Uma das questões bastante controvertidas na doutrina e na jurisprudência diz respeito ao controle e fiscalização de despesas sigilosas e à disponibilização do resultado do julgamento dessas despesas ao público em geral, em atendimento aos princípios da publicidade e da transparência orçamentária previstos no art. 5º, XXXIII da CF:
Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
Despesas sigilosas existem em qualquer país do mundo, por razões de segurança do Estado e da sociedade.
O problema é o de saber se essas despesas podem ser fiscalizadas e controladas pelo TCU em face do disposto no inciso XXXIII, do art. 5º da CF. Caso positivo, em que extensão?
Primeiramente, entendemos que as despesas sigilosas devem ter previsão na Lei Orçamentária Anual com discriminação dos elementos de despesas, em pormenor tanto quanto possível. É a posição, também, de Fernando Facury Scaff [1]. Nenhuma despesa pode ser feita sem previsão legal. É o princípio da legalidade das despesas que se segui ao princípio da legalidade dos tributos.
Essas despesas devem se objetos de julgamento pelo TCU, porém, resguardando o sigilo na apreciação dessas contas em sessão extraordinária, de caráter reservado, com a presença apenas de Ministros, representante do Parquet e servidores autorizados pelo Presidente, conforme previsão no Regimento Interno da Corte (arts. 97 e 158).
A matriz constitucional de início referido foi regulamentada pela Lei no 11.111, de 5-5-2005 que elege como regra geral o acesso a documentos públicos, ressalvadas as hipóteses de sigilo indispensável à segurança da sociedade e do Estado. No mesmo sentido já dispunha o art. 4o da Lei no 8.159, de 8-1-1991, que versa sobre a política de arquivos públicos e privados. O art. 3o da Lei no 11.111/05 permite que o Regulamento classifique os documentos abrangidos pelo sigilo estatal como sendo de mais alto grau de sigilo, hipótese em que o acesso a esses documentos ficará restringido por 30 anos, prorrogável, por mais uma única vez, por igual período (§ 2o, do art. 23, da Lei no 8.159/91).[2]
A classificação do grau de sigilo, prevista no art. 5o do Decreto no 4.553, de 27-12-2002, há de ser precedida de análise criteriosa pela Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas (CAAIS) no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, sendo vedada a aposição aleatória, neste ou naquele documento, de carimbos “reservado”, “confidencial”, “secreto” e “ultrassecreto” que impedem a divulgação de documentos pelos prazos de 5, 10, 20 e 30 anos, respectivamente.
Ainda que essas despesas sigilosas sejam apreciadas e julgadas pelo TCU, o seu resultado não pode ser divulgado em pormenores. O art. 4o do Decreto no 5.482, de 30-6-2005, que instituiu o Portal da Transparência do Poder Executivo Federal, excepciona do princípio da publicidade “os dados e as informações” sobre execução orçamentária e financeira, “cujo sigilo seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos da legislação”. Esse art. 4o tem a sua matriz no art. 86 do Decreto-lei no 200/67, que instituiu o sigilo sobre movimentação de créditos com despesas reservadas ou confidenciais, prescrevendo que a tomada de contas dos responsáveis por essas despesas deve observar o seu caráter sigiloso.
Resta claro, portanto, que o sigilo, por si só, não afasta o dever de prestar contas e, por conseguinte, a apreciação e julgamento das despesas sigilosas pelo órgão competente.
Por fim, resta esclarecer que o referido art. 86 do Decreto-lei no 200/67 foi declarado inconstitucional pelo STF, por maioria de votos, reconhecendo sua incompatibilidade com o texto constitucional (ADPF nº 129, DJe de 19-12-2019).
Não nos parece razoável, em nome dos princípios de publicidade e da transparência orçamentária, divulgar os pormenores das despesas sigilosas, bem como dos resultados de julgamentos das contas respectivas. Não faria sentido colocar no Portal da Transparência a especificação de despesas, por exemplo, com as ações de informações e contrainformações do Estado, ligadas à segurança nacional.
Consoante escrevemos há que se observar o princípio da razoabilidade, que é um limite imposto à ação do próprio legislador. Não se pode exigir divulgação de despesas secretas ou ultrassecretas, nem aceitar incondicionalmente a tese de que determinadas despesas estão sob sigilo por razões de segurança do Estado, por implicar afastamento imotivado da regra geral da publicidade e transparência[3]. Outrossim, não se pode subtrair do Portal de Transparência as centenas de despesas com cartões corporativos que nada têm de sigilosas, instituídos unicamente para atender à comodidade de seus usuários, comodidade que acabou descambando para abusos e ilegalidades.
Esses cartões corporativos, incontroláveis porque instituídos sem base legal, devem ser extintos. As despesas de pequena monta ou aquelas urgentes devem obedecer ao regime de adiantamento previsto no art. 68 da Lei no 4.320/64, que pressupõe prévio empenho na dotação própria. No documento materializador do empenho – a chamada nota de empenho – constará obrigatoriamente a indicação do nome do credor, a especificação e a importância da despesa, bem como a dedução desta do saldo da dotação própria (art. 61 da Lei no 4.320/64), elementos esses indispensáveis ao efetivo controle e fiscalização de gastos públicos. O uso indiscriminado de cartões corporativos não permite esse controle e fiscalização.[4]
[1] Orçamentos públicos e direito financeiro, obra coletiva, coord. José Maurício Conti e outro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 231.
[2] O Projeto de Lei no 41/2010 de iniciativa da Câmara, já aprovado, revoga a Lei no 11.111/05 e os dispositivos da Lei no 8.159/91, estabelecendo a regulamentação do inciso XXXIII, do art. 5o, do inciso II, do § 3o, do art. 37 e do § 2o, do art. 216 da CF. Essas revogações, contudo, não prejudicam os comentários feitos.
[3] Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 30ª edição. São Paulo: Atlas, 2021, p. 155.
[4] A mídia vem revelando com base nos dados imprudentemente publicados no Portal da Transparência algumas despesas peculiares que não têm menor pertinência com o exercício dos cargos ou das funções públicas, ao contrário, revelam a prática do ato de improbidade administrativa de seus autores.