Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito processual penal. Violência doméstica. Presunção de inocência. Depoimento da ofendida.
Em relação ao tema direito probatório, a Constituição da República, em seu art. 5º, inc. LVI, apenas prescreve que são inadmissíveis, no processo, seja ele judicial ou administrativo, as provas obtidas por meios ilícitos.
De seu turno, o novo Código de Processo Civil, de forma mais atualizada, possui diversos dispositivos que tratam sobre o direito probatório, os quais devem ser aplicados subsidiariamente ao processo penal. Entretanto, o mais interessante é o seguinte, verbis:
Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório.
Outrossim, a exposição de motivos do Código de Processo Penal, no tema “as provas”, o jurista deixa claro que
“não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei civil, salvo quanto ao estado das pessoas; nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material”.
Portanto, em uma conclusão preliminar, podemos afirmar que todas as provas possuem valor relativo, inexistindo qualquer hierarquia entre elas, inclusive o depoimento da ofendida nos casos de violência doméstica e familiar, atribuindo-lhe o magistrado o valor que considerar pertinente.
Nada obstante, na prática processual penal, em especial em tema de violência doméstica e familiar contra a mulher, temos observado uma hipertrofia valorativa do depoimento da suposta vítima em relação ao do suposto agressor.
Oportunamente, cumpre fazer uma advertência em relação ao ônus da prova no processo penal, que é exclusivo da acusação.
Nesse caminho, segundo o Subprocurador-Geral da República Paulo Queiroz1,
Temos, porém, que no processo penal, o ônus probatório é todo da acusação, já que o processo não se destina a demonstrar a inocência, que se presume constitucionalmente (CF, art. 5º, LVII), e sim a culpa. Não se prova a inocência, mas a culpa. Justo por isso, o art. 156, caput, do CPP, segundo o qual a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, deve ser interpretado conforme a Constituição, de modo a evitar inversões indevidas da carga probatória ofensivas à presunção legal de inocência. (g. n.)
Da mesma forma, temos o voto do ex-ministro Celso de Melo, um dos mais importantes juristas de seu tempo, o qual definiu que o ônus da prova recai privativamente sobre o órgão acusador, verbis:
É sempre importante reiterar – na linha do magistério jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria – que nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalecem em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº. 88, de 20/12/37, art. 20, nº. 5). Precedentes. (HC nº 83.947/AM)
No mesmo sentido, temos acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, verbis:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. A DENÚNCIA COMO QUALQUER PETIÇÃO INICIAL CONTÉM “DESENHO ESTRATÉGICO SUBJACENTE, QUE SUGERE UM PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE PROBATÓRIA E UMA PROPOSTA DE LEITURA DE PREVISÍVEL RESULTADO DESTA ATIVIDADE DIRIGIDA AO JULGADOR”. INADMISSIBILIDADE DE AÇÃO PENAL SEM SUPORTE EM UM MÍNIMO DE INFORMAÇÕES QUE ASSEGUREM TRATAR-SE DE DEMANDA NÃO LEVIANA OU TEMERÁRIA (ARTIGO 395, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL CONFORME A REDAÇÃO DA LEI 11.719/08) CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO QUANDO A DENÚNCIA RECEBIDA PROPÕE A CONDENAÇÃO DA PACIENTE COM BASE EM MEIO DE PROVA DE PLANO INCAPAZ DE AUTORIZAR A EMISSÃO DE DECRETO CONDENATÓRIO. (HC nº 0041075-39.2008.8.19.0000)
Aliás, o princípio da presunção de não culpabilidade é tão importante que, com base nele, o Supremo Tribunal Federal reputou inconstitucional a execução provisória da pena, ou seja, após o acórdão condenatório proferido por tribunal de 2º grau, aniquilando as estratégias adotadas na operação Lava Jato pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal.2
Na mesma senda, vem tratando a doutrina de direito processual penal. Eis as lições de Nestor Távora, um dos mais docentes mais qualificados da atualidade3:
A ação só pode ser validamente exercida se a parte autora lastrear a inicial com um mínimo probatório que indique os indícios de autoria, da materialidade delitiva, e da constatação da ocorrência de infração penal em tese (art. 395, I1I, CPP). É o fumus commissi delicti (fumaça da prática do delito) para o exercício da ação penal. Como a instauração do processo já atenta contra o status dignitatis do demandado, não se pode permitir que a ação seja uma aventura irresponsável, lançando-se no polo passivo, sem nenhum critério, qualquer pessoa. Nos dizeres de Afrânio Silva Jardim, ‘torna-se necessário ao regular exercício da ação penal a demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova. Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade’. (g. n.)
De forma idêntica, o professor Gustavo Henrique Badaró4:
O interesse de agir é a relação de utilidade entre a lesão de um direito afirmado e o provimento de tutela jurisdicional pleiteada. O autor tem interesse na demanda quando esta possa lhe trazer alguma utilidade. A utilidade é aferida por meio da necessidade do provimento jurisdicional e de sua adequação. O interesse de agir decorre, pois, da necessidade mais a adequação. É possível que o provimento seja necessário sem ser adequado ou, seja adequado sem ser necessário. Em ambos os casos não há interesse de agir, sendo desnecessário o prosseguimento do processo, porque o provimento que se pede é inútil, seja por não ser necessário, seja por não ser adequado a eliminar a lesão afirmada (...) A denúncia ou queixa deverá ser liminarmente rejeitada se faltar uma das condições para a ação penal (CPP, art. 395, II, segunda parte), ou se esta for destituída de justa causa, (CPP, art. 395, III). (g. n.)
Contudo, em se tratando de delitos envolvendo a Lei Federal nº 11.340/2006, a mera declaração da ofendida, muitas vezes não acompanhada de outras provas, tem embasado a instauração de inquéritos policiais, oferecimento de denúncias, a até mesmo a prolação de sentenças condenatórias5, felizmente rejeitadas pelos tribunais superiores.
Por conseguinte, conforme já obtemperou o Tribunal de Justiça de São Paulo,
"no que tange aos crimes de violência doméstica e familiar, que são normalmente cometidos fora das vistas de testemunhas, tal como seu deu na espécie, a palavra da ofendida assume especial importância, a ponto de que, desmerecê-la, sem justificativa plausível, especialmente quando comprovada pericialmente, seria fomentar a impunidade".6
Com igual espírito, temos decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, verbis:
EMENTA: PENAL. LESÕES CORPORAIS E VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. AUTORIA. PENA-BASE. FRAÇÃO DE AUMENTO. Crimes de violação de domicílio e de lesão corporal, praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, comprovados pelo depoimento das vítimas, pelo laudo de exame de corpo de delito, por fotografia e pela confissão, ainda que parcial, do réu. Em crimes praticados no âmbito doméstico, a palavra da vítima assume especial relevância, máxime quando coerente e harmônica com os demais elementos de convicção. O Código Penal não define um critério matemático para a fixação da pena-base, prevalecendo na jurisprudência, na primeira fase da dosimetria, por estabelecer parâmetros razoáveis e proporcionais, o que aplica, para cada circunstância judicial negativa, a fração de 1/8 sobre a diferença entre as penas máxima e mínima cominadas em abstrato ao crime. Esse critério, como determina o artigo 59, inciso II, do Código Penal, fixa a quantidade da pena dentro dos limites previstos, que são as penas mínima e máxima cominadas em abstrato, aquilatadas as oito circunstâncias judiciais. Por isso é o mais adequado. Apelo desprovido. (Apl. Nº 0006520-81.2017.8.07.0010)
EMENTA: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. PALAVRA DA VÍTIMA. RECURSO DESPROVIDO. I - Mantém-se a condenação do réu pela prática do crime de lesão corporal se as declarações harmônicas da vítima,corroboradas pelo laudo pericial, demonstram que o acusado a agrediu fisicamente. II - Nos crimes praticados no âmbito familiar e doméstico, a palavra da vítima reveste-se de especial credibilidade, mormente quando verossímil e não confrontadas com outras provas que a desmereçam. III - Recurso conhecido e desprovido.” (TJ/DFAPR 20120710305817 Rel. Des. Nilsoni de Freitas Terceira Turma- julg. 28/01/2016 publ. DJe 03/02/2016)
Contudo, no último julgado, o sodalício foi além, e asseverou que a palavra da vítima deveria ser confrontada com outras provas para ser desacreditada, ao contrário do que propugna a doutrina processualista, que afirma que o ônus da prova compete integralmente ao Acusador, não cabendo ao réu provar sua inocência.
Portanto, para que a palavra da ofendida tenha força para embasar um decreto condenatório, é imprescindível a existência de outros elementos confirmatórios nos autos, sob pena de rejeição da denúncia (ou queixa) por falta de justa causa.
Inclusive, em sua jurisprudência em teses, edição nº 111, o Superior Tribunal de Justiça tratou sobre o tema provas no processo penal, assegurando que
3) Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos.
4) Nos delitos praticados em ambiente doméstico e familiar, geralmente praticados à clandestinidade, sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios acostados aos autos.7
Nada obstante, calha trazer a reflexão uma advertência feita de a muito pela doutrina, no sentido de que as declarações da vítima devem ser recebidas com cuidado e reserva, diante da paixão e da emoção que as contaminam. Eis os escritos de Hélio Tornaghi:
Contudo, ao nosso sentir, a palavra do ofendido deve sempre ser tomada com reserva, diante da paixão e da emoção, pois o sentimento de que está imbuído, a justa indignação e a dor da ofensa não o deixam livre para determinar-se com serenidade e frieza (cf. H. Tornaghi, Curso, p. 392) (*) in, JURISPRUDÊNCIA CRIMINAL: PRÁTICA FORENSE: ACÓRDÃOS E VOTOS, Rio de Janeiro, 1999, Lumen Juris, página 20.
Portanto, para que as ações penais que tratem de violência doméstica e familiar contra a mulher não se tornem campo fértil para a vingança privada, necessário que as instituições da persecução penal atuem com diligência e esmero, notadamente a Polícia Civil e o Ministério Público, evitando-se acusações formuladas com base unicamente no testemunho da vítima, sob pena de consagrar-se o direito penal do inimigo.
A propósito, a Súmula nº 589 do STJ contem uma semente do direito penal do inimigo, já que preceitua ser inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas (seria como afirmar que o insignificante não é insignificante).
Nesse percurso, conforme afirmam os Promotores de Justiça Marcelo e Alexandre, citando Jesús-María Silva Sanchez, o direito penal de terceira velocidade ou direito penal da pena de prisão seria marcado pela relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais. Sustentam ainda que essa terceira velocidade existe no direito penal socioeconômico, sem descartar sua incidência nos casos de delinquência patrimonial profissional, delinquência sexual violenta e reiterada, ou nos casos de criminalidade organizada e terrorismo. E concluem que o direito penal do inimigo é uma das manifestações desse terceira velocidade do direito penal.8
Sem embargo, medidas de cunho administrativo, cível ou cautelares poderão e deverão ser adotadas pelos órgãos competentes, tal como o afastamento do (suposto) agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida previstos no artigo 12-C da Lei Maria da Penha, sob pena de colocar em risco um bem maior que a presunção de não-culpabilidade, que é a vida.
Nada obstante, caso haja excesso por qualquer daqueles órgãos, caberá ao Poder Judiciário repeli-lo, com base no princípio constitucional da presunção de inocência, direito fundamental e cláusula pétrea.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal. Introdução. 4ª Ed. - São Paulo: Juspodivm, 2023.
SALIM, Alexandre. AZEVEDO, Marcelo André de. Direito Penal. Parte Geral. 12ª Ed. - São Paulo: Juspodivm, 2022.
TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 8ª Ed. - Bahia: Juspodivm, 2013.
Notas
1 Direito Processual Penal. Introdução. 4ª Ed. - São Paulo: Juspodivm, 2023, pág. 375.
2 ADC nº 54 – EMENTA: PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE. Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória.
3 Curso de Direito Processual Penal. 8ª Ed. - Bahia: Juspodivm, 2013.
4 Disponível em: http://badaroadvogados.com.br/20-06-2017-as-condicoes-da-acao-penal.html Acesso em: 18/12/2018.
5 Ver ação penal nº 0091677-50.2016.8.19.0001.
6 Ver ações penais nº 1502421-37.2020.8.26.0114 e 0000082-81.2017.8.26.0601.
7 Disponível em: https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2018/10/STJ_JurisprudenciaeemTeses11105102018.pdf Acesso em: 29/12/2022.
8 Direito Penal. Parte Geral. 12ª Ed. - São Paulo: Juspodivm, 2022, pág. 91/92.