7. A CONFIANÇA E O SEU SIGNIFICADO PARA O SER HUMANO
Conforme já destacado anteriormente, a confiança é fundamental para a sociedade, posto que é elemento indispensável à convivência saudável entre as pessoas. Ademais, por conta da natureza gregária do ser humano, é de sua própria ontologia a necessidade de unir-se em grupos. Sobre a matéria, pronuncia Aderson de Menezes:
O homem é um animal político (Aristóteles) e, como tal, não pode viver senão em sociedade. Por isso mesmo, já se exarou, acertadamente, a máxima a um tempo espiritual e material de que homem e sociedade constituem um binômio indefectível. Donde se extrai uma ilação muito verdadeira e oportuna, segundo a qual o homem não vive tão-somente, mas o imperativo é que viva com seus semelhantes (...). (MENEZES, 1984, p. 43).
Além dessa realidade incontroversa, o doutrinador supramencionado destaca ainda que a sociedade política é composta pelos diversos grupamentos existentes. Vejamos:
(...) Mas a vida social do homem, além de intensa, é profundamente variada, apresentando-se como diversos matizes. E ele se agrupa a outras pessoas para novos fins, em empreendimentos profissionais, econômicos, intelectuais, recreativos, filantrópicos, etc. Esse conjunto de organismos sociais é o que forma, entre as espontâneas relações humanas, a sociedade em geral, oscilando ainda a extensão significativa do vocábulo, porque pode o mesmo compreender desde os grupos sociais de uma cidade (sociedade urbana) até a humanidade toda (sociedade humana), compreendendo nesse escala o elemento humano de um Estado (sociedade nacional), que, emoldurada pela ordenação jurídica, recebe a vulgarizada denominação de sociedade política. (MENEZES, 1984, p.44).
Desse modo, por estar o homem vocacionado para a convivência em grupos, é que se requer do Direito a proteção da convivência harmoniosa entre os elementos que compõem um grupamento humano. Por esse motivo, há inúmeros exemplos de institutos jurídicos que prestigiam o valor confiança, conforme se verá a seguir.
7.1 A importância da lealdade no sistema econômico
Se o Direito é, como pensou Karl Marx, uma estrutura ideológica de suporte ao modo de produção, deve estar em perfeito alinhamento com as relações de natureza econômica, pois a troca de riquezas, a exploração do trabalho e, de um modo geral, todos os negócios da vida econômica requerem das partes que transacionam uma lealdade recíproca para a sua realização.
Não se pretende defender aqui a tese de que o homem é, por natureza, leal, principalmente no que toca à sua vida negocial. Entretanto, almeja-se demonstrar que o Estado, tendo admitido a postura liberal em que seu papel é dar plena condição de desenvolvimento do sistema produtivo sem imiscuir-se nele, tem como um de seus objetivos proteger a livre negociação de bens entre particulares, impondo sanções àquelas condutas pérfidas e, portanto, prestando homenagem à sinceridade e boa-fé.
Esse escopo está presente também no próprio Código Penal, o qual dedica um capítulo específico ao estelionato e outras fraudes. A propósito, não por coincidência, a definição de fraude constante da versão eletrônica do Dicionário Aurélio está assim redigida: "abuso de confiança, ação praticada de má fé", definição que aproxima a palavra dos léxicos: burla, trapaça e traição.
Esta última, pelo que consta do verbete no sobredito Dicionário, sugere ter se originado do latim (traditione) que pode ser traduzido pelo termo entrega. Ora, é bem de ver que, etimologicamente, as palavras traição e delação são sinônimas. Esta última, a nosso entender, é designação mais suave que cumpre o papel de mitigar a carga semântica da primeira.
7.2 O voto: instrumento de concessão de poderes a representantes
Na dicção do legislador constituinte de 1988, "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...)"(grifo nosso) (art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal)
Ora, a alusão a representantes eleitos contém em si a noção de outorga de poderes dos cidadãos àqueles que pleiteiam o acesso a cargos eletivos dos Poderes Legislativo e Executivo, posto que os eleitos recebem um mandato, ou seja, a atribuição para agir em nome e no interesse do eleitorado.
Nesse ato de constituição de representantes, pelo menos em teoria, o eleitor tem seu ânimo sufragante movido pelas avaliações que faz do candidato, que incluem as suas propostas, o seu caráter, seu histórico, etc.
Assim, não é plausível que o direito de sufrágio seja exercido através de votos a candidatos nos quais não se pode depositar confiança, vez que, conforme acentua Bovero, citado pelo magistrado maranhense Lourival Serejo, "(...)a representação é uma espécie de autorização que o eleitor confere ao candidato para agir em seu nome.". (BOVERO apud SEREJO, 2006, p. 3).
Como se vê, não é desprovida de sentido a expressão "voto de confiança", tão usada em tempo de eleições.
7.3 Institutos de garantias pessoais no Direito das Obrigações
No rol das garantias do Direito obrigacional, destaca-se a existência de algumas de natureza pessoal, ou seja, aquelas em que o lastro ao crédito vincendo é dado por uma pessoa que se compromete a pagá-lo em caso de inadimplemento, diferindo das garantias reais, em que um bem assegura a dívida.
São garantias pessoais, ou fidejussórias, a fiança e o aval.
A primeira é um contrato tipicamente unilateral - gera obrigações somente para o fiador - e acessório, pelo qual uma terceira pessoa assegura o adimplemento de um contrato caso o devedor principal não tenha condições de cumpri-lo. É o teor do artigo 818 do Código Civil Brasileiro: "Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra".
No dizer de Sílvio de Salvo Venosa:
A fiança, garantia fidejussória, é típica garantia pessoal, baseada na confiança, fidúcia depositada na pessoa do garante, o fiador. Evidente que essa fidúcia terá em mira primordialmente o patrimônio do fiador, que em última análise responderá pela obrigação. (VENOSA, 2003, p. 420).
Noutra banda, o aval é declaração unilateral – não é contrato - com o fito de assegurar o pagamento de título de crédito.
Cabe acrescentar que a fiança é contrato gratuito e que a jurisprudência tem rejeitado licitude à fiança remunerada, admitindo-se, no entanto, validade para o aval recompensado.
Feitas essas considerações, cabe indagar se no atual contexto econômico em que vivemos, no qual preponderam altas taxas de juros nos empréstimos de risco elevado, é razoável alguém lastrear obrigação alheia comprometendo o seu patrimônio sem receber nada em troca?
A nosso sentir, a resposta à indagação passa por uma análise abstraída das questões econômicas, as quais de tão introjetadas no pensar e agir da sociedade exige um esforço maior do intérprete com vistas a considerar uma coisa que está fora do comércio, apartada da dimensão econômica. Para tanto, basta atentar para a questão da não-onerosidade da fiança a fim de compreender que o seu fundamento se situa no âmbito de valores alheios ao capital, sejam: a estima, consideração, amizade e principalmente a fé mútua entre os contratantes.
7.4 A relevância do valor confiança para o Direito Penal
Afora os exemplos já tratados de contradições no que toca ao valor aqui repisado, cumpre acrescentar outras incoerências circunscritas à realidade do Direito Penal que, por esse motivo, estão em posição mais favorável com relação às críticas que porventura possam surgir por conta do cotejo que aqui se estabeleceu utilizando como parâmetro institutos de natureza jurídica diversa da penal, pois é cediço que o Direito Penal guarda incontáveis peculiaridades.
Para tal empreitada, valem preliminares considerações acerca da tipicidade conglobante, posto que seus conceitos calham perfeitamente no que pretendemos defender, já que essa doutrina põe em evidência que uma ação estimulada ou fomentada pelo Direito não pode ser por ele punida.
Rogério Grecco, ao escrever sobre tal teoria, utiliza o exemplo da execução de uma pena de morte por um carrasco (em um direito hipotético que admite tal sanção) para esclarecer que, malgrado haja a concorrência de conduta típica, nexo de causalidade e resultado lesivo, na ação do carrasco, não há ocorrência de crime, pois a execução – nesse caso – é justamente o objetivo da lei, ou seja, o algoz, embora cometendo um fato típico, está imune à pena, vez que sua conduta não é antinormativa.
Segundo entendemos, assiste razão a tal doutrina, sendo que a nosso sentir há conflito entre o estimulado e o proibido ainda quando uma prescrição legal se oponha a outra no que toca aos valores perseguidos, pois uma lei que institui uma sanção ao mesmo tempo adjetiva a conduta sancionada de indesejável e inconveniente ao bem viver em sociedade.
Aqui cabe breve digressão para esclarecer que a confiança é incentivada em várias passagens do ordenamento jurídico e, paradoxalmente, é desestimulada no instituto do favor premial.
Como exemplo, citam-se as agravantes previstas no art. 61, inciso II, alínea c, do Código Penal Brasileiro, o qual comina agravamento de pena quando o agente comete crime "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou de outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido".
Tais ações têm como marcas o caráter pérfido, anti-social e nocivo ao bem-viver em comum, vez que pressupõem uma má intenção camuflada que aumenta a debilidade do ofendido. De outro lado, a delação é ainda mais traiçoeira, posto que o propósito danoso é provocado pelo insucesso da empreitada criminosa e também pelo ânimo de obter vantagens penais, ou seja, só surge ao final, o que é muito pior do que subsistir encasulado.
Além disso, cabe fazer alusão à circunstância qualificadora do inciso II, § 4º do crime tipificado no art. 155 (furto) do Código Penal Brasileiro, pois confirma a nossa tese que afirma ter o valor confiança destaque no Direito, pois tal qualificadora prevê punição mais rigorosa para os crimes cometidos: "com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza". (grifo nosso)
Assim, à luz do entendimento aqui esboçado acerca da tipicidade conglobante, não nos parece correto premiar uma ação que é desestimulada pelo conjunto do Direito Penal, conforme já tivemos oportunidade de demonstrar.
Desta forma, acatar a delação premiada como algo legítimo seria desconsiderar os valores perseguidos pela agravante genérica do art. 61, inciso II, alínea c, bem como pela qualificadora do art. 155, § 4º, inciso II, ambos do Código Penal Brasileiro.
Ademais, a idéia de que o ordenamento jurídico comporta valores tão díspares tem o condão de solapar a crença de que existem linhas mestras, sobretudo de justiça, a guiar as proposições normativas, dando-lhes unidade.
8. CRÍTICA A PARTIR DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Em sua acepção jurídica, a palavra princípio significa postulado de conteúdo mais abstrato do que as regras propriamente ditas. Assim, os princípios jurídicos têm aplicação genérica, servindo de liames ao legislador e também orientando o intérprete na tarefa de compreender o sentido e o alcance da norma.
Desta forma, os princípios jurídicos são como proposições que guiam toda a produção jurídica posterior, tendo inclusive o papel de dar unidade ao ordenamento jurídico, conforme se disse alhures.
Existem três princípios que são violados com a institucionalização da delação premiada, quais sejam: o da proporcionalidade, o da indivisibilidade e o da indisponibilidade da ação penal.
8.1 Um enfoque à luz da proporcionalidade
De conceituação que oscila na doutrina entre princípio geral de Direito, regra, postulado ou "(...) princípio imanente à cláusula do Estado Democrático de Direito" (FELDENS, 2005, p. 159), a proporcionalidade vem ganhando espaço cada vez mais expressivo no Direito Comparado, especialmente no Alemão e no Suíço, em que foi alçada à condição de norma positivada.
Embora no Brasil já esteja insculpido como princípio da lei que regula o processo administrativo no âmbito federal (Lei nº 9.784/99), o Direito Pátrio ainda se ressente de uma positivação em nível constitucional do princípio da proporcionalidade.
Ainda assim, admitem muitos doutrinadores que o referido princípio está implícito na Constituição, haja vista as muitas passagens que dedica à proporcionalidade, o que a nosso sentir é um exercício de tautologia que tem o condão de afirmar a existência implícita do multicitado princípio.
Tanto é assim que a Constituição da República Federativa do Brasil presta homenagem à proporcionalidade já no inciso V do art. 5º, em que assegura o direito de resposta proporcional ao agravo, sendo que também há idéia de equilíbrio no parágrafo 3º do art. 36, que trata sobre intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal. Além destes exemplos, Paulo Bonavides cita ainda:
(...) inciso V do art. 40 sobre competência exclusiva do Congresso Nacional; inciso VIII do art. 71 da Seção que dispõe sobre fiscalização contábil, financeira e orçamentária; parágrafo único do art. 84 relativo à competência privativa do Presidente da República; inciso II e IX do art. 129 sobre as funções constitucionais do Ministério Público; caput do art. 170 sobre princípios gerais da atividade econômica; caput e §§ 3º, 4º e 5º do art. 173 sobre exploração da atividade econômica pelo Estado; § 1º do art. 174 e inciso IV do art. 175 sobre a prestação de serviços públicos. (BONAVIDES, 2003, p. 435).
Feitas estas notas preliminares, cumpre acrescentar que o exame de proporcionalidade se materializa na avaliação da adequação dos meios propostos aos fins que uma determinada norma pretende alcançar. Tal idéia foi sintetizada por Jellinek com maestria, in verbis, "não se abatem pardais disparando canhões" (JELLINEK apud BONAVIDES, 2003, p. 402). Não é razoável que o combate a um mal seja proporcionado com outro ainda maior.
Desenvolvendo no âmbito penal o conceito do princípio aqui repisado, Luciano Feldens assevera que o mesmo é verificável através de um raciocínio trifásico em que se examina a ocorrência de três pressupostos, quais sejam: a adequação (idoneidade), a necessidade (exigibilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito.
O exame de adequação avalia se a medida estatal tem condições de realizar o seu fim último: o interesse público. Desta forma, tal análise deve buscar identificar se o interesse tutelado é constitucionalmente legítimo, a fim de que o Direito Penal não ampare o que seja contrário ao interesse público, bem como aquilo que careça de relevância para ser objeto de proteção penal.
Também chamado de subsidiariedade e intervenção mínima, um outro requisito identificado pelo festejado teórico é o da necessidade, o qual propõe que o meio a ser utilizado pela lei seja o mais suave dentre os possíveis, ou seja, indica que a intervenção penal restritiva deverá ser a menos gravosa aos cidadãos. Em outros termos, informa o caráter subsidiário do Direito Penal, o que significa que só há de ser utilizado se forem ineficazes as sanções de natureza civil ou administrativa.
O terceiro elemento que compõe o princípio aqui tratado é a proporcionalidade em sentido estrito, o qual impõe um exercício de ponderação para avaliar se o prejuízo causado pela sanção não é imoderado se comparado com o dano provocado pelo autor.
Face aos pressupostos mencionados acima, cabe submeter a delação premiada à crítica que segue:
Quanto à adequação, não há como desconsiderar que os valores em jogo com a aplicação da delação premiada encontram-se em conflito, no qual é muito difícil a identificação de qual interesse deve prevalecer: a segurança pública ou a dignidade da pessoa humana.
Neste ponto, cabe breve digressão para explicar-se o porquê da alusão à dignidade. É que na delação premiada o Estado passa a negociar com o criminoso a fim de obter uma investigação criminal mais eficaz, o que transforma o ser humano em um objeto de troca, igualando-o a uma mercadoria qualquer.
Desse modo, parece-nos que a dignidade da pessoa humana cristaliza melhor o interesse público.
Já quanto à necessidade, observa-se que em boa parcela dos crimes é plausível que se utilize o favor premial na estratégia de investigação, sobretudo no que toca à criminalidade organizada, transnacional e terrorista, em que a estrutura e a organização criminosa são evidentes.
Entretanto, a lei nº 9.807/99 inaugurou no Direito Penal Pátrio a delação premiada para crimes comuns, o que ampliou perigosamente o seu raio de ação para muito além dos fins para a qual foi concebida, qual seja o combate à macro-criminalidade organizada.
Tal inovação merece impiedosa crítica, pois é uma vulgarização inexplicável, ainda mais se levarmos em conta que o discurso pró-delação quase sempre se fundamenta na urgente necessidade de solução ao problema da macro-criminalidade.
Deste modo, ainda em vista da proporcionalidade, observa-se que o uso da delação premiada para investigação da delinqüência comum avilta o princípio aqui retratado, pois alguns crimes têm diminuta carga de lesividade, sendo mais prejudicial à sociedade o deferimento do beneplácito em questão do que o dano causado pelo autor, haja vista a cólera instigada pelo emprego do instituto.
Esta tem o considerável potencial de se materializar em linchamento dentro do ambiente carcerário ou mesmo em homicídio por vingança, o que é muito mais grave do que um crime de roubo, por exemplo.
8.2 Ofensa à indivisibilidade da ação penal
Segundo o Professor e Promotor de Justiça Paulo Rangel,
O princípio da indivisibilidade da ação penal pública é uma conseqüência lógica da obrigatoriedade da ação, pois se ela deve ser proposta sempre que houver a ocorrência de fato típico, ilícito e culpável, óbvio nos parece que deve ser proposta em face de todos os genuínos autores do fato-infração, formando, assim, um litisconsórcio passivo necessário simples. Se Tício e Caio são autores de um roubo, a ação penal deve ser proposta em face dos dois. (RANGEL, 2003, p. 214).
Desse modo, a indivisibilidade nos informa que a ação penal deve incluir todos os participantes de uma empreitada criminosa como acusados, ou seja, se duas pessoas agem em concurso criminoso para cometer ilícitos, não é dado ao Promotor de Justiça optar por denunciar apenas um dos comparsas.
Assim, todos os autores de uma infração cometida em conluio devem responder no mesmo processo, formando um litisconsórcio passivo necessário. Destarte, as penas impostas corresponderão eqüitativamente à conduta de cada autor, sendo que o próprio Código Penal prevê a isonomia entre os agentes quando enuncia: "quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade" (art. 29, caput, do CP).
Todavia, os benefícios que resultam do emprego da delação premiada variam conforme as várias leis que regulam a matéria, sendo que é possível ocorrer redução da pena e até mesmo o perdão judicial.
Tais prêmios, segundo entendemos, vulneram sobremaneira a indivisibilidade, haja vista que esta impõe ao órgão de acusação o dever de imparcialidade na acusação, pois não lhe é dado exercer juízo de conveniência para excluir do rol de acusados apenas um agente do crime. Esse dever tem o claro objetivo de promover a isonomia entre aqueles que cometeram um delito, evitando que apenas parte dos agentes de um crime sofra punição.
E é justamente essa idéia de igualdade entre agentes de um mesmo fato criminoso que é vulnerada com a delação premiada, pois mesmo havendo regular processamento de todos os comparsas, há um evidente desajuste entre a penas impostas aos litisconsortes.
Assim, a delação também promove uma inversão da lógica processual penal, pois mesmo que o agente tenha culpabilidade considerável poderá obter para si uma pena mitigada com relação aos outros acusados que se abstiveram de entregar o bando à polícia.
8.3 A indisponibilidade da ação penal pública e o conflito com a discricionariedade no exercício do jus persequendi
O princípio da indisponibilidade da ação penal informa que o órgão ministerial não poderá renunciar ao dever de propor a medida judicial cabível sempre que estiver diante de crimes de ação penal pública. Isso porque o Ministério Público representa o Estado na tarefa de acusar o réu em juízo. Assim, sendo o direito de acusar exclusivo do Estado, não pode o membro do Ministério Público dispor sobre o que não lhe pertence.
Tanto é verdade que o Código de Processo Penal prescreve no seu art. 42 que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal, havendo ainda vedação no art. 576 à desistência de recurso já interposto.
Feitos esses apontamentos, resta confrontar a lógica da permuta levada a efeito com concessão do favor premial e o apanágio de inegociável da ação penal.
A nosso entender, se o Ministério Público propõe que a pena seja mitigada ou perdoada em razão de ter o réu delatado seus comparsas, estará negociando em última análise o próprio direito de punir, pois a pena irá variar conforme o "negócio" firmado com o órgão de acusação, o que é vedado tendo em vista a natureza da ação penal pública, que não permite disposição e muito menos negociação do jus persequendi estatal.
Por fim, cabe esclarecer que a simples acusação formal de todos os réus de um processo não significa a obediência ao princípio aqui referido, pois a subtração de parcela da pena a um acusado delator corresponde à renúncia parcial do direito de punir estatal, o que é vedado pelo Direito.