As decisões judiciais que tratam de remoções forçadas, originárias de disputas pela posse da terra, precisam discorrer acerca da destinação dos bens móveis e benfeitorias existentes no imóvel. Isto porque o Código Civil dispõe, a partir de seu artigo 1.210, sobre os efeitos da posse, fazendo a distinção dos direitos pertinentes aos possuidores boa ou de má-fé, havendo, portanto, de se estabelecer logo na decisão judicial as providências que devem ser adotadas para garantia dos direitos das partes.
Ao possuidor de boa-fé, destaca-se o direito à percepção dos frutos (art. 1.214) e indenização das benfeitorias (art. 1.219, primeira parte), além do do exercício do direito de retenção (art. 1.219, segunda parte). Já o possuidor de má-fé, mesmo que de forma restrita, também goza de direitos quanto às benfeitorias construídas no imóvel em disputa, nos termos do artigo 1.220 do Código Civil:
Art. 1.220. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias necessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de levantar as voluptuárias.
Além disso, apesar de não ter direito aos frutos colhidos e percebidos, é devido ao possuidor de má-fé o ressarcimento das despesas com a produção e custeio, nos termos do artigo 1.216 do Código Civil.
Tais regras são suficientes para demonstrar que a decisão judicial que determina a reintegração ou imissão na posse de determinado imóvel precisa, necessariamente, discorrer acerca da destinação dos bens e benfeitorias existentes no imóvel objeto do litígio, sob pena de inviabilizar o próprio cumprimento da decisão. Aqui, cumpre destacar que o oficial de justiça esta vinculado estritamente ao que diz o mandado judicial, não cabendo a este, muito menos à autoridade policial que o acompanha, decidir sobre a destruição ou não das construções, plantações e demais benfeitorias existentes.
Compete às partes demonstrarem a existências destes bens e benfeitorias e provocarem o Judiciário para que lhes sejam dadas destinações ou até mesmo autorizada a sua remoção ou destruição. Tal provocação deve ocorrer, inclusive, quando do pedido da medida liminar, não havendo, para esta matéria, razão para distinção entre aquele pedido fundando no artigo 300 ou no artigo 562 do Código de Processo Civil.
Neste ponto, importa destacar que no direito nacional não existe a presunção de que a liminar em ações possessórias deva resultar na destruição de bens e benfeitorias é necessária disposição expressa na decisão e no mandado judicial.
A presença das benfeitorias, inclusive, pode ser essencial para própria discussão do direito possessório alegado, conquanto as construções podem trazer indícios sobre caraterização da ocupação (se consolidada ou não) bem como para natureza da ação possessória isto é, se factualmente trata de uma ação de força velha (onde não cabe a concessão da liminar prevista pelo artigo 562 do CPC) ou de força nova.
Em outras palavras, as benfeitorias existentes no imóvel são parte das provas que podem ser usadas pelos réus para defesa em ações possessórias. Sua destinação deve ser criteriosamente debatida nos autos e decidida pelo juízo.
Importante, então, distinguir os momentos processuais em que o debate sobre a destinação de bens e benfeitorias no âmbito das ações possessórias deve ser observado. O primeiro deles, como já exposto, é quando do pedido da medida liminar seja este com fundamento no artigo 562 ou no artigo 300 do CPC. Caso a parte autora deixe de indicar a existência de bens e benfeitorias ou, ainda que o faça, não se pronuncie expressamente acerca de sua classificação e destinação, o juízo deve indeferir o pedido, abrindo prazo para contestação ou, ainda, designando audiência de justificação para acautelar-se de que sua decisão não causará prejuízos quanto à produção de provas ou afetará os direitos decorrentes da posse do imóvel. Uma medida razoável, nestes casos, é a realização da inspeção judicial (artigo 481 do CPC), que viabilizará ao juízo a real compreensão da lide e subsidiará a decisão sobre a destinação dos bens e benfeitorias que existirem no imóvel, caso seja concedida a liminar pleiteada.
Ultrapassado o debate inicial, a parte Requerida deve alegar a existência de benfeitorias logo na fase de conhecimento, em contestação, de forma discriminada e com atribuição, sempre que possível e justificadamente, do respectivo valor (art. 538, § 1º, do CPC). Segundo o entendimento do STJ, descabe o exame da matéria em momento posterior em virtude da ocorrência de preclusão (REsp n. 1.963.885/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi).
Portanto, como se vê, não se discute a destinação de bens e benfeitorias em fase de cumprimento de sentença. Caso tal matéria não tenha sido abordada no âmbito da ação possessória, a parte deve ajuizar ações específica para pleitear as indenizações, o direito de retenção, a remoção, destruição ou qualquer outra providência relacionada a estes bens. Tal fato, a nosso ver, inviabiliza o próprio cumprimento da sentença de reintegração ou imissão na posse, vez que não há que se presumir que os bens móveis e benfeitorias devam ser destruídos, indenizados, transmitidos ao patrimônio da parte autora ou qualquer outra solução.
Ainda assim, mesmo na fase da execução da decisão, o cuidado com a destinação dos bens e benfeitorias é tema de maior relevância, havendo regulamentações específicas em âmbito nacional que balizam a conduta dos agente públicos envolvidos. Um dos principais documentos é o Manual de Diretrizes Nacionais para Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva, editado pela então Ouvidoria Agrária Nacional, para o qual:
3 DOS LIMITES DA ORDEM JUDICIAL
O cumprimento da ordem judicial ficará limitado objetiva e subjetivamente ao que constar do respectivo mandado, não cabendo à força pública, responsável pela execução da ordem, ações como a destruição ou remoção de eventuais benfeitorias erigidas no local da desocupação.(...)
7 DO USO DE MÃO DE OBRA PRIVADA PARA A REMOÇÃO
A polícia não permitirá, nem mesmo com utilização de mão de obra privada, desfazimento de benfeitorias existentes no local ou a desmontagem de acampamento durante o cumprimento da ordem judicial, salvo pedido de retirada voluntária de objetos pelos desocupados da área objeto da lide.
Também o Conselho Nacional de Direitos Humanos, por meio da Resolução n. 10/2018, discorreu acerca dos procedimentos que devem ser observados para garantia de direitos humanos e prevenção de conflitos quando do cumprimento das decisões judiciais de remoção forçada. No que se refere à remoção ou destruição de benfeitorias, a Resolução assim dispõe:
Art. 14 Remoções e despejos devem ocorrer apenas em circunstâncias excepcionais, quando o deslocamento é a única medida capaz de garantir os direitos humanos.
(...)
§3º Não deverão ser realizadas remoções antes da retirada das colheitas, devendo-se assegurar tempo razoável para o levantamento das benfeitorias.
A Resolução do CNDH também faz importante referência para a preservação dos bens dos ocupantes, apontando como ilegal sua apropriação indevida no âmbito do cumprimento das ações de remoção forçada, bem como estabelecendo diretrizes e responsabilidades para sua remoção:
Art. 19 O uso de violência física, psicológica, simbólica, constrangimento ilegal, ameaça, e qualquer apropriação dos pertences pessoais durante as remoções é ilegal e passível de responsabilização cível, criminal e administrativa, devendo ser observados o direito à intimidade, privacidade, não discriminação e dignidade humana.
Art. 20 O plano de remoção, de responsabilidade do/a juiz/a da causa, deverá necessariamente observar as seguintes diretrizes:
(...)
VII A saída e transporte das pessoas e de seus pertences será responsabilidade e gestão do poder público;
(...)
IX Quando o reassentamento não for imediato, a autoridade pública deverá responsabilizar-se pela guarda temporária e devolução dos pertences dos atingidos, até que a realocação se efetive, sendo vedada a sua destruição.
Vale ressaltar que o atendimento às diretrizes da Resolução n. 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos foi ratificada no âmbito da Recomendação n. 90/2021 do Conselho Nacional de Justiça, servindo como orientação para todo o Poder Judiciário.
Como se vê, o levantamento prévio e decisão explícita quanto ao destino das benfeitorias é matéria de maior importância no âmbito das ações possessórias, e ganha ainda mais relevância quando se trata de ocupações coletivas e consolidadas, principalmente nas situações em que a parte Requerida alega já possuir o imóvel há vários anos, com fundada expectativa de aquisição do imóvel por meio de regularização fundiária promovida pelo próprio poder público ou usucapião, caso se trate de imóvel pertencente à particular. Nestas situações, a boa-fé das famílias que de fato ocupam e dão destinação social para o imóvel precisa ser considerada, havendo o Estado-Juiz de promover soluções conciliatórias envolvendo os órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal e de Município, sempre que possível, valendo-se da inteligência do artigo 565, § 4º, do CPC.
Destaca-se, por fim, que tais regras não se aplicam ao litígio que envolve imóvel público, uma vez que sua ocupação indevida configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias (Súmula n. 619/STJ). Ainda assim, o ente Público responsável por mover a ação judicial que resultará na remoção forçada de ocupação coletiva não deve se descuidar das medidas garantidoras de direitos humanos e de prevenção de conflitos descritas no âmbito da Resolução n. 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos.