Capa da publicação Caso André Valadão: empreendedorismo moral, profecias autorrealizáveis e as eleições 2022
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O caso André Valadão – empreendedorismo moral, profecias autorrealizáveis e as eleições de 2022

24/10/2022 às 18:35
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A única forma de se combater os pânicos morais é com informação.

Em um período marcado por guerras de narrativas, disseminação de informações falsas e manipulação da opinião através do medo, torna-se cada vez mais importante a divulgação de conteúdo crítico e bem fundamentado, que possibilite as pessoas identificar no discurso o empreendedorismo moral e a propagação de pânicos morais.

Ainda que não tenhamos tomado conhecimento do risco que esse tipo de discurso possa oferecer, apesar de ignorado pela maior parcela da população, o empreendedorismo moral e os pânicos morais são recorrentes no dia a dia, influenciando a criação de leis, julgamentos e até as eleições, pondo em xeque inclusive as instituições, e é nesse ponto que o caso do pastor André Valadão entra.

De início, devemos esclarecer o que de fato é um empreendedor moral, e o que é um pânico moral.

Comecemos por empreendedor moral, este termo foi cunhado pelo sociólogo e pesquisador americano Howard Saul Becker, professor na Northwestern University. Becker tem parte de sua obra acadêmica voltada para a criminologia, mais especificamente às teorias do rótulo e do desvio.

Ao nos apresentar a figura do empreendedor moral, Becker subdivide a espécie em duas categorias, o criador de regras e os impositores de regras. Em ambos os casos o empreendedor enxerga um mal que ameaça a sociedade e, por isso, ele precisa usar de todos os meios para corrigir esse mal. Segundo o autor, a visão de um empreendedor é a de que ele opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é valido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita [...] eles acreditam tipicamente que sua missão é divina.[1]

Assim, o empreendedor moral carrega a si próprio de um status messiânico e de uma missão imprescindível, extinguir um mal ameaçador da sociedade, estando livre pra utilizar qualquer meio ao alcance para chegar ao objetivo maior. Nesse ponto é importante dizer, algumas vezes o empreendedor moral realmente acredita em sua missão sagrada, mas em outras o empreendedor se utiliza dessa estratégia para ganhos pessoais ou políticos.

Pontos comuns de surgimento de empreendedores morais estão sempre ligados a setores conservadores, dentre eles a igreja. E a facilidade do surgimento desse tipo de discurso dentro das igrejas se dá através da exploração da fé e do medo das pessoas.

Stanley Cohen, criminólogo inglês estudioso dos pânicos morais, nos apresenta alguns assuntos recorrentes tais como abusos infantis rituais, abusos infantis em cultos satânicos, propagação das drogas, sexualização e violência nos meios midiáticos e etc.

Nessa esteira, Noam Chomsky, um dos maiores pensadores vivos, e professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts MIT, nos lembra do Pânico Vermelho, estratégia utilizada institucionalmente pelo governo americano através da Comissão Creel, durante a década de 1920, para influenciar na formação da opinião pública. Para o autor, durante todo esse tempo seu compromisso foi controlar a mente da população.[2]

Somados a esses assuntos, que também se encontram presentes na realidade brasileira, temos casos famosos como o kit gay, mamadeira de piroca, a perseguição de cristãos e a nossa própria versão de Pânico Vermelho, a venezualização do Brasil.

A verdade é que na maioria dos casos, as alegações feitas pelos empreendedores não passam de pura mentira, ou fantasia, e nos demais casos as afirmações são exageradas ou distorcidas, mas o fato que as une é que não retratam a verdade, se tratam apenas de pânicos morais sem razão nenhuma para existir.

Cohen define o que é pânico moral e gosto sempre de citá-lo quando falo sobre o assunto, visto que seu estudo sobre os acontecidos nas praias britânicas entre Mods e Rockers na década de 60 é referência no quesito pânico moral, e assim ele o define:

Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas aparece e é definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; nos meios de comunicação de massa sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada; editores, bispos, políticos e outros formadores de opinião se encarregam de erguer barricadas morais; são consultados especialistas reconhecidos que emitem seus diagnósticos e soluções; formas de lidar com a situação são elaboradas ou (mais frequentemente) utilizadas; então a condição inicial desaparece, diminui ou deteriora-se e torna-se mais visível. Às vezes, o objeto do pânico é bastante novo, e outras vezes, já existe há muito tempo, mas de repente aparece no centro das atenções. Às vezes o pânico passa e cai no esquecimento, exceto na memória popular e coletiva; outros, tem repercussões mais graves e duradouras, podendo levar a mudanças nas políticas legais e sociais ou mesmo na forma como a sociedade se concebe. (COHEN, 2017) (tradução nossa)

Observando o conceito apresentado, a princípio é possível estabelecer que no cenário político brasileiro de 2022 poderíamos encaixar ambos os espectros políticos como propagadores de pânico, mas não é bem verdade se analisarmos com mais atenção.

Podemos afirmar que apenas um dos lados da disputa propaga o pânico moral a partir da constatação da probabilidade do perigo efetivo, real, e do irreal. Dessa forma, se apenas um lado ameaçou de fato o equilíbrio entre poderes, inventa histórias de tráfico humano, prostituição, perseguições inexistentes contra cristãos em um país de maioria cristã, aparelha os órgãos de controle, induz o medo de coisas relativamente impossíveis de acontecer, institui a luta do bem contra o mal, se põe a frente de uma missão divina a fim de extirpar um mal, então é esse mesmo lado que está empreendendo moralmente contra a sociedade.

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Esse discurso não é novidade e é uma construção que tem colaboração da mídia, o que se pode observar é que desde a veiculação de casos com a ação penal 470, vulgo Mensalão, e a operação Lava-jato, vem se construindo uma espécie de marginalização dos setores progressistas a partir da generalização e do exagero.

A partir desse imaginário pré-constituído relembramos citação a Becker, para o empreendedor qualquer meio é válido para combater esse mal, inclusive passar por cima da lei, como em tese pode ser o caso do pastor André Valadão.

Ao divulgar um vídeo de retratação ao candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva, André Valadão pode ter incorrido no crime eleitoral previsto no artigo 348 do Código Eleitoral, o crime de falsidade de documento público para fins eleitorais

Art. 348. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro, para fins eleitorais:

Pena - reclusão de dois a seis anos e pagamento de 15 a 30 dias-multa.

Isso porque no vídeo o pastor aparece em posse de uma suposta decisão judicial proferida pelo Ministro Alexandre de Morais, através do Tribunal Superior Eleitoral TSE, que o obrigava a se retratar de uma série de mentiras ditas por ele sobre o candidato. Acontece que o TSE, em resposta a jornalistas, informou que nenhuma decisão fora proferida nesse sentido, em tese, parece configurada a hipótese do artigo 348.

Mas, para além da questão penal, que tem sido brilhantemente abordada por diversas pessoas, gostaria de focar aqui na estratégia por trás do vídeo: a construção da narrativa do pânico moral através das profecias autorrealizáveis.

É de conhecimento geral que, durante o atual período eleitoral, tem se construído a narrativa de que se o candidato petista ganhar as eleições iniciará a perseguição aos cristãos brasileiros e igrejas serão fechadas. Essas notícias têm se propagado pelas mídias sociais a fim de cooptar votos para o candidato indicado pelos líderes religiosos.

Ao gravar o vídeo com tom fúnebre, utilizando-se da suposta decisão judicial que o obrigava a fazer o desagravo, ele reforça a narrativa do pânico moral de perseguição aos cristãos de 2 formas:

  • Primeiro, ele demonstra estar fazendo uma coisa contra sua vontade, em favor de um mal a quem ele quer derrotar, e mostra que todas as forças estão contra eles, notadamente nesse caso o Judiciário. Não importa que a atitude do pastor tenha configurado crime, pois para o público alvo, e para ele mesmo, sua missão é divina, e mais uma vez reforçamos, vale qualquer coisa para barrar o mal.
  • Em segundo lugar, o relato de perseguição do Pastor se torna uma profecia autorrealizável, embora possa ter cometido um crime passível de pena privativa de liberdade, a partir do momento em que se decretar a prisão do líder religioso, ou que for tomada alguma medida restritiva de direitos como punição ou garantia, a verdade é que o pânico moral será reforçado.

Um acontecimento dessa natureza apenas confirma para o público do Pastor que a perseguição existe, e que todos eles são alvos, o modo de vida deles encontra-se ameaçado. Assim se constrói um consenso, calcificando a opinião da forma como foi moldada pelo empreendedor.

A única forma de se combater os pânicos morais é com informação, o papel da mídia de massa é preponderante nesse quesito, no estudo dos pânicos morais a mídia de massa é um dos fatores que aumentam a circulação e o alcance das narrativas, é mais do que hora desse papel ser invertido e a mídia se tornar uma ferramenta contra essa propagação. As ferramentas de checagem de fatos existem, mas seu alcance ainda é restrito, ela deve adentrar todos os espaços, como debates veiculados na televisão, propagandas políticas em rádios e TV, e até mesmo na internet. Quanto maior o alcance desse tipo de ferramenta, e quanto mais rápida for sua ação, se torna mais fácil a contenção dos danos causados.


Referências

BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

COHEN, Stanley. Demonios populares y <<pánicos morales>> Delincuencia juvenil, subculcuras, vandalismo, drogas y violência. Tradução: Victória de los Ángeles Boschiroli. Espanha, Barcelona: Editorial Gedisa, 2017.

CHOMSKY, Noam. Mídia: Propaganda política e Manipulação. Tradução de Fernado Santos. 1º ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

MEDEIROS, Davi. ESTADÃO: André Valadão simula ter sido obrigado pelo TSE a se retratar a Lula; tribunal nega existir sentença.Disponível em: <https://www.estadao.com.br/politica/pastor-andre-valadao-video-lula-aborto-tse-alexandre-moraes-censura/>. Acesso em: 20 out. 2022.

LEI Nº 4.737, DE 15 DE JULHO DE 1965. Disponivel em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4737compilado.htM > acesso em: 20/10/2022

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Sobre o autor
Renan Mariano da Silva

Estudante de Direito Pela Universidade Cruzeiro do Sul Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Execução Criminal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Renan Mariano. O caso André Valadão – empreendedorismo moral, profecias autorrealizáveis e as eleições de 2022. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7054, 24 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100740. Acesso em: 21 dez. 2024.

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