INTRODUÇÃO.
O presente artigo analisa alguns aspectos práticos da ação de reconhecimento de união estável post mortem, sem pretender fechar o tema ou esgotar as várias possibilidades de cada caso concreto. Este tipo de ação ganhou importância, notadamente, pelo aumento de casos de falecimento em razão da recente pandemia. O objetivo do trabalho, por sua vez, centra-se na prova dos requisitos da união estável, notadamente o requisito legal da intenção de constituir família.
A união estável é uma realidade fortemente presente na sociedade brasileira, notadamente entre as pessoas com menor poder econômico, e, em caso de falecimento, injusto não haver tutela jurisdicional aos casos em que verdadeiramente havia uma união, mesmo que haja contrariedade dos parentes da pessoa falecida.
DESENVOLVIMENTO DO TEMA.
Iniciando o objeto a ser desenvolvido, o artigo transita neste tema, pois a atividade probatória ser de extrema importância, acrescido ao fato de, não raro, o pleiteante se deparar com a resistência de parentes do falecido, o que reforça a importância da atividade probatória.
Dispensável trazer a conceituação da União Estável, haja vista ser um instituto jurídico muito bem desenvolvido na doutrina brasileira. A base deste instituto está no art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, regulamentada tal norma nos artigos 1.723 a 1.727, do Código Civil.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado: § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Adentrando especificamente no cerne do presente trabalho, nesses tipos de ação é importante a presença do senso de justiça do pleiteante, ou seja, primeiramente, deve haver uma convicção da existência da união. Faz-se tal observação porque não são raras as tentativas de reconhecimento de união estável com o intuito de mero proveito econômico. Obviamente que existe um fundo econômico no reconhecimento de união estável, haja vista até mesmo o direito à pensão por morte, mas não é esse interesse secundário que se está a avaliar.
No que atine à legalidade do tema, tem-se que a lei civil traz quatro requisitos à configuração da União Estável: convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Observa-se que tais requisitos começam amplos e vão se estreitando, até adentrar na intenção dos conviventes de constituir família. Denota-se, então, um requisito subjetivo. E aqui, opta-se por dividir os requisitos entre objetivos e subjetivos para tentar aclarar o objeto deste breve artigo, eminentemente probatório. Então, este último requisito faz uma amarra aos outros três requisitos, de cunho objetivo. Ao observá-los, pode-se avaliar que os requisitos com carga objetiva são mais fáceis de demonstrar. Contudo, como fazer a prova da intenção de constituir família?
Certamente, nesse ponto, reside o maior desafio à demonstração da união estável post mortem, mesmo porque um dos companheiros é falecido e o autor da ação possui direto interesse na procedência da ação, o que inviabiliza a valoração de seu depoimento. Diante desse quadro, a prova da intenção vai cair também em questões objetivas, em outras palavras, a referida intenção vai ser refletida em questões objetivas.
Tartute[1] faz interessante análise sobre os requisitos da união estável, e que calha expor neste momento:
Como se pode notar, as expressões pública, contínua, duradoura e objetivo de constituir família são abertas e genéricas, de acordo com o sistema adotado pela atual codificação privada, demandando análise caso a caso.
Conforme se denota dos ensinamentos do doutrinador, os requisitos da união estável são cláusulas abertas, o que, por si só, denota dificuldades probatórias. Contudo, mais do que cláusulas abertas, tenta-se apresentar a maior dificuldade do requisito referente à intenção de constituir família, posto o caráter mais subjetivo.
Diante deste quadro, a parte autora deve trazer ao processo o máximo de elementos probatórios. O mais importante nestas ações é o conjunto probatório. A parte deve usar todas as provas permitidas no ordenamento para demonstrar ao judiciário o contexto familiar. O conjunto probatório deve ser amplo, diversificado. Aliás, em tempos de redes sociais, estas são insuficientes à prova de uma união.
Em termos práticos, a parte que pleiteia o reconhecimento da união deve ir demonstrando no curso do processo, por exemplo, a afinidade que havia entre o casal. É importante mostrar que um companheiro ajudava o outro, que estavam sempre juntos, que ambos construíram uma vida juntos, compartilhando o mesmo lar e há quanto tempo o faziam. Ou seja, demonstrar que compartilhavam verdadeiramente uma vida. Para essas questões, a prova testemunhal tem uma importância fundamental, posto que a demonstração de tais questões é melhor retratada por pessoas, sempre observando que as testemunhas devem ser fidedignas, livres dos impedimentos e suspeições, e ter, de fato, conhecimento da história do casal.
Todas essas questões, então, à guisa de exemplo de questões que podem ser exploradas probatoriamente, são elementos objetivos que fazem emergir uma intenção, notadamente quando esse casal não teve filhos (na existência de filho, a prova da união tende a ficar mais fácil). Aqui, entra a formação de um umbral de suficiência probatória, nas palavras de Jordi Ferrer-Beltrán[2], necessária para vencer a dúvida nesses tipos de ação. A intenção de constituir família, como já exposto, é um requisito de difícil prova. Disso resulta a importância de um umbral de suficiência amplo, seguindo o autor supra, pois, quanto maior a suficiência, mais chance de se vencer tal requisito. Somente a amplitude probatória é capaz de ultrapassar o obstáculo imposto por este requisito.
Um ponto também interessante de se mencionar está no tempo da dita união. E aqui volta a observação de Tartuce, acerca da abertura normativa. Não existe, pela lei, um tempo em que se possa fazer uma divisão entre a existência e a inexistência da união. Certamente que um convívio, por exemplo, de 10 anos é um forte indicativo de união estável, inclusive com a intenção de constituir família. Prazos menores, por óbvio, não impedem o reconhecimento. Vai depender do que a atividade probatória vai mostrar ao judiciário, e por isso a amplitude probatória é fundamental.
Para aclarar, seguindo a doutrina de Michele Taruffo, a atividade probatória é uma atividade de reconstrução de fatos passados, mais importante ainda nessas ações, em que o judiciário vai reconstruir um contexto familiar, e, para tanto, deve haver suficiência probatória. Segundo o autor:
Fatos e enunciados. Uma importante observação merece ser feita aqui sobre fatos e a maneira como esses se determinam [...]. Em conseqüência, salvo alguns elementos de prova circunstancial, os fatos não podem ser percebidos pelo juiz: esses devem ser reconstruídos pelo julgador com base na prova disponível [...].[3].
CONCLUSÃO.
Pode-se concluir que não existe um receituário probatório a ser seguido neste tipo de ação. O ideal é ampliar as provas para, principalmente, a parte autora vencer o obstáculo do requisito subjetivo acima exposto. Frisa, mais uma vez, a importância da prova testemunhal, com a utilização de testemunhas que conheceram, de fato, a vida do casal, como, por exemplo, vizinhos. Em tempos de redes sociais, a juntada de fotos de facebook, instagram etc são insuficientes, posto que a vida exposta nessas redes sociais por vezes é fantasiosa, rasa, e, não raro, usadas para tentar fraudar a lei e a atividade probatória.
BIBLIOGRAFIA.
FERRER-BETRÁN, Jordi. Prova sem convicção Standards de prova e devido processo; (tradução) Vitor de Paula Ramos São Paulo: Juspodium, 2022.
TARTUCE, Flávio . Manual de direito civil: volume único Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011.
TARUFFO, Michele. A Prova. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
[1] TARTUCE, Flávio . Manual de direito civil: volume único Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011, pág. 1090.
[2] FERRER-BETRÁN, Jordi. Prova sem convicção Standards de prova e devido processo; (tradução) Vitor de Paula Ramos São Paulo: Juspodium, 2022.
[3] TARUFFO, Michele. A Prova. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.19