4. Proibição da proteção deficiente
A recomposição do patrimônio público está diretamente atrelada à concretização da probidade administrativa e, conforme atestado pelo próprio art. 37, § 4º, da Constituição Federal, constitui um dos seus principais conteúdos. O dispositivo, ao determinar que os atos de improbidade administrativa importarão o ressarcimento ao erário, elegeu a reparação dos danos como consequência ínsita e inafastável à prática dessa ordem de ilícitos.
Realmente, não seria razoável imaginar a tutela adequada da probidade administrativa sem a existência de mecanismos que assegurem a eficaz recuperação dos prejuízos suportados pela vítima dos atos ímprobos. Um sistema de proteção nesses moldes estaria voltado apenas aos aspectos preventivos dos atos ímprobos, ignorando a necessidade de preservar também os instrumentos de atuação sob o enfoque repressivo, que visem a eliminar, ou ao menos a atenuar, os reflexos nocivos da improbidade administrativa.
Nesse contexto, o regime solidário assume papel crucial no ressarcimento ao erário: ao permitir que cada um dos agentes responda por todo o dano causado, a chance de se obter a integral reparação do prejuízo aumenta consideravelmente, pois o acervo patrimonial com aptidão de ser demandado para essa finalidade é potencialmente maior.
O protagonismo da solidariedade é sobremaneira evidenciado na atual quadra histórica, em que os instrumentos tecnológicos permitem uma rápida dispersão e ocultação patrimonial, característica que, como destacado pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.366.721 (BRASIL, 2014a), pode tornar irreversível a lesão ocasionada ao erário.
Sob essa perspectiva, a proibição do regime solidário na recomposição do patrimônio público coloca em risco a higidez da probidade administrativa, o que não pode ser aceito, dado o caráter de direito fundamental que ela ocupa no ordenamento jurídico brasileiro.
A afirmação decorre principalmente do já mencionado art. 37, § 4º, da Constituição Federal. Mas não só. Roberto Lima Santos (2012) afirma que ela é retratada diversas vezes ao longo do texto constitucional, podendo ser percebida no (i) art. 1º, caput, que estabelece o princípio republicano; (ii) art. 1º, parágrafo único, que dispõe sobre o princípio democrático; (iii) art. 1º, I a V, que elenca os fundamentos da República; (iv) art. 3º, I a IV, que enumera os objetivos fundamentais da República; (v) art. 4º, I e VI, que adota a prevalência dos direitos humanos e da defesa da paz como um baluarte nas relações internacionais; (vi) art. 14, § 9º, que elege a sanção de inegabilidade como uma forma de sua proteção; (vii) art. 15, V, que autoriza a cassação dos direitos políticos dos agentes ímprobos; (viii) art. 37, caput, que aponta como princípios da Administração Pública a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; (ix) art. 85, V, que considera como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a probidade na Administração.
A ênfase com que o assunto foi abordado retrata a nítida preocupação do Poder Constituinte Originário em rechaçar as condutas de má gestão da coisa pública, fato que tem sido apontado por Juarez Freitas (2009, p. 42), Waldo Fazzio Júnior (2015, p. 14), Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves (2011, p. 859) como um imperativo para elevar a probidade administrativa ao status de verdadeiro direito fundamental.
É interessante notar que a especial proteção conferida à proteção do patrimônio público não é uma realidade isolada do ordenamento jurídico brasileiro, pois diversos tratados internacionais, inclusive muitos dos quais o Brasil é signatário16, endossam a probidade administrativa como uma das principais vertentes do combate à corrupção e como uma forma de promoção dos direitos humanos (RAMOS, 2002, p. 7).
Por conta dessa envergadura constitucional, Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 197) defende que eventuais restrições à probidade administrativa devem ser postas ao crivo do teste da proporcionalidade e a todo ônus argumentativo dele decorrente, com o objetivo de averiguar se o conteúdo do seu núcleo duro não foi violado.
De acordo com o autor (2002, p. 28), a regra da proporcionalidade possui tanto uma dimensão negativa, materializada na proibição do excesso, quanto um aspecto positivo, denominado de proibição da insuficiência, que impele o Poder Público a não se omitir ou atuar insuficientemente sobre os bens jurídicos que estão sob sua tutela.
Nesse compasso, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2021, p. 482), defendem que o Estado ofende a Constituição Federal não apenas quando pratica excessos, intervindo de maneira exagerada ou indevida nas relações sociais, mas também quando deixa de agir em prol dos direitos fundamentais ou de outros bens jurídicos relevantes, ou o faz de modo insuficiente.
Parcela significativa da doutrina é partidária da mesma tese. Além de autoras como Ana Carolina Lopes Olsen17, pode-se mencionar, ainda, os dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2021, p. 399):
Poderá o Estado frustrar seus deveres de proteção atuando de modo insuficiente, isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos ou mesmo deixando de atuar. É nesse sentido como contraponto à assim designada proibição de excesso que expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou chamar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão).
A conjuntura em voga não é estranha ao contexto jurisprudencial. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal18 já adotou o princípio da proporcionalidade pela proteção insuficiente como mecanismo idôneo para assegurar que o Estado cumpra, na justa medida, os seus deveres de proteção. E, na seara internacional, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha reconheceu que compete ao Poder Público promover medidas normativas e fáticas suficientes para cumprir seu dever de tutela, que levem ao alcance de uma proteção adequada e, como tal, efetiva (SCHWABE, 2005, p. 276).
Assim, acaso o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 tivesse afastado completamente o regime solidário no ressarcimento ao erário, a tutela jurídica conferida à probidade administrativa seria insuficiente, diminuindo de modo exponencial a probabilidade de êxito na reparação integral dos danos.
Não se ignora que o art. 37, § 4º, da Constituição Federal, ao dispor que os atos de improbidade administrativa importarão o ressarcimento ao erário na forma e gradação previstas em lei, conferiu uma certa dose de autonomia ao Poder Legislativo para disciplinar o modo pelo qual a recomposição do patrimônio público se daria.
Todavia, essa margem de conformação não é ilimitada e deve preservar o núcleo essencial da probidade administrativa, que não pode ser enfraquecido ou inviabilizado por meio de leis ordinárias. O legislador, ao exercer a regulamentação de direitos, deve respeitar o seu núcleo essencial, dando as condições para a implementação dos direitos constitucionalmente assegurados. E o Judiciário, por sua vez, deve corrigir eventual distorção para se assegurar a preservação do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (LENZA, 2021, p. 1.875).
De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a liberdade conferida pelo referido art. 37, § 4º, é regrada, devendo ser exercida dentro das balizas dos princípios regentes da atividade estatal, previstos no caput do dispositivo (PARANÁ, 2019a).
Portanto, ainda que tivesse vedado a solidariedade de modo absoluto no ressarcimento ao erário, o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 seria inconstitucional por conferir proteção deficiente ao direito fundamental da probidade administrativa.
5. Princípio da isonomia
Além dos argumentos expostos até aqui, existe ainda mais um motivo pelo qual o regime solidário não poderia ser dissociado da reparação dos danos causados por atos ímprobos: o princípio da isonomia.
É que, se o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 estabelecesse que é vedada a solidariedade no ressarcimento ao erário, o dispositivo instituiria aos réus em ações de improbidade administrativa um privilégio que não é extensível aos réus das demais espécies de ações judiciais, que, por conta do art. 942, caput, do Código Civil, são responsáveis de modo solidário pelos ilícitos que tenham perpetrado em conjunto.
Vale dizer, o dispositivo criaria dois regramentos distintos quanto à responsabilidade na reparação dos prejuízos infligidos ao patrimônio de outrem. Um aplicável apenas às ações de improbidade administrativa, no qual os réus só arcariam com o dano para o qual concorreram. E outro destinado às ações de índole civil, em cada um dos réus poderiam ser demandados a reparar solidariamente todo o dano.
Por conseguinte, a pessoa jurídica lesada pela prática de algum ato ímprobo não poderia buscar demandar de cada um dos agentes a satisfação de todo o dano, enquanto a vítima de uma dívida civil comum, até mesmo aquelas oriundas das mais banais intercorrências cotidianas, teria a conveniência de satisfazer o seu crédito integralmente de qualquer devedor, utilizando-se do regime solidário de responsabilização.
A discrepância instituiria um regime jurídico notoriamente mais gravoso à Administração Pública, caracterizando nítida desequiparação de tratamento para sujeitos submetidos à mesma circunstância fática, qual seja, ter seu patrimônio lesado por mais de um indivíduo.
A doutrina é categórica ao rechaçar tal forma de distinção, pois o conteúdo do princípio da isonomia funciona como um anteparo aos abusos do legislador, impedindo que a sua atuação produza desequilíbrios arbitrários, aleatórios e preconceituosos no tratamento de qualquer matéria (MORAES, 2013, p. 112. e 113). Está consolidado há muito tempo o entendimento de que a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas sim instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente os cidadãos (MELLO, 2021, p. 9. e 10).
Não se ignora que nem toda desequiparação promovida pelo legislador necessariamente acarreta ofensa ao princípio da isonomia, haja vista que ela eventualmente pode concretizar a igualdade na sua acepção material, isto é, por meio das denominadas ações afirmativas ou discriminações positivas.
Como já consignado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 640.905, esse postulado não se resume ao tratamento igualitário em toda e qualquer situação jurídica, mas, também, na implementação de medidas com o escopo de minorar os fatores discriminatórios existentes, impondo, por vezes, tratamento desigual em circunstâncias específicas (BRASIL, 2016).
Entretanto, ao apreciar casos que versem sobre potenciais violações ao princípio da isonomia, a doutrina tem exigido que o regime jurídico desigual estabelecido por lei deve promover os valores tutelados constitucionalmente. Em outras palavras, a desequiparação estatuída deve ser feita visando a prestigiar determinada norma da Constituição Federal:
As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição. As vantagens calçadas em alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses acolhidos no sistema constitucional. Deveras, a lei não pode atribuir efeitos valorativos ou depreciativos a critério especificador em desconformidade ou contradição com os valores transfundidos no sistema constitucional ou nos padrões ético-sociais acolhidos neste ordenamento. De logo, importa, consoante salientado, que haja correção lógica entre o critério desigualador e a desigualdade de tratamento. Contudo, ainda se requer mais, para lisura jurídica das desequiparações. Sobre existir nexo lógico, é mister que este retrate concretamente um bem e não um desvalor absorvido no sistema normativo constitucional. Não é qualquer fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão só aquele que se orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima. Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário (MELLO, 2021, p. 17, 18, 42, 43 e 44).
Dessa maneira, nenhuma desequiparação pode ser promovida se criar um regramento normativo próprio que não assegure os ideais acolhidos pela ordem constitucional. O parâmetro para avaliar se a diferença instituída por lei é válida ou não reside justamente nos valores consagrados na Constituição (EFFTING, 2012, p. 88. e 89).
E, se a igualdade só é lesada quando o elemento discriminador não se encontrar a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito (MORAES, 2013, p. 112), vedar o regime solidário na recomposição do patrimônio público se revela incompatível com a Constituição Federal, porquanto não é coerente sustentar que o seu art. 37, § 4º, admita instrumentos que, em alguma medida, enfraqueçam a proteção da probidade. Pelo contrário, o comando que dele emana é diametralmente oposto: há verdadeira ordem ao legislador infraconstitucional para que sejam editadas leis que efetivamente ofereçam garantias nessa seara.
Como a solidariedade reflete diretamente na eficácia do ressarcimento ao erário, que, por sua vez, representa um conteúdo essencial da probidade administrativa fato, aliás, reconhecido pelo já citado art. 37, § 4º , não pode o Poder Legislativo criar regramentos jurídicos desiguais e que afrontem o mandamento constitucional, seja sob qual pretexto for.
Por tal razão, eventual interpretação do art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992 que afaste a solidariedade por completo do ressarcimento ao erário nas ações de improbidade administrativa seria, também, inconstitucional por violar o princípio da isonomia.
6. Conclusões
Após as reformas ocasionadas pela Lei nº 14.230/2021, as ações de improbidade administrativa passaram a ter cunho exclusivamente sancionador e não podem mais veicular pretensões que não sejam a aplicação das penas de caráter pessoal previstas na Lei nº 8.429/1992, conforme determinação contida no art. 17-D, caput.
Por uma opção legislativa veiculada no parágrafo único desse dispositivo, a proteção do patrimônio público, incluído aqui o ressarcimento ao erário, e as demais consequências que os atos ímprobos eventualmente causem na seara civil, passam a ter como diploma legislativo de regência a Lei nº 7.347/1985, que trata da ação civil pública.
Diante dessa nova roupagem dada ao microssistema de proteção da probidade administrativa, o art. 17-C, § 2º, da Lei nº 8.429/1992, quando dispõe que é vedada qualquer espécie de solidariedade na condenação por atos ímprobos, não está se referindo à reparação dos danos causados por essa ordem de ilícito, mas tão somente às penalidades de perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos; pagamento de multa civil; e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, previstas no art. 12, I, II e III.
O ressarcimento dos prejuízos infligidos ao patrimônio público submete-se ao regramento geral da responsabilidade civil, notadamente aquele instituído pelo art. 942, caput, do Código Civil, segundo o qual todos os indivíduos que concorram para a lesão de direito alheio respondem solidariamente pela sua reparação. Portanto, a despeito das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, o ressarcimento ao erário dos danos decorrentes dos atos ímprobos tipificados na Lei nº 8.429/1992 prossegue admitindo a responsabilidade solidária em face daqueles que praticaram os correspondentes ilícitos.
Ainda que assim não o fosse e eventualmente a Lei nº 8.429/1992 tivesse vocação para disciplinar o ressarcimento ao erário, a análise do seu art. 17-C, § 2º, à luz da interpretação literal e topográfica, e de outras técnicas hermenêuticas como ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit e exceptiones sunt strictissimoe interpretationis, demonstram que a solidariedade nesse âmbito não seria afastada por completo, mas tão somente a partir das sentenças condenatórias, permitindo a aplicação do regime solidário nas etapas processuais anteriores, inclusive para fins da indisponibilidade patrimonial de que trata o art. 16.
E nem poderia ser diferente, porque não é dado ao legislador ordinário restringir completamente a incidência da solidariedade na recomposição do patrimônio público, sob pena de incidir em flagrante inconstitucionalidade por violação aos princípios da proibição da proteção deficiente e da isonomia.
O princípio da proibição da proteção deficiente impede a instituição de um regramento que dificulte consideravelmente as chances de um ressarcimento exitoso em favor do erário, pois essa reparação integral constitui uma das facetas do direito fundamental à probidade administrativa, por determinação do art. 37, § 4º, da Constituição Federal.
Além do mais, o afastamento absoluto da solidariedade acabaria por instituir dois regramentos distintos no ordenamento jurídico brasileiro: um aplicável ao ressarcimento dos danos causados por atos ímprobos, em que não seria possível demandar cada um dos devedores pela totalidade do prejuízo, e outro na recomposição dos demais ilícitos civis, que, com base no art. 942, caput, do Código Civil, permitiria responsabilização solidária de qualquer devedor. Esse panorama infringiria o princípio da isonomia, por consagrar regramento nitidamente mais gravoso à Administração Pública e em descompasso com a tutela constitucional conferida à probidade administrativa.