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A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio

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05/08/2007 às 00:00
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9. CONCLUSÃO

Inicialmente, percebe-se que vivemos em tempo de mudanças no qual é crescente a influência de um poder supra-estatal, que impõe aos Estados adequação, sobretudo no sentido de minimizar os entraves à livre circulação de mercadorias.

Segundo o Professor Juan Ramón Capella, esse poder supra-estatal, ou soberano difuso, "(...) não só é capaz de impor suas próprias políticas aos estados penetrando a vontade das instituições destes como também impede levar à prática as políticas decididas pelas instituições estatais quando são incoerentes com as suas próprias". (CAPELLA, 2002, p. 258).

Tal poder constitui instância privada de criação de direito, vez que dita aos Estados as chamadas leis do mercado, as quais absorvidas marcam o desmantelamento do conceito de soberania.

Nesse contexto, a delação premiada é fruto da mitigação da soberania estatal, pois emerge da influência externa advinda da necessidade de minimização das barreiras econômicas.

Além disso, a globalização e o neoliberalismo implicam no alargamento da observação exercida por entes privados sobre a vida das pessoas, que têm seus padrões de consumo estudados pelas empresas, que são filmados ao consumir e vivem a sensação de rastreamento vinte e quatro horas por dia.

Tal modo de viver, a nosso sentir, corresponde a um modelo panóptico [02] hodierno, pois, tanto hoje quanto no século XVII, o Panoptismo tinha por objetivo criar uma sensação ao detento de permanente vigilância, já que o essencial era que ele se sentisse vigiado, conforme leciona Michel Focault. Entretanto, a peculiaridade desse Panoptismo moderno é que neste a observação é mais discreta, sendo realizada por entes privados se dirigindo não aos detentos, mas aos cidadãos que gozam de liberdade.

Para corroborar a nossa tese que liga o avanço do neoliberalismo à delação premiada, valem as palavras do brilhante Nilo Batista: "(...) o novo sistema penal do Estado neoliberal, replicante do vigilantismo eletrônico, é extremamente invasivo e cultua a delação, cujo estatuto ético virou-se pelo avesso". (BATISTA, 2004, p. 84).

Noutro giro, identifica-se como mais um traço marcante dos tempos atuais a marcha do Direito Penal para a privatização, pois existe uma inclinação deste ramo do Direito no sentido da flexibilização do princípio da indisponibilidade. Exemplos disso são a transação penal e a delação premiada, institutos que trazem para o Direito Penal a lógica negocial - imprópria para o tratamento de bens jurídicos indisponíveis. A propósito, tratando da transação penal, Aury Lopes Júnior assevera: "A lógica negocial transforma o processo penal num mercado persa, no seu sentido mais depreciativo". (LOPES, 2005, p. 135).

Além do mais, insta observar que a aceitação da delação como prova é capaz de gerar testemunhos falsos, acusações inverídicas e negócios escusos, já que o interesse do delator é lucrar, como se pôde observar nos recentes episódios envolvendo o empresário Luís Vedoin que, além de pretender o benefício do favor premial, envolveu-se em caso de venda de dossiê contra candidato à presidência da República.

Um outro efeito indesejável é a posição de hipossuficiência em que se coloca o Estado ao propor a delação premiada, vez que assume a insuficiência da máquina investigativa, fazendo com que o acusado espere primeiro ouvir o que poderá lucrar com o fornecimento do seu testemunho, para só em seguida revelar as informações.

Cumpre destacar ainda o quanto é paradoxal a coexistência de vários institutos jurídicos em homenagem à confiança e à delação premiada, vez que esta última estimula a deslealdade, pois se o Direito é sistemático há de ser coordenado logicamente, obedecendo a valores que conferem unidade ao todo.

Ressalta-se, ainda, que o instituto em testilha ofende os princípios da indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal, pois ao mesmo tempo que a concessão da delação premiada representa uma renúncia estatal à parte da pena, impõe um tratamento diferenciado em relação aos acusados de um mesmo evento criminoso. Quanto ao princípio da proporcionalidade, cabe considerar que o incentivo à perfídia pode significar um mal maior do que o próprio crime investigado, sobretudo com relação aos crimes de menor lesividade.

Como visto, não nos parece sensato admitir uma prática processual penal tendo em vista somente a sua utilidade, pois malgrado a eficácia do instituto em questão, a sua adoção implica em evidente prejuízo à noção de homogeneidade do Direito.

À guisa de conclusão, cabe observar o instituto com grannus sallis, ou seja, considerando que há situações em que a balança de valores em jogo poderá pesar para o lado da delação premiada. Até mesmo porque as grandes organizações criminosas possuem estruturas com alto grau de estratificação em que é improvável o desenvolvimento de uma relação de confiança entre seus membros, principalmente entre aqueles que exercem a autoridade e os que executam as ordens dos chefes sem ter qualquer contato, não se podendo falar que um ato de delação ofende a confiança nesse caso.

Por fim, cumpre considerar que toda absolutização de fundamentos deve ser evitada, pois conforme assevera Norberto Bobbio: "O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão, em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras". (BOBBIO,1992, p. 22). E conservadorismo é apanágio que o Direito Penal já tem em excesso.


NOTAS

01 Corrente teórica que aplica princípios da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin para o estudo da vida em sociedade, como o princípio da seleção natural e o da sobrevivência do mais apto.

02 Modelo disciplinar de prisão, pensada pelo inglês Jeremy Bentham, calcada na observação total


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Sobre o autor
Heider Silva Santos

pós-graduando em Ciências Penais pela Unisul/LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Heider Silva. A delação premiada e sua (in)compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1495, 5 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10244. Acesso em: 26 abr. 2024.

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