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Alguns comentários sobre a Lei 9807/99

(proteção às testemunhas)

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01/11/1999 às 01:00
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Do Consentimento da Pessoa Protegida

Para que a pessoa seja beneficiada, é preciso que ela dê seu consentimento (§ 3º do art. 2º). O consentimento deverá ser reduzido a termo, e guardado no arquivo secreto pelo órgão executor, apesar da lei não exigir, mas será mais que conveniente. O acesso ao arquivo será estritamente restrito aos membros do Conselho Deliberativo, sendo aconselhável que até mesmo os funcionários por ventura existentes não tenham acesso ao mesmo, resguardando a intenção da lei na preservação do sigilo, essencial, como se percebe.

Se a Lei obrigasse a pessoa a participar obrigatoriamente do programa, além de tangenciar a inconstitucionalidade porque restringiria a liberdade sem haver processo nem crime, retiraria o fundamento que nos parece essencial ao desenvolvimento do programa, que é a colaboração da própria pessoa protegida para se manter sã e salva. Se obrigasse, seria um contra-senso, pois o programa protetivo só poderá ter sucesso se houver interesse efetivo da vítima ou da testemunha. O sucesso do programa passa pela colaboração das partes e também pela confiança que deve existir no programa, razão porque deve sempre haver preocupação de composição do órgão executor por pessoas que inspirem total confiança da sociedade de que não haverá nenhum escape de informações, nenhuma falha na segurança e nenhuma corrupção ou envolvimento dos membros com o crime, organizado ou não. Por isso mesmo a Lei escolheu membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, assim como pessoas que são reconhecidos pela honestidade e pela vontade de garantir os direitos humanos, representando os órgãos públicos e privados com atribuições neste sentido.

Como toda pessoa pode ser testemunha (art. 202, CPP), poderá haver casos em que até mesmo aqueles que não prestam compromisso (menor de 14 anos, doente mental, ascendente, descendente..., cf. art. 208 c/c 206, CPP) sejam intimados a comparecerem e prestarem esclarecimentos que poderão influenciar no convencimento judicial, até mesmo como indício. Nestes casos de incapacidade ou menoridade, o seu representante legal poderá dar a autorização, mas é importante destacar as dificuldades de cumprimento do programa de proteção se o representante legal não colaborar efetivamente com o órgão executor, diante da má vontade do menor ou do incapaz, que certamente existirão diante das restrições impostas.

A Lei, mui corretamente, previu a proteção para a vítima. Como se sabe, a mesma, por ter envolvimento emocional bastante forte com os fatos, muitas das vezes aumentando fatos para causar espécie no julgador, levado pelo ressentimento em relação ao agente e, por isso mesmo, não presta compromisso. Porém, a palavra da vítima, quando possível, é, quase sempre, o ponto de partida das investigações para, assim, arrecadar mais vestígios e chegar a outras provas, pois é ela a única que sabe exatamente como o crime ocorreu, quem é o agente ou suas características e possíveis testemunhas do evento delitivo. A partir do seu depoimento, as investigações têm um rumo mais ou menos definido, e até para o julgamento servirá de forte supedâneo para a condenação ou absolvição, quando há correlação com outros elementos probatórios. Quando se trata de crimes onde não há testemunhas, em lugar ermo (delito clandestino – qui clam comittit solent), cresce ainda mais a importância do depoimento da vítima, especialmente nos crimes sexuais ("Nos atentados contra a honra da mulher, a palavra da vítima é, em regra, precioso elemento de convicção, bastando para tanto que não haja prova contrária à sua precedente honestidade", cf. RT 220, pág. 92).

Nada mais justo, como se vê, proteger a própria vítima, e, neste caso, a fundamentação do Conselho Deliberativo será ainda mais fácil que no caso de testemunhas, tendo-se em vista que a vítima já foi alvo de atentado criminoso, certamente estando embutida a ameaça e a coação.


Participação do Ministério Público

O Ministério Público, mais uma vez, contou com a confiança do legislador, até mesmo porque deverá sempre defender os interesses individuais indisponíveis e, no caso, a vida da pessoa estará em jogo...

A maior participação do "Parquet" será mesmo a sua presença como um dos membros do Conselho Deliberativo, como se verá adiante. Porém, a Lei assegurou a participação do mesmo de outras formas, e uma delas é o parecer que deverá dar, obrigatoriamente, antes de se admitir a pessoa no programa de proteção. O art. 3º fala que toda admissão no programa ou exclusão dele será precedida de consulta ao Ministério Público sobre a existência dos fundamentos básicos (gravidade da coação ou ameaça à integridade física ou psicológica, dificuldade de preveni-las ou reprimi-las e importância para produção da prova).

A Lei fala que deverá haver consulta. Assim, não haverá inclusão e nem exclusão no programa se o Ministério Público, previamente, não analisar se existe ou não os fundamentos básicos (também para a exclusão: cessação dos motivos e incompatibilidade de comportamento da pessoa protegida). Não basta a simples intimação ou pedido de consulta, uma vez que um efetivo parecer será necessário sempre. Se houver desídia - o que é pouco provável em se tratando de Ministério Público -, o Procurador Geral deverá ser incitado pelo próprio membro do Ministério Público que estará no Conselho Deliberativo, ou por todos eles, para substituir o membro negligente.

A única hipótese de inexistência de prévia consulta ao Ministério Público é a proteção provisória, em caso de urgência (art. 5º, § 3º), mas até mesmo nestes casos, como é evidente, deverá haver um posterior parecer ministerial. Apesar do § 3º omitir a necessidade de consulta ao Ministério Público, em caso de proteção provisória, há de se interpretar o referido dispositivo em combinação com o art. 3º, devendo sempre a posteriori haver parecer do mesmo sobre a existência dos fundamentos básicos para a proteção.

O Ministério Público também está legitimado para pedir a admissão de alguma pessoa no programa (art. 5º, II). Se houvesse um efetivo controle externo da Polícia, como quer a Constituição, e não houvesse, como de fato há, omissão legislativa nesse sentido, já que houve veto de um pequeno resquício que se encontrava originalmente na Lei 8.625/93, art. 21, X e XI (LONMP), na parte que falava um pouco sequer sobre controle externo da atividade policial (salvo para o Ministério Público Federal, cf. Lei Complementar n. 75/93, arts. 9º e 10 que, apesar da vigência, certamente não realizou o intento constitucional por completo), a participação do "Parquet" seria mais efetiva, pois, acompanhando as investigações segundo uma eventual lei, saberia, diante da sensibilidade de seus membros, quando solicitar a proteção para determinada pessoa. É mesmo possível realizar o acompanhamento das investigações policiais e, apesar da polêmica, entendemos perfeitamente possível que as investigações sejam feitas diretamente pelo Ministério Público (como o próprio STF já deixou claro, mesmo rejeitando inicialmente a investigação pelo "Parquet", ao lembrar que não é de exclusividade da Polícia Judiciária a investigação, para, infelizmente, legitimar a investigação pelo próprio magistrado, em casos de organização criminosa), mas se houvesse uma lei que regulamentasse efetivamente o art. 129, VII, da CF/88, certamente não haveria qualquer tipo de dúvida e a participação nas investigações seria mais efetiva e bem mais legal e legítima. Mesmo assim, crescente é a procura direta ao membro do Ministério Público para que ele tome as providências, e também haverá procura do mesmo de pessoas que se sentem ameaçadas ou coagidas.

Na solicitação feita pelo Ministério Público, desnecessário a consulta ao mesmo, antes da admissão, mas somente quando, na própria solicitação, o "Parquet" já der seu parecer sobre os fundamentos básicos ditos no art. 2º. Se ele simplesmente fizer a solicitação, sem parecer sobre os fundamentos básicos, deverá ser consultado.

O Conselho Deliberativo não poderá, diretamente, requerer ao juiz criminal medida cautelar direta ou indiretamente relacionadas com a eficácia da proteção (art. 8º). Tal requerimento só poderá ser feito pelo Ministério Público. O Conselho Deliberativo poderá solicitar ao "Parquet" para requerer, e mesmo com a solicitação, pode o mesmo entender desnecessárias, já que não fica vinculado e não se trata de requisição. Obviamente que as medidas cautelares serão requeridas se houver base para o pedido, e o Ministério Público não faltará com a presteza e a vontade de efetivar a proteção. Foi até bom transferir o requerimento ao "Parquet", pois se trata de peça processual, onde há necessidade de técnica e de individualização do requerente, devendo sempre fundamentar o pedido com exposição da necessidade de alguma medida cautelar.

A Lei não dá legitimidade ao Ministério Público de requerer a mudança do nome completo da pessoa protegida. A própria pessoa protegida poderá requerer ao Conselho Deliberativo, e este deverá encaminhar o requerimento ao juiz competente para registros públicos (art. 9º, caput). O Ministério Público fará o papel de fiscal da lei, devendo ser ouvido sobre a possibilidade de mudança do nome (art. 9º, §2º), não sendo viável que ele mesmo peça a mudança do nome. Deverá ele estar atento ao resguardo de direitos de terceiros, como quer a própria Lei 9.807 (art. 9º, § 1º, "in fine"), e também a Lei 6.015/73 (art. 57, "caput"). É que com a mudança do nome completo da pessoa, algumas pessoas de boa-fé poderão ser prejudicadas, especialmente aquelas que tem com a pessoa protegida promessa de compra e venda e outros contratos e vínculos solenes com a mesma, além de necessidade de atenção para os sistemas de proteção do consumidor e bancos (SERASA, SPC, CADIN, BACEN...), de folhas de antecedentes para a Justiça Penal etc. Não pode também, neste ínterim, requerer a volta da pessoa a ter o nome original, já que deverá, da mesma forma, fiscalizar.

Entendemos que o Ministério Público tem legitimidade para requerer a exclusão da pessoa protegida do programa de proteção, apesar da omissão da Lei. A Lei 9.807/99 teve a preocupação de manter a competência exclusiva do Conselho Deliberativo para decidir, por maioria absoluta, sobre a exclusão da pessoa protegida do programa, em casos de cessação dos motivos que deram azo à proteção e também em caso de comportamento incompatível da pessoa protegida (poderá haver exclusão também se a própria pessoa pedir), cf. art. 10. No entanto, a Lei não falou nada sobre quem deveria esclarecer ao Conselho Deliberativo sobre a cessação dos motivos e sobre o comportamento da pessoa. Se o Ministério Público está acompanhando a proteção e está sabendo se existem ou não, ainda, os motivos, e também sobre o comportamento da pessoa, deverá, sim, solicitar o que bem entender, desde que fundamentado. O mesmo raciocínio vale também para se legitimar aqueles que já estão legitimados para pedir a admissão da pessoa no programa (juiz do processo, delegado do inquérito, órgãos públicos e privados com atribuição de defesa dos direitos humanos).

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Como se sabe, a Ação Civil Pública foi levada adiante, principalmente, pelo trabalho brilhante do Ministério Público, e não será diferente com a Lei de Proteção de Vítimas, Testemunhas e Acusados, se dele depender.


Da Solicitação Para Admissão no Programa

Como o Ministério Público, o delegado, o juiz e os órgãos públicos e privados com atribuições de defesa dos direitos humanos são os que se envolvem diretamente com pessoas que estão correndo risco de vida em função das ameaças e coações, eles são, junto com o próprio interessado, os legitimados para solicitar a proteção ao Conselho Deliberativo (art. 5º, I a V).

Apesar da Lei não falar especificamente sobre a necessidade de sigilo na solicitação, pela interpretação sistemática, inclusive tendo-se em vista os parágrafos 3º e 4º, outra não pode ser a conclusão em relação à solicitação senão a necessidade de sigilo. Até mesmo pela própria natureza da proteção, e do intuito da Lei, tudo deverá correr no mais absoluto sigilo, e a relação com a imprensa deverá ser cautelosa e, até, enérgica em relação a repórteres ávidos para cumprir o seu papel constitucional de informar a população, principalmente quando se sabe da existência de inúmeros repórteres policiais que, se não mais que as autoridades, ao menos do mesmo tanto sabem, em relação ao crime, à(s) testemunha(s) e à(s) vítima(s). Não se tratará de uma indelicadeza ou uma afronta ao direito constitucional de informação, mas a restrição de determinados jornalistas às informações será necessária, assim como necessária será a punição, tanto do jornalista como, também, do próprio membro ou funcionário que divulgar fatos que deveriam ser sigilosos. Pena a Lei não ter estabelecido penas para a divulgação das informações...

A solicitação é um pedido administrativo, onde não existe contraditório e nem ampla defesa. Trata-se apenas de demonstrar ao Conselho Deliberativo os fundamentos básicos já ditos. Não há conflitos de interesses (lide) e nem mesmo um caso penal, razão porque não haverá resistência. A solicitação é feita em face do Estado, existindo um pedido imediato, e não mediato. Deste modo, mesmo que na solicitação tenha que se fazer referência ao delito, à coação ou à ameaça que a motiva (art. 5º, § 1º), não é necessário, em absoluto, a participação do suposto criminoso, de forma que, assim, ficará mais fácil para o Conselho Deliberativo manter o sigilo necessário à solicitação. Será necessário, como se percebe, após a proteção, ou até mesmo durante ela, que se apure as ameaças, as coações e, possivelmente, a participação em falso testemunho ou algum tipo de constrangimento ilegal, se não ficarem consumidas pelo delito principal (consunção), mas não será necessária a participação do suposto ameaçador ou coator na solicitação administrativa da admissão no programa protetivo.

Desnecessários, para acompanhar a solicitação, informações ou documentos comprobatórios de sua identidade, estado civil, situação profissional, patrimônio e grau de instrução, e da pendência de obrigações civis, administrativas, fiscais, financeiras ou penais, e nem exames ou pareceres técnicos sobre a personalidade, estado físico ou psicológico do interessado. Tais informações serão necessárias se o órgão executor assim entender e, conseqüentemente, pedir, para melhor instrução do pedido (art. 5º, § 2º), como no caso de alguma dúvida surgida. Se o interessado se negar a colaborar, já é um indício de que ele não se acomodará nas restrições impostas quando da execução do programa protetivo. Porém, é obrigatório juntar ao pedido de proteção "a qualificação da pessoa a ser protegida e com informações sobre a sua vida pregressa, o fato delituoso e a coação ou ameaça que a motiva", cf. art. 5º, § 1º. Esses dados são necessários pela própria característica da proteção, pois deverá existir consciência da residência, da profissão, do estado civil, e da própria vida pregressa do interessado, para saber da sua personalidade e das suas eventuais passagens pela Polícia ou Justiça Penal. Se no pedido deve o interessado convencer o Conselho Deliberativo sobre a coação ou a ameaça à sua integridade física ou psicológica, sobre a dificuldade de preveni-las e reprimi-las, assim como a importância da prova que poderá produzir, evidentemente que no pedido deverá constar menção sobre o fato delituoso e sobre a coação ou a ameaça que a motiva, como quer a Lei.

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Sobre o autor
Bruno Cezar da Luz Pontes

analista processual do Ministério Público Federal de Goiás, advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Bruno Cezar Luz. Alguns comentários sobre a Lei 9807/99: (proteção às testemunhas). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1005. Acesso em: 19 abr. 2024.

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