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A criminalização da bigamia no ordenamento jurídico moçambicano:

um exemplo de importação do direito penal ocidental

03/11/2022 às 08:54
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A tipificação da bigamia como crime não tem espaço no novo paradigma de sociedade.

Resumo: Na presente análise discutimos o crime da bigamia no Ordenamento Jurídico Moçambicano, com a intenção de perceber se o instituto jurídico supra preenche requisitos para a sua tipificação pelo Direito Penal Moçambicano, partindo do pressuposto que para a elaboração duma norma jurídica é importante observar os costumes locais. A criminalização da bigamia tem como base e fundamento os valores que outrora influenciaram todo o pensamento legislativo, referimo-nos aos princípios da Igreja e o nosso Direito é herança do colonizador, concebido com base nos costumes ocidentais. Concluímos que o crime de bigamia previsto no Direito Penal Moçambicano não procede, pois, a luz dos costumes das comunidades locais é aceite e não viola nenhum bem jurídico relevante e com dignidade constitucional.

Palavras chave: Bigamia, direito penal, bem jurídico.


Introdução

O Direito é complexo e com as suas múltiplas facetas que constituem uma das suas maiores dificuldades e exige dos seus cultores, mais do que qualquer outro ramo de conhecimento, uma variedade enorme de qualidades, por vezes até contraditórias, pois, ele pode ser visto sob muitos ângulos e é objeto de indagação filosófica. É nesta senda, que nos propusemos a indagar o crime da bigamia no Ordenamento Jurídico Moçambicano, no âmbito do amplo processo de estudo e reflexão do Direito Penal Moçambicano.

É sabido que o Direito se traduz em normas de conduta social, preceitos que regulam a convivência dos homens em sociedade, mediante a imposição de ações e abstenções (TELLES, 2010, p.25). Mas também é sabido que o Direito Positivo é obra humana e, como tal, contingente e variável, emana daqueles órgãos ou daquelas forças sociais que em cada momento tem competência para ditar normas, portanto, para formular regras de conduta obrigatórias e coativas. O Direito Positivo visa atingir os fins da justiça, os fins jurídicos, por isso, na sua conceção devem ser tomados em conta os costumes que estão em vigor.

O Direito Penal moçambicano tipificou a bigamia e estabeleceu como sanção a pena de prisão. Este articulado penal, parece-nos desajustado com a realidade local, pois, é do domínio de todos que em vários países africanos onde Moçambique é parte integrante, o fenómeno da bigamia é aceite com tanta normalidade desde dos tempos remotos.

A opção do legislador penal moçambicano, de tipificar uma prática aceite nas comunidades moçambicanas abre espaço para debates. Com o presente trabalho pretende-se encontrar resposta para a seguinte questão: A Ordem Jurídica Moçambicana ao estabelecer a criminalização da bigamia, estará o legislador a importar o direito penal ocidental?

É sobre esta questão que centraremos a presente análise de natureza teórica para compreender se esta prática fere o costume local e se estamos a conceber um direito penal genuinamente moçambicano, tipificando condutas que põem em causa os bens jurídicos das comunidades moçambicanas.

Bigamia no Ordenamento Jurídico Moçambicano

Bigamia é a situação, posição ou status de um indivíduo que é bígamo, isto é, mantém um vínculo sentimental com duas pessoas simultaneamente. Em geral, o conceito refere-se a alguém casado que contrai um outro casamento. A etimologia de matrimónio nos leva ao latim bigamus, uma palavra que se refere a quem se casa novamente. A origem mais distante, no entanto, é encontrada em uma noção grega que menciona um casamento duplo (SANTOS, 1999, p. 3).

A bigamia é autorizada em varias nações, como por exemplo, nos países do continente africano e do Médio Oriente, influenciados pela religião e fatores culturais. Nas culturas que praticam a monogamia conjugal, a bigamia é o ato de contrair um segundo casamento enquanto o primeiro não foi legalmente dissolvido e é tida como crime na maioria dos países ocidentais.

Para o cristianismo, a única modalidade possível de casamento é a monogamia, o regime que não tolera a existência de uma pluralidade de cônjuges. A partir dessa crença, em países com tradição crista, a bigamia constitui um crime, é uma conduta proibida por lei penal e suscetível de uma sanção. A legislação europeia e americana, só reconhece como casamento válido e legal os monogâmicos.

O Ordenamento Jurídico Moçambicano, optou por proibir a celebração dum novo casamento, enquanto não dissolvido o anterior, bem como criminalizar a bigamia, que também consiste em celebração de relações conjugais com vários parceiros. O crime de bigamia neste ordenamento jurídico é fruto da herança do colonizador, vem do Código Penal aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886.

Com a proclamação da Independência Nacional e a entrada em vigor da Constituição da República, a 25 de Junho de 1975, novos princípios estruturantes foram introduzidos, mas manteve-se intacto o Direito Penal. As alterações constitucionais de 1990 e de 2004 denunciaram a obsolescência e o desajustamento do Código Penal à realidade política, social, cultural e económica, mas as pequenas alterações introduzidas como consequência das novas ordens constitucionais acima referidas, mantiveram o crime da bigamia, pese embora ser uma prática aceite nas sociedades moçambicanas. O Código Penal, aprovado pela Lei nᵒ 35/2014, de 31 de Dezembro, fez uma mudança substancial, no entanto, foi também mantido o crime da bigamia, estabelecendo:

Artigo 206.  (Bigamia)

1.  Aquele que contrair segundo ou ulterior casamento, sem que se ache legalmente dissolvido o anterior, será punido com pena de prisão.

2 . Aquele que contrair casamento e tiver conhecimento de que é casada a pessoa com quem o contrai, será punido com a pena do número anterior.

Como foi mencionado, segundo vários doutrinadores o agente ativo do crime de bigamia em regra geral é a pessoa casada, e a pessoa solteira somente poderá ser responsabilizada por este tipo legal de crime, quando comprovado que teve conhecimento da situação conjugal da outra parte, conforme o previsto no nᵒ2 do artigo acima. Portanto, não há distinção entre quem contrai segundo casamento e quem contrai casamento com pessoa casada, são ambos punidos como autores.

Olhando para a natureza do ilícito, nos propomos a mencionar alguns aspetos fundamentais para melhorar a compreensão em relação ao objetivo deste ilícito. Como ensina Figueiredo Dias, este ilícito é constituído por três elementos fundamentais: o autor, a conduta e o bem jurídico (FIGUEIREDO DIAS, 2000, p. 295).

Analisando e qualificando este tipo legal de crime, constatamos que um dos elementos é o autor, que certamente constitui o sujeito fundamental, sem perder de vista que o articulado visa responsabilizar os dois autores. Como acima mencionamos, o agente deste tipo legal de crime é aquele que contrai um segundo casamento sem ter sido dissolvido o primeiro e também aquele que contrai matrimónio com pessoa casada.

Bem jurídico ofendido pelo crime da Bigamia

Na verdade, ao contrário de alguns crimes que não abrem espaço para alguma discussão em relação aos valores que visam proteger, como são os casos da vida no crime de homicídio, ou da propriedade no crime de furto, o fundamento do crime de bigamia merece alguma atenção pela sua ambiguidade que suscita questionamento. Segundo a doutrina, o bem jurídico ofendido na bigamia é a família e a ordem jurídica matrimonial, pressupostos do princípio de casamentos monogâmicos, pois, a estrutura familiar nas sociedades ocidentais fundam-se em ligações monogâmicas, uma cultura que não admite a bigamia, por isso, os seus ordenamentos estabelecem proibição de pessoas casadas contraírem novos casamentos. Foi nesta base, que a legislação civil apresenta como impedimento e as leis penais tipificam como crime a conduta daquele que, sendo casado, contrai novo vínculo matrimonial.

No entanto, são vários os autores que se tem pronunciado em relação a legitimidade do crime de bigamia e quase todos identificam a instituição família monogâmica como o bem jurídico a tutelar. Neste sentido, (CORREIA, 2014, p.120), considera que a norma deveria proteger não só esse bem jurídico, mas também os direitos pessoais e patrimoniais afectos ao primeiro cônjuge. No mesmo diapasão, (PEREIRA e LAFAYETTE, 2008, p. 237) defendem que considerando de igual modo essas duas vertentes da tutela de um bem jurídico que são supra individuais, poderá levantar-se a questão para perceber-se se este valor da família goza de um caracter coletivo, comunitário, ou se porventura, fere pura e simplesmente ao seio familiar. Os autores defendem que não sendo possível uma resposta categórica à questão de saber qual o bem jurídico do crime em questão, dada a pretendida natureza abstrata dos bens jurídicos-penalmente relevantes, importa então analisar o seu sustento constitucional.

No mesmo sentido, Figueiredo Dias também defende que de acordo com a visão do direito penal sobre o bem jurídico, que assenta invariavelmente numa base constitucional, é necessário então apurar qual o fundamento jurídico-constitucional que permite que o legislador atribuía ao comportamento bígamo como comportamento desviante. A criminalização da bigamia foi uma das formas de tutelar o instituto do casamento e por conseguinte a família. Porém, com as mudanças legais dos últimos tempos, em especial o reconhecimento da união estável e a união de facto, acabou por mergulhar o instituto casamento numa profunda contradição, porque na verdade, não existe diferença alguma entre casamento, união estável e união de facto, visto que todas configuram-se relações continuas, duradouras e com objetivo de constituição de família (FIGUEREDO DIAS, 2016, p, 107).

O bem jurídico ofendido é a família e ela deve ser compreendida não como modelo uniforme, mas de acordo com os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo. O Direito de família era o complexo de normas e princípios que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações entre pais e filho, o vinculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, curatela e da ausência. A família da década 40, era uma família matrimonializada, onde se admitia o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vinculo casamento, pois, elas uniam-se com vista à formação de património, pouco importando os laços afetivos, dai a impossibilidade de dissolução do vínculo, porque a desagregação da família corresponderia à desagregação da própria sociedade (FARIAS e ROSENVALD, 2019, p.56).

Por isso, hoje, a família é vista numa perspetiva diferente, ela pode ser constituída para além da monogâmica, e, o Ordenamento Jurídico Moçambicano através do artigo 16 da Lei da Família, aprovada pela Lei nᵒ 10/2004, de 25 de Agosto, admite várias modalidades de casamento, nomeadamente, civil, religioso e tradicional. Aliais, a própria Constituição da República de Moçambique no seu artigo 4ᵒ preconiza o princípio do pluralismo jurídico, reconhecendo os vários sistemas normativos que coexistem na sociedade moçambicana.

Da Improcedência do crime da Bigamia no Ordenamento Jurídico Moçambicano

A perspetiva positivista segundo a qual a conceção de crime se prende somente com o que a lei prever como tal esta ultrapassada, porque na atualidade o Direito Penal baseia-se de uma forma pacífica na premissa de que o crime pressupõe um entendimento teleológico anterior e superior ao texto legal. (ROXIN, 2000, p. 9), atribuía ao Direito Penal a função de proteção de valores ético-sociais fundamentais e para (CORREIA, 2014, p. 12), esta perspetiva colocava o fulcro do direito penal na ética e na moral seguidas pela ordem social, que no fundo supunha que o direito devia atender ao valor máximo da consciência, de forma a que os comportamentos que se afastassem desta diretriz socialmente desenhada, fossem punidos criminalmente.

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Das lições acima, compreendemos que o âmbito do Direito Penal, bem como os seus fins, deve sempre centrar-se em padrões axiológicas juridicamente relevantes e aceites, visto que é um ramo de direito público autónomo, criador de ilicitude. Não é função do Direito Penal nem primária, nem secundária tutelar a virtude ou a moral (FIGUEIREDO DIAS, p.112).

Por isso, fazendo uma análise cuidadosa sobre o crime da bigamia, constata-se a sua conexão com o adultério, facto que tem a ver com a Moral e não com o Direito, até considerado pecado na religião. A tese que defende a criminalização da bigamia, estará sempre em constante depreciação, uma vez que a carência de proteção de valores éticos morais está de forma recorrente ligados aos princípios religiosos, o que nos faz acreditar que a bigamia foi tipificada com o fito de desencorajar o pecado e responsabilizar os autores(pecadores). Neste diapasão, (ANDRADE, 2004, p.45) ensina que o Direito Penal só esta legitimado a servir valores ou metas imanentes ao sistema social e não fins transcendentes de índole religiosa, metafisica, moralista ou ideológica.

O direito penal tem a função primordial de tutelar em último ratio, os bens jurídicos penalmente relevantes, dai que, seguindo este raciocínio é importante analisar se o crime da bigamia viola algum bem jurídico relevante e repugnante na sociedade moçambicana. Alias, a CRM estabelece no nᵒ 1 do artigo 119, que a família é o elenco fundamental e a base de toda a sociedade. Como se pode depreender, a Constituição aborda o instituto família de forma geral, pois, ela não refere apenas as monogâmicas e até aborda a questão da valorização dos casamentos tradicionais e religiosos. O conceito de família deve ser abordado de forma diferente na atualidade, mas sobre tudo nas comunidades onde a cultura admite de forma natural a bigamia, como são os casos das culturas moçambicanas. A família nas comunidades moçambicanas deve ser vista não apenas a oriunda do casamento civil, mas também das uniões estáveis, porque a família ganhou nova estrutura e passou a ser plural, democrática, igualitária substancialmente, hétero ou homoparental, biológica ou sócio afetiva, onde a preocupação com a proteção a pessoa humana passou a ser necessária e essencial na formação dessa família contemporânea.

Portanto, o instituto jurídico família passou a ser vista sob uma nova ótica, não somente pelos preceitos legais, mas sobretudo por admitir uma pluralização do instituto jurídico. Diante da nova realidade, a forma de constituição da família é agora de natureza pessoal, direito resguardado pela liberdade de dispor de si mesmo, e que encontra seu fundamento no direito de personalidade, respeitadas, assim, as escolhas pessoais que envolvem a intimidade e a privacidade dos indivíduos. Por isso, é paradoxal um cidadão não contrair matrimonio civil e conviver com duas famílias em uniões estáveis com ambas e não entrar em conflito com a lei penal e outro em conflito por assegurar o reconhecimento.

No nosso entendimento, o direito penal estará, primeiro, a ofender a dignidade; segundo, a ofender o principio da igualdade; dois princípios constitucionais. Se no crime de bigamia, o bem jurídico ofendido é a família monogâmica, o Direito Penal ao responsabilizar criminalmente o sujeito que sendo casado contrai um novo casamento civil, estará a violar o princípio da dignidade humana, bem como o direito à reserva da vida privada. O Direito Penal ao tratar de forma distinta as formas de uniões que tem o mesmo objetivo, constituir família, viola também o principio da dignidade humana.

Princípios informadores do Direito Penal

São vários os princípios informadores do Direito Penal, para o presente trabalho abordaremos os da legalidade, tipicidade do crime e da última ratio.

O direito penal, como ansiedade comunitária é destinada à preservação dos seus valores essenciais, os chamados bens jurídicos, que se encontram balizados nas sociedades modernas, por determinados princípios informadores, mais ou menos rígidos, erigidos como linha de força sustentadoras do sistema (SANTOS e HERINQUES, 2018. p.232).

Bem jurídico, é a expressão de um interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso (FIGUEREDO DIAS, 2007, 114).

No princípio da ultima ratio, o Estado através do Direito Penal demostra a sua força coerciva com o objetivo de defender o interesse social, protegendo a coletividade. No entanto, o poder coercivo do Estado não pode ser exercido de qualquer forma e a qualquer custo. Num Estado de Direito Democrático imperam as leis, todo o exercício deve ter como base as normas jurídicas, bem como, o controle dos princípios constitucionais que protegem a dignidade da pessoa humana e da necessidade. A função do Direito Penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais à tranquilidade social, porém como última ratio, ou seja, como ultima opção de controle, tendo em vista o fracasso dos outros meios formais de controle social em relação a proteção dos bens relevantes, o que implica a possibilidade de coibir determinadas condutas e consequentemente proteger bens substanciais ao ser humano por meio de outros ramos do direito, neste sentido, o Estado deve ser cerceado de se impor através do Direito Penal.

É imperioso o estabelecimento de uma reserva de ponderação aplicável exclusivamente em matéria de Direito Penal e processual penal que envolvem conflitos entre os direitos fundamentais e, em especial as liberdades individuais e o interesse público repressivo. Na verdade, o Direito Penal deve abster-se de sua aplicabilidade imediata quando em causa esta uma matéria sobre direitos fundamentais conflituantes. O Direito Penal deve ser chamado quando constatado que os demais ramos do direito não tiveram como tratar a matéria em causa e com vista a assegurar direitos substanciais protegidos pela Constituição da República.

Considerações finais

Na presente análise propusemo-nos discutir o crime da bigamia no Ordenamento Jurídico Moçambicano, no âmbito do amplo processo de estudo e reflexão do Direito Penal Moçambicano, com a intenção de perceber se o instituto jurídico supra preenche requisitos para a sua tipificação pelo Direito Penal Moçambicano, partindo do pressuposto que para a elaboração duma norma jurídica é importante observar os costumes locais. Ficou patente que a criminalização da bigamia teve como base os valores que outrora influenciaram todo o pensamento legislativo, referimo-nos aos princípios da Igreja católica e o nosso Direito é herança do colonizador. Não podemos negar que a bigamia é uma prática aceite nas comunidades moçambicanas e tem como génese a religião islâmica por um lado, e por outro, fatores culturais típicos das tradições moçambicanas. Dai que volvidos 47 anos depois que Ordenamento Jurídico Moçambicano herdou o Direito colonial, depararmo-nos com situações jurídicas que a sua resolução tem como base o costume ocidental em detrimento do costume moçambicano.

Pese embora a bigamia ser até repugnante nas comunidades dos países ocidentais, os argumentos usados para a tipificação da bigamia como crime não procedem, estão ultrapassados e não deve ser tutelado pelo Direito Penal. Em Moçambique, a bigamia é um costume praeter legem, pois, esta para lá da lei, significando que para este costume, a lei penal é necessariamente imperfeita.

Entendemos que o Estado deve deixar de interferir na vida privada e na vida íntima do individuo, pois, na medida em que ele deixa de impor-se, melhor será para a paz social.

Numa era de sociedade pluralista como a nossa, onde existe permissão para a exposição de intimidades, há resistência a interferências aos seus comportamentos íntimos, este tipo legal de crime não tem espaço neste novo paradigma de sociedade, sobretudo quando tipifica a bigamia como crime, diferentemente da família formada pela união estável, facto que viola o princípio da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade tratando de forma diferenciada as práticas semelhantes e que a lei civil procura tratar com a mesma dignidade.

Ficou claro que após o advento da constituição que modificou, pluralizou, democratizou e humanizou a família, este tipo legal de crime é tido como improcedente e em contradição com alguns princípios constitucionais acima mencionados.

Dai que, entendemos que o Estado, na sua intervenção penal, não deve atuar no sentido de restringir os direitos dos indivíduos para que a comunidade viva em harmonia, respeitando os costumes e os pilares do Estado de Direito Democrático. O Direito Penal deve intervir em campos imprescindíveis com o objetivo de proteger os direitos, liberdades e garantias fundamentais da comunidade, sendo instrumento para implantação da paz social e não instrumento de agitação social.

Não se pode compreender e aceitar que se faça confusão dos legítimos bens jurídicos que devem ser tutelados pelo Direito Penal com meras convicções morais ocidentais contra os costumes locais. Por isso, julgamos que o crime da bigamia previsto no Direito Penal Moçambicano, não preenche requisitos necessários para ser tido como elemento protetor de um bem jurídico relevante e com dignidade constitucional, pelo facto da sua conceção ter como base a importação dos costumes ocidentais.

Com Direito Positivo, o Estado pretende atingir os fins de justiça, os fins jurídicos, mas é importante não perder de vista que há leis que são contrárias ao bem comum, que são injustas, que não realizam verdadeiramente um fim de paz social.


Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Hélder Ernesto Injojo

Advogado, Deputado e Doutor em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

INJOJO, Hélder Ernesto. A criminalização da bigamia no ordenamento jurídico moçambicano:: um exemplo de importação do direito penal ocidental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7064, 3 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100935. Acesso em: 28 abr. 2024.

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