1. Introdução.
A Lei que regula a Ação Popular, nº 4.717, de 29 de junho de 1965, cria uma série de possibilidades para a anulação ou declaração de nulidade de qualquer ato que gere prejuízos a bens públicos de todos os entes federativos e da administração pública direta, indireta e fundacional e de empresas públicas para as quais a Fazenda Pública tenha concorrido com mais de 50% do patrimônio ou da receita anual.
A lei estabelece as possibilidades de anulação em seu artigo 2º, exigindo a lesividade como primeiro requisito para a anulação:
Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
a) incompetência;
b) vício de forma;
c) ilegalidade do objeto;
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.
A própria lei define o conceito das hipóteses de anulação, em caso de interpretação autêntica:
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo;
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
Para os estreitos limites do presente texto, vamos nos fixar na hipótese do desvio de finalidade e na possibilidade de anulação de atos praticados visando a fim diverso do declarado.
2. O desvio de finalidade
A Lei 4.717/65 estabelece o conteúdo do desvio de finalidade na alínea ‘e’ do parágrafo único do artigo 2º, como já visto.
Além do conceito legal, pode-se falar, também que o “Desvio de finalidade é a situação na qual um gestor público age ou decide fora das finalidades que a lei e a constituição estabelecem para a máquina do Estado.[1]”
Outra definição é “O desvio de finalidade é, antes de tudo, uma conduta dissimulada praticada por agente público, no exercício da função, que demonstra a vontade – ou, pelo menos, a negligência desse praticante - em não se portar conforme a legalidade e moralidade, causando prejuízo à administração pública, na medida que o interesse público – a verdadeira finalidade do ato – não é alcançado.”[2]
O que deve ser ressaltado, para os fins desse texto, é que o ato praticado com desvio de finalidade possui duas camadas diferentes de efeitos: Uma superficial, evidente aos olhos de todos e outra, subterrânea, visível apenas após um exame muito acurado e é essa camada subterrânea que é a verdadeira razão da prática do ato e que pode, em casos mais extremados, ser contrária à camada pública.
Todo ato público pode, assim, ser praticado com desvio de finalidade, desde que direcionado para o atendimento de uma finalidade diferente da finalidade prevista na legislação.
3. A lesividade do ato
Como já dito, a lesividade do ato é requisito essencial para sua anulação.
Ocorre que a lesividade pode se verificar tanto em valores financeiros quanto em valores imateriais.
Temos que a nomeação de alguém despreparado para exercer o cargo para o qual escolhido causará lesão cofres públicos, pois o tesouro estará pagando por um serviço que não irá receber, bem como lesão ao interesse público protegido pela instituição que será presidida pelo incompetente, interesse público esse que se verá desprotegido.
Falamos em despreparo e incompetência, mas o quadro se mantém igual no caso de eventual má-fé, com a nomeação de um “inimigo da causa” para participar de uma entidade que tem objetivo bem delineado. Essa nomeação irá causar os dois tipos de dano supracitados, o dano financeiro consistente no pagamento dos salários de alguém que não irá atender ao que deveria, bem como o dano ao interesse público protegido, dada a atuação contrária aos ideais da instituição.
4. A nomeação em cargos públicos
Para que a Administração Pública possa alcançar seus objetivos, ela pode contratar empresas para executar ou fornecer os bens necessários, e pode contratar pessoas para realizar as atividades necessárias.
No direito brasileiro, existem três formas de contratação direta de pessoal pela administração, a saber, a contratação direta para cargos públicos, que exige concurso público; a contratação temporária, que exige processo seletivo simplificado; e a contratação para o exercício de cargos de confiança, que é feita através de simples indicação.
A nomeação para o exercício dos cargos de confiança está prevista no inciso II do artigo 9º da lei 8.112/90, com a seguinte redação:
Art. 9o A nomeação far-se-á:
II - em comissão, inclusive na condição de interino, para cargos de confiança vagos.
As leis que organizam o poder executivo, bem como as que criam as autarquias ou as que autorizam a criação de fundações públicas, costumam prever a criação dos cargos de confiança necessários para a gestão, podendo, ou não, especificar quais serão os cargos criados.
Outra possibilidade que é comum, no direito brasileiro, é o remanejamento de cargos em comissão criados por outra lei para a entidade. Desse caso, podemos citar como exemplo o Decreto 11.226, DE 7 DE OUTUBRO DE 2022, que aprovou o estatuto da Fundação Nacional do Índio e remanejou diversos cargos em comissão, como vemos em seu artigo 2º, ora in verbis:
Art. 2º Ficam remanejados, na forma do Anexo III, os seguintes cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, Funções Comissionadas do Poder Executivo - FCPE, Funções Gratificadas - FG, Cargos Comissionados Executivos - CCE e Funções Comissionadas Executivas - FCE:
I - da Funai para a Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia:
a) um DAS 101.6;
b) três DAS 101.5;
c) quatorze DAS 101.4;
d) noventa e um DAS 101.3;
(...omissis...)
O anexo II do citado decreto especifica quais cargos em comissão serão destinados para o preenchimento de cada vaga na gestão da FUNAI:
Desta forma, a indicação de alguém para exercer a função de Presidente da FUNAI será através de um ato de nomeação específica para esse cargo em comissão e essa pessoa receberá, como remuneração, o valor equivalente ao cargo CCE 1.17.
5. A conduta razoavelmente esperada da pessoa que ocupa um cargo público, ainda que em comissão.
O direito brasileiro, em normas esparsas, indica qual deve ser o comportamento da pessoa que ocupe um cargo público, começando pelo artigo 116 da lei 8.112/90, que nos informa serem deveres do servidor público, dentre outros:
Art. 116. São deveres do servidor:
I - exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;
II - ser leal às instituições a que servir;
III - observar as normas legais e regulamentares;
IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;
O inciso II (“ser leal às instituições a que servir”) é o que mais nos interessa, nos limites deste texto, já que vincula a atuação do servidor público lato sensu, isto é, tanto do servidor ocupante de cargo efetivo quando do ocupante do cargo em comissão.
E qual é o conteúdo jurídico do inciso II? É a obrigação do ocupante do cargo em ser leal à instituição a que servir. Em outras palavras, não pode o servidor frustrar os objetivos do órgão no qual lotado de forma proposital, isto é, trair a instituição.
A lealdade à instituição tem muito mais relevância no que diz respeito à obrigação do ocupante do cargo envidar seus esforços para que o bem jurídico (que é a causa da criação da instituição) seja bem atendido, do que um exercício meramente burocrático do cargo, sem o real comprometimento com os fins públicos da instituição.
Usando novamente a FUNAI como exemplo, o estatuto dela (anexo ao decreto 11226/2022) estabelece, em seu artigo 2º, que a citada fundação tem por finalidade, dentre outras:
Art. 2º A Funai tem por finalidade:
I - proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União;
II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) reconhecimento da organização social, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições dos povos indígenas;
b) respeito ao cidadão indígena e às suas comunidades e organizações;
c) garantia, aos povos indígenas, do direito originário, da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam, da posse permanente e do usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes;
d) garantia, aos povos indígenas isolados, do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a necessidade de serem contatados;
e) garantia da proteção e da conservação do meio ambiente nas terras indígenas;
f) garantia da promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; e
g) garantia da participação dos povos indígenas e das suas organizações em instâncias do Estado que estabeleçam políticas públicas que lhes digam respeito;
III - administrar os bens do Patrimônio Indígena, conforme o disposto no art. 23;
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas, com vistas à valorização e à divulgação de suas culturas;
V - monitorar as ações e os serviços de atenção à saúde dos povos indígenas;
Desta forma, o inciso II da lei 8.112/90 exige que a pessoa que vá ocupar o cargo de presidente da FUNAI atenda às finalidades do órgão público, previstas no artigo 2º do estatuto, cujo trecho colacionamos acima, e não apenas às incumbências previstas no artigo 18 do mesmo estatuto, que ora transcrevemos:
Art. 18. Ao Presidente da Funai incumbe:
I - representar a Funai;
II - articular-se com órgãos e entidades públicas e instituições privadas;
III - gerir o patrimônio indígena e estabelecer normas sobre a sua gestão;
IV - decidir sobre a aquisição e a alienação de bens móveis e imóveis da Funai e do patrimônio indígena;
V - firmar convênios, acordos, ajustes e contratos de âmbito nacional;
VI - ratificar os atos de dispensa ou de declaração de inexigibilidade das licitações, nos casos previstos na legislação;
VII - editar instruções sobre o poder de polícia nas terras indígenas;
VIII - submeter à aprovação do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública a proposta orçamentária da Funai;
IX - ordenar despesas, incluída a renda indígena;
X - dar posse e exonerar servidores públicos do quadro de pessoal da Funai;
XI - editar atos normativos internos e zelar pelo seu fiel cumprimento;
XII - supervisionar e coordenar as atividades das unidades organizacionais da Funai, mediante acompanhamento dos órgãos de sua estrutura básica; e
XIII - definir o local de sede das unidades descentralizadas da Funai.
Desta forma, um presidente da FUNAI que atue cumprindo o artigo 18 do estatuto, mas deixe de atender aos objetivos e finalidades previstos no artigo 2º do Estatuto estará cometendo uma infração administrativa por ser desleal à instituição a que serve.
E o real conteúdo dessa lealdade administrativa vai variar de acordo com a instituição. Na Funai, essa lealdade se corporifica na atuação a favor dos direitos dos índios. Na Ancine, na atuação para expandir o mercado do audiovisual brasileiro. Na Funasa, por uma atuação a favor da saúde. Na Susep, uma atuação que deixe o mercado de seguros e resseguros cada vez mais sólido.
Simplificando ao máximo, a lealdade que se exige do ocupante do cargo público é assemelhada à lealdade que se espera do dirigente de um clube de futebol, ao qual é vedado ser torcedor do clube adversário e não deve beneficiar o adversário como principal objetivo de seu mandato.
6. Deslealdade à instituição: Acidente ou Projeto?
Como visto acima, a deslealdade à instituição é uma infração administrativa na órbita federal, por violação ao dever inscrito no artigo 116, II, da lei 8.112/90.
Essa infração administrativa pode ocorrer, em um caso específico, com a nomeação de alguém cujas crenças sejam contrárias às finalidades da instituição para a qual está sendo nomeado.
Essa nomeação de um “inimigo” da causa pode ser fruto de um equívoco sincero ou pode ser parte de um esforço deliberado para minar determinadas instituições de estado.
Correndo o risco de parecer absurdo, poderíamos dar o exemplo da nomeação de alguém se diga contrário ao movimento negro ou que diga que o racismo não existe para a Presidência da Fundação Cultural Palmares, que só existe para combater o racismo e a discriminação aos negros, ou, ainda, de alguém que acredite que todos os índios devam ser aculturados para a presidência da FUNAI.
Caso seja possível comprovar a existência de um esforço deliberado para minar a atuação de determinado ente público com a nomeação de alguém contrário às posições da instituição, poderemos estar falando de nulidade do ato de nomeação dessa pessoa por desvio de finalidade.
A nomeação do presidente de qualquer entidade pressupõe a confiança do governo de que aquela pessoa é a mais indicada para fazer com que a entidade que ele irá dirigir alcance seus objetivos.
No caso contrário, se o governo indica determinada pessoa para determinado cargo para que a instituição deixe de realizar sua função e conta com a cumplicidade do indivíduo indicado para obstar o funcionamento do órgão público e atrapalhar a consecução de suas metas, frustrando a própria existência do ente público, haverá desvio de finalidade no ato de nomeação.
Como dissemos acima, o ato praticado com desvio de finalidade possui duas camadas, a superficial e a subterrânea.
A camada superficial é a nomeação da pessoa para que a entidade possa cumprir com seus objetivos e a camada subterrânea, real, é o acordo entre governo e indicado para que nada seja feito ou, em caso ainda mais extremo, para que a entidade aja de forma contrária ao que deveria.
A maior dificuldade, nesse caso específico que ora tratamos, é a prova da intenção, exatamente por se tratar de um ato dissimulado.
7. A lesividade da nomeação de alguém contrário aos fins da instituição
Dissemos, acima, que a lesividade do ato de nomeação poderia se verificar no âmbito meramente financeiro, com o pagamento dos salários a alguém que não cumpriu com seus deveres legais, mais notadamente o de lealdade; e no âmbito da atuação, fazendo a instituição agir contra seus próprios valores, ameaçando a razão de existência da mesma.
O dano à matéria específica da instituição é de difícil levantamento e pode, em alguns casos hipotéticos, ser total ou permanente e envolver a própria imagem da instituição pública.
Já o dano financeiro de pagar salários para alguém que não cumpriu com seus deveres é bem mais simples de ser quantificado e, por isso, cobrado dos responsáveis.
O dirigente de entidade pública que não cumpriu seus deveres de forma deliberada recebeu salário e não entregou trabalho útil, podendo ser responsabilizado por isso e, eventualmente, ser condenado a devolver os valores recebidos.
No caso aqui tratado, temos que os salários pagos ao dirigente incompetente ou mal intencionado poderão ser cobrados tanto do dirigente que recebeu os valores para não atender aos fins da entidade quanto da pessoa que escolheu tal dirigente.
A nulidade do ato de nomeação vai se estender durante todo o mandato do dirigente nomeado com desvio de finalidade, fazendo com que o prejuízo financeiro do estado seja verificado em cada pagamento de salário, razão pela qual, nesse caso, é possível se falar em devolução dos salários, já que não houve, e de forma proposital, a entrega do trabalho devido correspondente.
8. Prescrição dos atos de nomeação de dirigentes
A lei 4.717/65 estabelece:
Art. 21. A ação prevista nesta lei prescreve em 5 (cinco) anos.
Desta forma, as nomeações realizadas a partir de janeiro de 2019 poderão ser discutidas na justiça até o mês de janeiro de 2024, abrindo caminho para a responsabilização dos nomeados nos últimos cinco anos.
[1] https://www.politize.com.br/desvio-de-finalidade-o-que-e/
[2] https://jus.com.br/artigos/60569/desvio-de-finalidade-e-documentacao-escrita-dos-atos-administrativos