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A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio

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05/08/2007 às 00:00
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4. BREVE HISTÓRICO

A aplicação do supracitado instituto é polêmica, haja vista inúmeras discussões que são inevitavelmente reavivadas a partir da adoção pelo Estado de um "favor jurídico" dado ao delator em nome do bem da coletividade.

Sabe-se que os humanos são animais sociais e que o afastamento do convívio em grupo desnatura a condição de humano do indivíduo. Desta feita, para que haja humanidade, é necessária a existência de integração social e esta, por sua vez, para que esteja presente, reclama a presença de confiabilidade entre as pessoas.

Assim, os homens aproximam-se e mantêm-se coesos porque esperam uns dos outros a confiança recíproca para travarem suas relações sociais.

A propósito, a História oferece farto material em que o ultraje a esses comportamentos de coesão social, ou seja, os que inspiram a confiança, são duramente rechaçados pelas sociedades ocidentais.

A Bíblia Sagrada relata o mais emblemático caso de delação premiada: a entrega de Jesus à crucificação em troca de trinta moedas de prata (Mateus, Capítulo XXVI, ver. 15). Nesse aspecto, cumpre advertir que, no caso de Judas Iscariotes, a cólera das pessoas é dirigida ao traidor, sendo quase indiferente ao mandante e aos algozes, os quais efetivamente poderiam ter evitado a execução ou diminuído o sofrimento do Messias. Disso extrai-se que a dor da ferida aberta, do açoite e do assassinato ecoam com menor intensidade se comparado à delação. Já que, mais do que provocar mera reprovação, a cagüetagem é rejeitada veementemente como comportamento torpe, indigno, o que fez muitos prisioneiros políticos resistirem à humilhação da tortura em nome da lealdade aos seus pares.

Um outro exemplo indefectível é o protagonizado por Joaquim Silvério dos Reis, o anti-herói da Inconfidência Mineira, que devido às semelhanças de seu ato de delação com o paradigma bíblico, quais sejam: entrega de um líder e em troca de vantagem econômica, potencializou a estima pela figura de Tiradentes, sendo que até na história oficial da Inconfidência Mineira a idealização do líder é manifesta.

Se de um lado a história romantiza as vítimas de delação, de outro há uma implacável condenação dos delatores. Estes, muito embora possam ter inúmeros motivos para serem lembrados, são indelevelmente maculados pela má-fama de "dedo-duro". A propósito, o psicanalista Raymundo de Lima cita dois exemplos de artistas que receberam da população a pecha de delatores. Vejamos.

(...) O cantor Wilson Simonal, no auge do seu sucesso, foi "queimado" pelo meio artístico como dedo-duro, porque supostamente teria servido aos órgãos de repressão do regime militar(...)o cineasta Elia Kazan, por exemplo, seria lembrado na história do cinema mais como delator dos artistas do que pelos filmes que realizou .Em 1999 quando o velho cineasta foi a (sic) Academia receber o Oscar pelo conjunto de sua obra, o público ainda demonstrava ressentimento pela sua atitude no passado, não se levantando nem o aplaudindo. (LIMA, 2005, p. 1).

Neste cariz, é oportuno salientar que o cantor Wilson Simonal, a pedido de sua família, foi julgado e inocentado em um julgamento post-mortem simbólico que o absolveu da acusação de ser delator de companheiros de trabalho, conforme se vê na nota abaixo.

REABILITAÇÃO MORAL

BRASÍLIA - Em julgamento simbólico, a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) declarou a inocência do cantor Wilson Simonal, que fora acusado na década de 70 de ter delatado a órgãos de repressão política do regime militar colegas como Caetano Veloso e o atual ministro da Cultura, Gilberto Gil. Simonal morreu em junho de 2000. A família e amigos pediram à entidade a "reabilitação moral" do cantor. O processo ainda será apreciado pelo Conselho Federal da OAB, que deverá confirmar a decisão. A comissão da OAB considerou que ele fora julgado pela opinião pública, sem acusação formal e direito à defesa. A sua carreira teria declinado rapidamente após o surgimento da acusação, no início dos anos 70 (...). (http://www.pernambuco.com/diario/2003/09/25/brasil7_0.html, acesso em 15/08/2006).

Isto posto, observa-se o quanto é estimada a lealdade entre membros de um grupo, o que chega a ser uma questão de honra, pois, caso não fosse, não haveria necessidade de realização de um julgamento simbólico a fim de "salvar" a memória de um artista.

Para não relatar casos distantes da atualidade, pode-se lembrar o ocorrido recentemente envolvendo a ex-primeira dama da cidade de São Paulo, Nicéa Camargo, e o ex-prefeito, Celso Pitta. O fato de a delação ter sido útil na investigação de um esquema de corrupção não lhe rendeu homenagens nem menções honrosas. O dedurismo, nesse caso, por envolver a quebra de uma relação de confiança, provoca mais a sensação de asco do que de justiça.


5. UM CONFLITO DE VALORES

O debate em torno dos valores em jogo quando se trata de opor a lei estatal à pessoa humana é sempre atual. Tanto é assim que a tragédia de Sófocles, "Antígona" e o livro "O Príncipe" mantêm-se entre os títulos clássicos que nunca caducam.

Em Antígona, expõe-se o conflito entre a lei do Estado e uma lei dita divina. A trama desenrola-se após a tentativa de Polinices de invadir Tebas, cidade governada por Creonte, seu irmão. Diante do ato de insurreição comandado pelo próprio irmão, Creonte decreta que o corpo de Polinices, morto na invasão, deveria permanecer insepulto, já que era indigno de qualquer rito fúnebre.

Esse ato é desrespeitado por Antígona, irmã de Polinices e Creonte, que justifica sua insubordinação invocando leis não escritas as quais "desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram" (SÓFOCLES, 406 ou 494-406 a.C., p.219) e por conta deste ato de desobediência civil, é presa por ordem de Creonte.

A tragédia traz à baila conflitos intrínsecos ao Direito Positivo, como aquele existente na norma válida e socialmente inaceitável e também entre o interesse estatal e a dignidade da pessoa humana.

A obra de Maquiavel intitulada "O Príncipe" retrata a oposição entre Estado e Pessoa, colocando em primeiro lugar a manutenção do Estado e relegando a um segundo plano os valores do ser humano, tendo em vista que a população que garante a governabilidade do Príncipe espera deste essencialmente resultados, que devem ser as principais balizas de quem dirige um povo. Vejamos: "Trate, pois, o príncipe, de vencer e conservar o poder; os meios são sempre julgados honrosos e louvado por todos, porque o vulgo sempre se deixa levar pela aparência e pelo resultado das coisas". (grifo nosso) (MAQUIAVEL, 2006, p. 107).

Além disso, conforme a doutrina de Maquiavel, a missão de um Príncipe compreende dar proteção a uma legião de concidadãos, os quais estarão mais salvaguardados com o sacrifício de alguns particulares, o que reflete um modo de pensar o interesse público sob um ângulo estritamente numérico. Em outros termos, é bom para o povo o que preserva a segurança da maioria, como se depreende da leitura do seguinte trecho:

Portanto, o príncipe não deve importar-se com a fama de cruel, para manter seus súditos unidos e confiantes, pois, com pouquíssimos exemplos, será mais piedoso que aqueles que, por piedade demais, deixarem acontecer as desordens, das quais surgem a morte e rapina; estes prejudicam uma comunidade inteira e as execuções, ordenadas pelo príncipe, prejudicam um só particular. (MAQUIAVEL, 2006, p. 99).

Da mesma forma que os exemplos colhidos da literatura acima demonstrados, a discussão do tema delação premiada induz a uma polarização entre duas idéias centrais: a primazia do valor pessoa humana versus o interesse do Estado.

Neste embate teórico, sobram argumentos em favor de ambos os posicionamentos, sendo que o crescimento vertiginoso da criminalidade e a repulsa social ao traidor merecem especial destaque. O primeiro argumento corresponde àqueles que se filiam à idéia segundo a qual o interesse público e a imperiosa necessidade de combate ao crime justificam o estímulo estatal ao ato de delação. O segundo argumento refuta o primeiro afirmando que a preservação das relações humanas e a primazia da dignidade da pessoa humana são valores irrenunciáveis.


6. CONTRA-SENSO NORMATIVO

Além das questões de natureza axiológica acima demonstradas, a aplicação do favor premial importa em um paradoxo jurídico que se manifesta sob variadas formas, como no desvirtuamento dos fins do Direito Penal, no enfraquecimento do poder normativo da lei e na quebra da noção de ordenamento jurídico, conforme se verá a seguir.

6.1 Desvirtuamento dos fins do Direito Penal

A finalidade do Direito Penal, no escorreito ensinamento do Procurador de Justiça Rogério Grecco, consiste em "proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade". (GRECCO, 2006, p. 4).

Desta sorte, a preocupação primordial das Ciências Criminais deve estar voltada para a promoção dos valores mais caros à sociedade, sendo a sanção um meio que o Estado utiliza para salvaguardar tais valores.

A pena, justamente por ser um mero acessório para o resguardo de bens jurídicos mais valiosos, não pode valer-se de qualquer pretexto para impor ao infrator restrição que extrapole os limites definidos implicitamente pela Constituição por conta de sua natureza democrática e ao que consta expressamente previsto, verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

(...).

Isso porque, se a função do Direito Penal é proteger aqueles bens jurídicos que, de tão valiosos, merecem uma reprimenda de natureza criminal, não poderá o Estado, em nome de alguns bens juridicamente protegidos, violar frontalmente valores tão importantes quanto os que se põe a garantir.

Um raciocínio semelhante vale para a relação entre a investigação e o Direito Penal, posto que a primeira é apenas o meio utilizado para a revelação de fatos que atentem contra os bens tutelados pelo segundo. Visto sob esta ótica, carece de lógica o instituto em questão, pois se o Direito Penal pretende proteger certos valores importantes à Sociedade, não seria legítimo a instituição da delação premiada, a qual insere no ordenamento um elemento anti-coesivo que estimula a traição, a desconfiança e o individualismo. Desse modo, tem-se que a delação premiada, mais do que ofender simples bens jurídicos, contribui para o esfacelamento moral da Sociedade, que se põe como condição necessária para a existência de Direito.

No entanto, já se identificou na delação premiada característica favorável que exsurge da superficial análise pragmática/utilitarista, posto que o instituto ressalta o arrependimento do cidadão, como se, milagrosamente, o ato de delação promovesse uma conversão moral no indivíduo. Vejamos.

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(...) Porém, uma análise mais detalhada sobre o tema permite identificar que se trata de instituto embasado concretamente na mais pura ética e moral e, ainda, é de essência puramente pedagógica, pois ensina que não há nada de mal em se arrepender de erros passados, bem como em tentar reparar ofensas feitas à sociedade, colaborando com a justiça na devida persecução penal. (GUIDI, 2006, p. 22).

Posição diametralmente oposta encontra-se no magistério de doutrinadores de renome, como Luiz Flávio Gomes e Damásio de Jesus, que vêem a delação premiada como algo anti-pedagógico que vai de encontro a preceitos morais irrenunciáveis, verbis,

(...) O direito para ser duradouro tem que se assentar em vigas éticas firmes. O Direito é um conjunto normativo eminentemente ético e é por isso que é acatado e respeitado. (...). Em determinadas circunstâncias até se compreende o prevalecimento de um valor sobre o outro, mas o que não dá para entender é a transformação do Direito em instrumento de antivalores. Colocar em lei que o traidor merece prêmio é difundir uma cultura antivalorativa. É um equívoco pedagógico enorme. Ainda que o valor perseguido seja o de combater o crime, ainda assim, constitui um preço muito alto tentar alcançar esse fim com um meio tão questionado. O fim, em última instância, está justificando os meios. (GOMES apudGUIDI, 2006, p. 141).

Por sua vez, com o brilhantismo que lhe é peculiar, assevera Damásio de Jesus que: "A lei não é didática e não apresenta princípio cívico decente: ensina que trair é bom porque reduz a conseqüência do pecado penal". (JESUS apud GUIDI, 2006, p. 139).

Noutro giro, por amor ao debate, cumpre fazer referência à doutrina que entende ser o fim do direito penal não a proteção dos bens jurídicos mais essenciais, conforme afirmamos acima, mas que a finalidade consiste na garantia de vigência da norma, posto que com a ofensa o bem jurídico já foi alvo de lesão, conforme se depreende da doutrina de Günther Jakobs, verbis, "O essencial no Direito Penal não é a proteção de bens jurídicos senão a proteção de normas, dado que os bens se convertem em jurídicos no momento em que são protegidos normativamente". (JAKOBS apud GRECCO, 2006, p. 6).

Data maxima venia, a posição citada acima desconsidera a necessidade de legitimidade do Direito, o que induz a aceitação de qualquer norma válida, como o Direito nazista que dizimou milhões de inocentes. Além do mais, a compreensão acima exposta só é possível se afastada a idéia de que a pena tem um caráter pedagógico geral, pois a aplicação da sanção ao infrator é capaz de desestimular potenciais criminosos a cometerem ilícitos e, assim, tem o condão de garantir a proteção de bens jurídicos que ainda encontram-se incólumes.

6.2 Reflexos na autoridade da lei

Um efeito negativo derivado da incorporação da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro é, a nosso entender, o enfraquecimento da eficácia social da norma jurídica, posto que esta, para que seja espontaneamente acatada, deve estar em conformidade com os valores do povo submetido a tal norma.

Nesse sentido é o registro de Luís Roberto Barroso. Vejamos.

Sem embargo, descartados os comportamentos individuais isolados, há casos de insubmissão numericamente expressiva, quando não generalizada, aos preceitos normativos, inclusive os de hierarquia constitucional. Assim se passa, por exemplo, quando uma norma confronta-se com um sentimento social arraigado, contrariando as tendências prevalecentes na sociedade. (BARROSO, 2003, p.86).

Tanto a lei em específico como todo o conjunto normativo são corrompidos a partir da absorção de institutos que contrariam um "sentimento social arraigado" ao Direito. Isso porque, se é certo que quando a norma que despudoradamente contraria preceitos morais não é aceita, a edição de leis que vão de encontro a valores enraizados pode resultar no descrédito de todo o aparato jurídico. Tal efeito decorreria da constatação de que se há uma lei sem um lastro mínimo de aceitabilidade, é bem provável que as outras que constituem o ordenamento não mereçam crédito algum.

Em outros termos, a desconfiança contra a ordem jurídica estatal decorreria da seguinte indagação: Se a lei incentiva um comportamento tão torpe quanto a delação, que autoridade tem ela para punir outras condutas que considera injusta?

Nesse passo, cabe registrar o posicionamento do Promotor de Justiça Rômulo de Andrade Moreira, que assevera:

(...) Como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso (...) esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida, sob pena de sanção? (MOREIRA, 2006, p.2)

Como se vê, a questão aqui discutida não se limita ao instituto tratado de forma isolada, pois há reflexos negativos que contaminam todo o patrimônio jurídico com a incredulidade dos cidadãos, que são os destinatários da norma.

O Direito Penal, tal como outros ramos do direito, para ser realizável, há de considerar a realidade social posta como um dado ôntico, pois o Direito resulta do diálogo entre fato, valor e norma, não podendo o legislador extrapolar os limites fáticos e sociais impostos pela realidade mundana efetivamente existente. A propósito da criatividade abusiva e autoritária do legislador, lembramos a crítica da poesia de Chico Buarque na letra da música "Apesar de você": "Como vai proibir/ quando o galo insistir/ em cantar".

A propósito, é nesse sentido de adequação de valor e norma que assevera o festejado Doutor maranhense Agostinho Ramalho Marques Neto, verbis,

Uma lei será tanto mais eficaz quanto maior for a sua aceitação por parte do meio social a que se dirige. Aliás, ela já deve ser elaborada com esse objetivo, pois tanto a construção teórica da ciência do Direito como a sua aplicação normativa não podem ser alheias aos valores dominantes no espaço social. (MARQUES, 2001, p. 201).

Além do mais, o Estado, quando tomou para si o monopólio da jurisdição, deixou implícita a noção de que é superior aos governados que, por si só, não podem resolver os seus conflitos. Dessa forma, o Direito há que se manter em um nível moral acima dos jurisdicionados e, portanto, isento de estratagemas vis de persecução penal, sob pena de imiscuir-se com os infratores que pretende punir.

6.3 A questão da sistematicidade do ordenamento jurídico

A noção de que o Direito constitui um todo unitário e conexo é ínsita às próprias palavras que costumeiramente os juristas usam para se referir ao Direito, que é chamado de ordenamento jurídico ou sistema legal, sugerindo que se trata de algo coordenado, lógico e coerente.

No entanto, conforme a doutrina de Norberto Bobbio, a sistematicidade jurídica não significa que o complexo normativo seja formado por elementos que sejam coerentes entre si por conta de seu conteúdo.

O cientista político se vale do magistério do jusfilósofo Hans Kelsen, que diferencia dois tipos de sistemas normativos e conclui que o ordenamento jurídico é baseado num enquadramento meramente formal de normas, sendo alheio ao conteúdo destas. Vejamos.

(...) Ele distingue entre os ordenamentos normativos dois tipos de sistemas, um que chama estático e outro dinâmico. Sistema estático é aquele no qual as normas estão relacionadas umas às outras como as proposições de um sistema dedutivo, ou seja, pelo fato de que derivam umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral. (...). Sistema dinâmico, por outro lado, é aquele no qual as normas que o compõem derivam uma das outras através de sucessivas delegações de poder, isto é, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou. (...). Feita a distinção, Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas do segundo tipo. São sistemas dinâmicos. (BOBBIO, 1999, p.71-72).

O próprio Norberto Bobbio não inclui na definição das indesejáveis antinomias as diferenças deduzidas do cotejo entre as finalidades propostas por cada diploma legal, bem como o valor albergado pelas diversas leis que compõem um sistema normativo.

Data venia, não nos parece que a norma possa ser considerada integrante de um todo se não há qualquer similitude entre os fins colimados por ela e aqueles já prestigiados pelo todo normativo ao qual pretende integrar.

Cabe ressaltar que, no ambiente político em que vige uma Constituição de cunho marcadamente democrático, há a necessidade constante de fundamentação de todos os atos emanados pelo Estado, sobretudo aqueles que impõem limitações aos cidadãos. Até mesmo porque, ainda que a obediência à norma advenha do medo de sofrer uma sanção, a compreensão do sentido da lei cumpre o papel de fazer com o que o jurisdicionado se resigne diante das restrições de uma ordem legal. Assim, quanto menos força o Estado empregar para exercer a soberania, mais legítimos serão os seus institutos jurídicos. A lei, sendo algo plenamente justificável, conterá implícito em seu comando a sua fundamentação.

Entretanto, a delação premiada vai de encontro à idéia acima exposta, posto que não é crível que haja justiça quando a lei concede benesses ao infrator por conta de uma atitude que é vil e cria uma diferença no tratamento de criminosos que cometeram um mesmo crime e ainda ofende a dignidade da pessoa humana por fazer da confiança um valor que pode ser ordinariamente vendido pelo criminoso e pago a preço de ouro pelo Estado.

Destarte, a idéia de que o Estado promove e estimula uma conduta dessa natureza agride a ordem legal por inserir um elemento alheio a todo o sistema, sendo, mais que uma exceção à regra, um atentado à noção de homogeneidade do Direito. Em outros termos, o delator está para os seus comparsas delatados como o instituto da delação premiada está para o Direito, ou seja, é nocivo ao resto do conjunto.

6.3.1 A interpretação sistemática: a afirmação da unicidade do ordenamento jurídico

Além do já exposto, cumpre ressalvar que a unidade axiológica do conjunto de normas postas é reafirmada constantemente pela doutrina e jurisprudência quando se voltam para explicar e aplicar o método de interpretação normativa dito sistemático, que, como o próprio nome sugere, considera as normas como parte de um complexo normativo com o qual mantém relação de coerência.

Aliás, João Batista Herkenhoff cita voto de Cavalcanti Lana, proferido no 1º Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, no qual se afirma que uma das funções da jurisprudência é estabelecer a coerência do sistema jurídico. Vejamos.

Tem a jurisprudência um papel que não está suficientemente esclarecido e estudado: o de preservar a harmonia do sistema legal. Não é ela mera intérprete da lei e nem se unifica, em homenagem aos casos análogos a fim de garantir a isonomia das decisões. Sua função mais importante é de zelar pela coerência do sistema. Argumenta-se que esta coerência é dada pelo controle constitucional das leis, não havendo como invocá-lo entre as normas de igual magnitude hierárquica. Mas o argumento deixa ao juiz uma pobre função – transforma-o em computador, destinada a processar dados que o legislador, em desavisada hora, entendeu de lhe propiciar. (LANA apudHERKENHOFF, 2006, p. 212).

Ora, admite-se que o Direito pode ser melhor compreendido através da premissa de que é composto por regras coordenadas entre si harmonicamente e que estas podem ser aclaradas a partir do cotejo delas com todo o monumento legislativo. Então, dentro dessa perspectiva, como é possível defender a instituição de uma lei que afronte valores que estão espraiados em diversos diplomas legislativos?

A instigação é de extrema valia, pois um dos propósitos do método de interpretação sistemática consiste em solucionar a controvérsia jurídica in casu sem atentar contra o ordenamento jurídico que, mesmo sem fornecer subsídios para a resolução do caso, contém em si princípios que podem ser extraídos da leitura contextualizada do aparato jurídico existente, pois o Direito não é uma mixórdia de leis que agrupadas expressem sentidos desconexos.

Portanto, citar-se-ão neste trabalho vários institutos jurídicos que prestigiam o valor confiança buscando assim explorar as contradições de ordem axiológica emergidas com a delação premiada.

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Sobre o autor
Heider Silva Santos

pós-graduando em Ciências Penais pela Unisul/LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Heider Silva. A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1495, 5 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10244. Acesso em: 25 dez. 2024.

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