem mais expressivas são, aliás, neste caso, as muitas contribuições dos amici curiae admitidos, pois que tais manifestações prescindem de reconhecido “notório saber” em qualquer área de conhecimento.
  • Por resumir, não obstante o artigo 68 do ADCT não seja norma de eficácia plena e imediata, [...]
  • Também a mim me impressionaram os trabalhos de respeitados antropólogos e juristas, dentre os quais relevo aquele desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Direito Público, para a Fundação Palmares, sob a coordenação do Professor CARLOS ARY SUNDFELD, e que consubstancia ampla análise do tema, sob os aspectos constitucional e administrativo. É admirável o esforço que desenvolveram, em ambos as áreas do conhecimento, numa perspectiva tão humanista quanto de apurada consciência social.
  • São aqueles que subsistiam nos locais tradicionalmente conhecidos como quilombos, entendidos estes na acepção histórica, em 05 de outubro de 1998. Noutras palavras: os que, tendo buscado abrigo nesses locais (quilombos), antes ou logo após a abolição, lá permaneceram até a promulgação da Constituição de 1988.
  • Já que tange ao conceito de quilombos, [...] é seguro afirmar que, para os propósitos do art. 68 do ADCT, o constituinte optou pela acepção histórica, que é conhecida de toda a gente. Dos Dicionários da língua portuguesa, Aurélio Século XXI e Houaiss, retiram-se as seguintes definições, respectivamente:
  • Reafirmo que os respeitáveis trabalhos desenvolvidos por juristas e antropólogos, que pretendem ampliar e modernizar o conceito de quilombos, guardam natureza metajurídica e por isso não têm, nem deveriam ter, compromisso com o sentido que apreendo ao texto constitucional.
  • Também não creio que os destinatários da norma sejam necessariamente as comunidades.
  • Embora, a rigor , seja desnecessário nomear essa forma de aquisição de propriedade, disciplinada pelo artigo 68 do ADCT, é de se reconhecer que suas características muito a aproximam do instituto de usucapião, como bem notou CLÁUDIO TEIXEIRA:
  • [...] a) característica não prospectiva, no que respeita ao termo inicial da posse, necessariamente anterior à promulgação da Constituição de 1988;
  • Já ficou fora de dúvida que as terras a serem tituladas são aquelas cuja posse é secular.
  • Convencido da inconstitucionalidade do diploma impugnado, não posso, todavia, furtar-me a sopesar, com igual atenção, o crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer, se já a não trouxe. É que o nobre pretexto de realizar justiça social, quando posto ao largo da Constituição, tem como conseqüência inevitável a desestabilização da paz social, o que o Estado de Direito não pode nem deve tolerar. Antes, deve afastar, como é óbvio.
  • Do exposto, julgo procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade do Decreto 4.887/03.

APÊNDICE D – Voto do Ministra Rosa Weber60

  • Destaco, a propósito, que a contemporânea doutrina constitucional alemã distingue, na prática jurisprudencial do Tribunal Constitucional, a declaração de constitucionalidade propriamente dita da constatação declaratória de constitucionalidade.
  • O objeto do art. 68 do ADCT é o direito dos remanescentes das comunidades dos quilombos de ver reconhecida pelo Estado a sua propriedade sobre as terras por eles histórica e tradicionalmente ocupadas.
  • Nele definidos, como destaca a melhor doutrina, o titular (os remanescentes das comunidades de quilombos), o objeto (as terras por eles ocupadas), o conteúdo (o direito de propriedade), a condição (ocupação tradicional), o sujeito passivo (o Estado) e a obrigação específica (emissão de títulos).
  • Para os efeitos do Decreto 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola é atestada pela certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2º, III, da Lei 7.666/1988.
  • A consciência da identidade não se impõe de modo solipsita, não se imuniza ao controle social da legitimidade de sua pretensão de verdade.
  • Entendo que, se de um lado a falta de cuidado no seu emprego é um convite à irregularidade e ao oportunismo, de outro a sua recusa frustra a concretização de direitos constitucionais protegidos pela Constituição da República.
  • Assim, para os fins específicos da incidência desse dispositivo constitucional transitório, além de uma dada comunidade ser qualificada como remanescente de quilombo – elemento subjetivo que reside no âmbito da autoidentificação –, mostra-se necessária a satisfação de um elemento objetivo, empírico: a reprodução da unidade social que se afirma originada de um quilombo há de estar atrelada a uma ocupação continuada do espaço ainda existente, em sua organicidade, em 05 de outubro de 1988, de modo a se caracterizar como efetiva atualização histórica das comunidades dos quilombos.
  • Necessária a evidência da ocupação tradicional das terras reivindicadas, em caráter minimamente estável – sem o que, de resto, sequer se poderia cogitar de relação territorial específica.
  • Já a data de 13 de maio de 1888 não tem serventia metodológica à definição do status dos quilombos. A uma porque o próprio conceito de remanescente de quilombo nos dias atuais exige a reprodução contínua de uma comunidade que, originada da resistência à escravidão, permaneceu coesa até o presente.
  • Não invalida os títulos de propriedade eventualmente existentes, de modo que a regularização do registro exige o necessário o procedimento expropriatório.

APÊNDICE E – Voto do Ministro José Antônio Dias Toffoli61

  • Não há dúvida de que o preceito constitucional motivou-se na necessidade de se reparar uma dívida histórica decorrente da injustiça secularmente praticada contra os negros desde o período escravocrata brasileiro.
  • Trata-se de reparação concretizada no reconhecimento dos direitos de descendentes das comunidades dos antigos escravos à propriedade das terras por eles historicamente ocupadas.
  • Há de ressaltar o caráter inovador da Carta da República ao conceder especial atenção à relevância da raça negra e de suas manifestações culturais para a formação da sociedade brasileira, em especial ao reconhecer direitos territoriais a grupos étnicos e minoritários.
  • Nessa concepção, as comunidades remanescentes de quilombos constituem grupos étnico-raciais que compartilham certa identidade, baseada numa ancestralidade comum, em manifestações culturais com forte vínculo com o passado, em relações organizacionais próprias e em formas específicas de relacionamento com a terra.
  • Por outro lado, verifica-se que a impugnação do autor parte do entendimento equivocado de que o critério da autoatribuição seria suficiente para a titularização das terras, não acompanhado da utilização de critérios complementares para a identificação dos remanescentes de quilombo.
  • Por sua vez, embora seja idôneo estabelecer requisitos não contidos no dispositivo constitucional, de igual forma, não há de se interpretar o texto constitucional de forma a ampliar em demasia o seu comando.
  • Não há dúvida de que se trata de disposição constitucional transitória orientada a promover uma discriminação positiva, atribuindo vantagens especiais e extraordinárias a minorias oprimidas ao longo da história brasileira.
  • Para tanto, adotou a Constituição a solução específica, determinada e transitória, a qual deve ser adotada nos estritos limites do art. 68 do ADCT.
  • Diante dessa perspectiva, no meu sentir, a partir da leitura do dispositivo constitucional, foram contemplados com a titularidade aqueles remanescentes que estavam ocupando suas terras no momento da promulgação da Constituição de 1988.
  • De início, é importante destacar a posição topográfica do art.68 do ADCT, o qual, diversamente dos arts. 215, 216 e 231 da Constituição Federal, foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, não se podendo atribuir a essa disposição consagrados no texto definitivo da Constituição, por se tratar de comando transitório e excepcional destinado a solucionar situação verificada ao tempo da promulgação da Carta.
  • Não se deve, por outro lado, alargar o alcance do dispositivo constitucional para incluir entre as terras de propriedade dos remanescentes das comunidades dos quilombos áreas que não eram por eles ocupadas à época da entrada em vigor da Constituição de 1988.
  • Ora, Senhores Ministros, não vejo espaço normativo para a interpretação acima mencionada. Em verdade, estenderam-se para a demarcação das terras das comunidades remanescentes de quilombos os critérios constitucionais assegurados expressamente pela Constituição Federal às terras indígenas.
  • Em verdade, enquanto, para as terras indígenas, a Constituição adotou os critérios da imprescindibilidade e da necessidade, para os quilombolas, pautou-se pelo critério da ocupação. Dessa forma, não se deve alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e valores”, independentemente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais.Dessa forma, não se pode alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução da sua cultura e valores”, independente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais.
  • A meu ver, essa interpretação de “terras ocupadas” em aberto, admitindo inclusive a ampliação das faixas territoriais, de acordo com as necessidades da comunidade, não resolve inúmeras situações conflitivas às quais o comando constitucional buscou fim.
  • Bem se sabe que a questão da terra se apresenta historicamente conflituosa, cercada de fortes interesses e expectativas. Buscou a Lei Maior promover a paz fundiária, transformando as posses precárias dessas comunidades em domínio. Mas, para tanto, exigiu-se precisa definição dos limites territoriais destas terras a serem reconhecidas.
  • Deixar em aberto a possibilidade de definição desse território a partir de parâmetros de “necessidade” ou mesmo de sua ampliação futura, sem critérios objetivos, é conferir insegurança jurídica a relações já essencialmente conflituosas, enfraquecendo, desse modo, a estabilidade jurídica que se quis alcançar com o reconhecimento expresso do território dessas comunidades.
  • E a ausência de um marco temporal de ocupação servirá, nesse caso, de estímulo ao agravamento de conflitos fundiários.
  • Não há portanto, razão de ser na referida impugnação, tendo em vista que a indicação do território pelas comunidades interessadas não é critério isolado, precedendo à titulação das terras outras fases técnicas, inclusive com a emissão do Relatório Técnico de Identificação de Delimitação, com a observância de diversos critérios antropológicos e de natureza objetiva.
  • Contudo, não é ampliando o alcance do texto constitucional que se vai efetivar esse relevante direito. Pelo contrário, talvez tenha sido exatamente essa tentativa de se ampliar em demasia o seu alcance que tenha retardado e tornado ainda mais complexa a demarcação e a titulação definitiva dessas terras.
  • Entendo que essa é a interpretação que deriva diretamente do texto constitucional e que é passível de ser garantida e realizada pelo Estado brasileiro; nem mais, nem menos e sem idealismos ou falsa promessas.

APÊNDICE F – Parecer da Procuradoria-Geral da República

  • A rigor, não há uma questão de inconstitucionalidade em jogo. Evidencia-se, isso sim, uma controvérsia metodológica (se é que assim se possa considerar, na medida em que os mais recentes avanços da Antropologia ratificam os critérios estabelecidos no Decreto 4.887, de 2003), que há de resolver-se no âmbito da ciência antropológica, e não do Direito” (fls.112).
  • No presente caso, para a delimitação do conteúdo essencial da norma do art. 68 do ADCT, não pode o jurista prescindir das contribuições da Antropologia na definição da expressão “remanescentes das comunidades dos quilombos”.
  • Assim, o critério da auto-atribuição é considerado pela Antropologia como o parâmetro mais razoável para a identificação das comunidades quilombolas.
  • Nesse sentido, o critério utilizado pelo Decreto 4.887/2003 parece ser mais compatível com os parâmetros eleitos pelos estudos antropológicos para definição das comunidades quilombolas e de seus respectivos espaços de convivência.

APÊNDICE G – Manifestação do Instituo Pro-bono, Conectas Direito Humanos e Sociedade Brasileiro de Direito Público

  • Hoje, conforme a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quilombo é o termo utilizado para designar a herança cultural e material das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos, que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico, abrangendo toda a área ocupada e utilizada para subsistência, e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado.
  • A discussão sobre o reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas é parte de um processo histórico de valorização da cultura negra, que alcançou em 1988 importantes conquistas.
  • Prevê ainda a realização de trabalhos de campo para a produção do Relatório Técnico- Científico (RTC), determinando a localização da comunidade, a identificação e a descrição da área, conforme limites indicados pela comunidade, com base nas atividades econômicas e construções já existentes. Procede-se também ao diagnóstico jurídico do território auto-identificado, que consiste no levantamento de sua situação dominial, da situação jurídico-ambiental e da situação jurídica da comunidade, verificando se cabe ação de usucapião ou se é o caso de desapropriação.
  • Nestas discussões, a perspectiva antropológica mais recente tende a conceituá- las como grupos étnicos que existem e persistem ao longo da história como um "tipo organizacional". Esta interpretação só é possível através de uma pesquisa que privilegie o ponto de vista do nativo, isto é, descrevendo as suas auto-identificações, suas categorias de pertencimento à comunidade, suas representações e suas formas de organização social.
  • Ali se prevê o critério autoatribuição, mas também a necessidade de trajetória histórica própria, a dotação de relações territoriais específicas e a presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, critérios estes que se complementarão àquele. Essa idéia é reafirmada na regulamentação dos procedimentos administrativos do INCRA, feita pela sua Instrução Normativa 16/2004. Ali se repete esta prescrição dos beneficiários da política pública (art. 3°).
  • Não bastasse isso, outro aspecto do decreto em questão garante a sua constitucionalidade e legitimidade: é a instituição de procedimento administrativo escorreito, marcado especialmente pelos caracteres da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, publicidade e atendimento ao interesse público.
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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Joaquim José Ferreira. Disputa de sentidos do conceito de quilombo.: Decolonialidade e colonialidade no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7014, 14 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100146. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Sociologia do Centro de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Piauí como requisito para obtenção do título de mestre em Sociologia. Linha de pesquisa: Territorialidades, sustentabilidades, ruralidades e urbanidades. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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