1. INTRODUÇÃO
Neste texto será estudada a Lei 14.532/23, que altera o tratamento legal da chamada “Injúria Racial” e também o crime de Apologia ao Racismo, previsto na Lei 7.716/89, afora outros subtemas.
Um breve histórico do tratamento legal e jurisprudencial dado à questão da Injúria Racial será exposto, seguindo-se uma determinação terminológica para adentrar com mais segurança na discussão das alterações promovidas e do quadro jurídico – penal que agora se desenha.
Ao final, os principais pontos discutidos serão retomados em apresentação de uma síntese conclusiva.
2. BREVE HISTÓRICO DA INJÚRIA RACIAL NA LEI E NA JURISPRUDÊNCIA
O crime de Injúria é previsto em nosso Código Penal dentre os “Crimes Contra a Honra” desde 1940. Inicialmente não havia uma distinção para ofensas proferidas em razão de preconceito de qualquer natureza.
Já o tema do racismo ganha sua primeira previsão legal de repressão com a conhecida “Lei Afonso Arinos” (Lei 7.437/85). Entretanto, as condutas ali previstas eram consideradas meras “Contravenções Penais” (vide artigo 1º. do diploma).
Vale lembrar que o Brasil, no cenário internacional, aderiu à “Convenção Internacional Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” assinada em 1966 e ratificada por intermédio do Decreto 65.810/69, de forma a internalizar suas normas em nosso arcabouço jurídico.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e o estabelecimento como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil da busca pela “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º. IV, CF), decorre expressa condenação ao racismo e, mais que isso, a determinação de que seja “crime” inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão (artigo 5º., XLII, CF).
Embora até hoje a Lei Afonso Arinos não tenha sido revogada expressamente, é evidente que a partir de 1988 não estava devidamente recepcionada pela Constituição Federal. Pode-se dizer que no que tange ao combate aos preconceitos em geral e ao racismo em particular havia coerência entre aquela lei ordinária e a Constituição. Mas, não se sustentava mais o tratamento do racismo como mera “Contravenção Penal” com pena de “Prisão simples”. Afinal, a Lei Magna determinava que o racismo deveria ser erigido a “crime” com pena de “reclusão”. Havia um óbvio descompasso entre o “Mandado Constitucional de Criminalização” e a Lei Afonso Arinos.
É nesse contexto que se elabora e aprova a Lei do Racismo, também conhecida como “Lei Caó” (Lei 7.716/89). 1
No ano de 1997 ocorre uma primeira situação em que a injúria se mescla com a questão do racismo. A Lei 9.459/97 aumenta o rol protetivo da Lei 7.716/89 que, inicialmente, somente se referia aos “preconceitos de raça e cor”, para adicionar motivações de “etnia, religião e procedência nacional”. Além disso, deu nova redação mais abrangente ao artigo 20 da Lei do Racismo, que trata do crime de “Apologia ao Racismo”. Também alterou o Código Penal para incluir no crime de injúria uma forma qualificada referente a ofensas envolvendo preconceito ou raça, a conhecida “Injúria – Preconceito ou Injúria Racial”, prevista no artigo 140, § 3º., CP.
No seguimento, vem o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) e inclui no § 3º., do artigo 140, CP, além das ofensas ligadas aos preconceitos de raça, cor, etnia, religião e origem, também as questões relativas a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
O crime de Injúria Racial inicialmente, tal qual todos os demais crimes contra a honra era, em regra, de ação penal privada (inteligência do artigo 145, CP). No entanto, com o advento da Lei 12.033/09, a ação penal passou a ser pública condicionada à representação do ofendido, dando-se nova redação ao artigo 145, Parágrafo Único, CP.
O consenso inicial sobre a questão da “Injúria Racial” era o de que não se tratava de um crime de racismo, mas de um crime contra a honra qualificado, já que não previsto na Lei 7.716/89 e sim no Código Penal, sendo fato que a legislação responsável pela criação de tal figura (Lei 9.459/97) poderia perfeitamente a ter incluído na Lei do Racismo e optou por sua alocação como uma espécie de “Injúria Qualificada”.
Contudo o STJ proferiu decisão polêmica a respeito da chamada “Injúria Racial”, promovendo, embora de maneira isolada na época, sua equiparação ao “Crime de Racismo”.
A E. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, contra a doutrina e a jurisprudência absolutamente dominantes na ocasião, que o crime de Injúria Racial ou Injúria Preconceito, previsto no artigo 140, § 3º., CP seria uma modalidade de “crime de racismo”, tal qual os crimes previstos na Lei 7.716/89. 2
É preciso dizer que naquela ocasião e diante do quadro legal existente, pretender equiparar, em conduta de ativismo judicial, a injúria racial a crime de racismo, não elencado na Lei 7716/89 foi uma flagrante violação ao Princípio da Legalidade e uma manifestação de analogia prejudicial ao réu, inviável no Estado Democrático e de acordo com os mais comezinhos princípios do Direito Penal hodierno. Além disso, criava uma espécie de quimera autofágica em que um crime considerado imprescritível poderia ter sua extinção de punibilidade decretada devido ao fenômeno jurídico da decadência, considerando que a “Injúria Racial” era crime de ação penal pública condicionada.
Não obstante tudo isso, fato é que a questão chegou ao STF. Houve um HC n. 142.583/DF e um ARE 983.531/DF, ambos de relatoria do Ministro Roberto Barroso, além de outro HC n. 130.104/DF, este de relatoria da Ministra Carmen Lúcia. Em todos os casos o STF não entrou no mérito da questão. Apenas foi afirmado tratar-se de problema atinente à violação indireta à constituição por via de norma ordinária, sendo então impossível alterar a decisão do STJ, que seria a corte competente para a palavra final do caso. Percebe-se que, mesmo sem entrar no mérito, acaba o STF corroborando a decisão, a nosso ver equivocada, do STJ. Considera-se lamentável que o chamado “Pretório Excelso” tenha perdido por três ocasiões, a chance de se manifestar conclusivamente sobre tal tema, consignando sua posição sobre ser ou não a injúria racial um crime de racismo. De qualquer forma, embora se enxergue uma “evasão” do tema nas decisões, é preciso ressaltar que o Ministro Barroso acaba, em uma passagem, dando seu aval ao entendimento do STJ. Senão vejamos:
Não cabe, na via do recurso especial, a análise de suposta violação de artigos da Constituição Federal. De acordo com o magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão (ARE 983.531/DF).
Assim sendo é de se concordar com as manifestações de Ribeiro e Goulart ao afirmarem que
Consoante disciplina o Código Penal, a pretensão punitiva da injúria racial prescreve em 08 (oito) anos (art. 109, IV, Código Penal). Todavia a lei penal sofreu violenta agressão com a decisão do Superior Tribunal de Justiça do Agravo em Recurso Especial 686.965 (DF 2015/0082290-3), decidindo ser o crime de injúria racial imprescritível, ratificada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a admissibilidade do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 983.531, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, da Primeira Turma.
Considerando que o Supremo Tribunal Federal, diante da natureza e rigidez do recurso interposto, limitou-se a um provimento jurisdicional eminentemente processual, a convalidação da decisão do Superior Tribunal de Justiça, que considerou imprescritível o crime de injúria racial, não ocorreu em razão da análise meritória pela Corte Suprema, mas tão somente pela inadmissibilidade do recurso, mantendo, desta forma, inalterada a decisão do STJ. 3
Os autores em comento discordam veementemente e apresentam sérios argumentos contrários à decisão proferida pelo STJ. Para Ribeiro e Goulart “a injúria racial é prescritível” e a decisão do STJ “ocorreu de forma equivocada”, inobservando “os regramentos mínimos que norteiam a instrumentalização do Direito Penal”. Também destacam que a questão da imprescritibilidade e da natureza do crime de injúria racial não chegou a ser enfrentada de forma substancial pelo STF, mediante uma injustificada esquiva em relação à necessária análise de questão de “ordem pública e constitucional” que diz respeito à prescrição, ocasionando “espanto e desconforto jurídico”. 4 Em suma, o STF, naquelas ocasiões, perdeu grande oportunidade de dar ao caso a necessária segurança jurídica, em nossa opinião, firmando o caráter de crime contra a honra e não crime de racismo com relação à injúria racial, isso de acordo com o quadro legal então vigente.
Porém, é de ressaltar que, posteriormente, no HC 154.248/DF, o Ministro Edson Fachin denegou ordem de Habeas Corpus, reconhecendo explicitamente a imprescritibilidade do crime de injúria racial, bem como sua condição de crime de racismo. 5 Além disso, em data de 28.10.2021, em negativa de HC de relatoria do mesmo Ministro Edson Fachin, a tese da imprescritibilidade e caráter de racismo da injúria – preconceito foi firmada, desta feita com “repercussão geral”, o que, ao menos jurisprudencialmente, acaba com qualquer discussão. 6 Dessa forma, embora se discordasse fortemente desse entendimento jurisprudencial, especialmente tendo em vista a infração à Separação de Poderes e ao Princípio da Legalidade, com a criação de norma penal via jurisprudência, é preciso reconhecer que se estruturou entendimento tanto no STJ como no STF no sentido de que a injúria qualificada pelo preconceito constitui um crime de racismo.
Finalmente, o Congresso Nacional editou a Lei 14.532/23 (oriunda do PL 1749/15, renumerado como PL 4566/21), alterando a Lei do Racismo com a inclusão do artigo 2º. – A que transplanta a “Injúria Racial” do artigo 140, § 3º., CP para a Lei 7.716/89. Essa alteração na legislação resolve a questão da violação do Princípio da Legalidade. Agora, como deve ser, é a lei que estabelece que a injúria com elementos raciais em sentido amplo constitui um dos crimes de racismo. A situação anterior era absurda, para dizer o mínimo, já que tínhamos uma normatização de caráter penal de grande monta produzida via jurisprudência. Infelizmente esse período tenebroso sob o ponto de vista técnico e de garantias penais irá ainda hoje exercer influência na interpretação de aplicação dos novos dispositivos, como veremos ao longo deste trabalho.
3. UM ESCLARECIMENTO TERMINOLÓGICO
Concedendo os créditos a quem os merece como não pode deixar de ser até mesmo por questão de justiça, honestidade intelectual e metodologia científica, abordar-se-á neste tópico uma distinção conceitual, ou melhor dizendo, terminológica apresentada pelos autores Francisco Sannini e Bruno Gilaberte. Trata-se da individualização de termos que usualmente são empregados de forma indiferenciada no trato da questão do racismo, mas que, na verdade, têm conteúdos e natureza diversificados entre si. São eles “preconceito”, “discriminação” e “segregação”.
Nada melhor do que começar pela palavra original dos autores:
Um parêntese conceitual: embora muitas vezes usemos os termos preconceito, discriminação e segregação de forma livre, sem preocupação com seu correto conteúdo, eles são diferentes entre si. Por preconceito (do qual o racismo é uma espécie), entenda-se a opinião negativa e desapegada da realidade sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas; a discriminação, ao seu turno, é a ação. Uma discriminação pode ser positiva (no caso de ações afirmativas, por exemplo), mas, quando negativa, será determinada por um preconceito. A Lei 7.716, em dispositivo incluído pela Lei 14.532, estabeleceu parâmetros para o reconhecimento das formas de discriminação por ela incriminada. Segregação, por fim, é uma forma de exclusão, de criação de barreiras físicas ou sociais que impedem o livre exercício de direitos. Assim, não é desarrazoado falar-se em “racismo discriminatório” ou em “racismo segregatório”, a fim de distinguir as hipóteses. 7
Em suma, o preconceito tem morada no mundo das ideias e dos sentimentos, é um estado de espírito (“de porco” como se diz popularmente). A discriminação consiste em atos e omissões (condutas efetivamente) que, em seu aspecto negativo, irão prejudicar determinadas pessoas ou grupos. Essas condutas de discriminação consistem basicamente em formas ou regras de tratamento opressivas e excludentes. Finalmente, a segregação consiste na separação, na imposição de obstáculos físicos ou sociais, impedindo a integração da pessoa, sua inclusão na vida comum em sociedade. São exemplos históricos de segregação radical os guetos nazistas, o apartheid na África do Sul, os “Dalits” ou “Intocáveis” das castas indianas etc.
Pode-se afirmar que embora os termos acima mencionados tenham significados e conteúdos diversos, geralmente atuam em uma simbiose maligna. O “preconceito” é a raiz de uma árvore tortuosa da qual podem brotar os frutos venenosos da “discriminação negativa” e da “segregação”. Essa ordem simbiótica obedece o que se poderia chamar de uma “lei” no âmbito sociológico, histórico e político, qual seja, nada do que se apresenta como conduta, evento ou acontecimento se produz sem antes ter surgido no mundo das ideias e dos sentimentos humanos.
Partindo dessas distinções terminológicas é possível dizer que na realidade as condutas previstas na Lei do Racismo configuram, conforme sublinham Sannini e Gilaberte, “Racismo Discriminatório” e “Racismo Segregatório”. O racismo em sua forma de “preconceito” normalmente será o alimento ou combustível para as condutas incriminadas, de modo a se situar no “iter criminis” como “cogitação” (“Cogitatio”). O Direito Penal pune condutas e não pensamentos ou sentimentos internos. O “preconceito”, portanto, enquanto mantido em foro íntimo, sem consequências no mundo externo, pode, no máximo, ser atingido pela repulsa moral.
4. O NOVO TRATAMENTO LEGAL DA INJÚRIA RACIAL
A Lei 14.532/23 altera não somente a topografia da “Injúria racial” como também o conteúdo do tipo penal.
Agora aquilo que era somente previsto no artigo 140, § 3º., CP passa a ser dividido entre essa anterior normatização e o novel artigo 2º. – A da Lei 7.716/89.
A redação dos dispositivos fica assim:
Art. 2º. – A. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa (Lei 7.716/89).
Art. 140, § 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa (Código Penal Brasileiro).
Note-se que a transposição da “Injúria Racial” para a Lei do Racismo não foi completa. Quando a injúria se referir a “raça, cor, etnia ou procedência nacional” será aplicado o artigo 2º. – A da Lei 7.716/89. No entanto, se a injúria consistir em ofensas ligadas à “religião” ou “condição de pessoa idosa ou com deficiência”, a aplicação será do artigo 140, § 3º., CP.
Não por outro motivo, Costa, David e Bretz oportunamente sugerem que se passe a usar o “nomen juris” “Injúria Racista ou Racial” para o artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 e a terminologia “Injúria Preconceito” para o artigo 140, § 3º., CP. 8
A nosso ver essa transposição parcial não somente não se justifica sob o critério da proporcionalidade e isonomia, como também somente vem para ocasionar dúvidas, questionamentos, enfim, mais insegurança jurídica.
Considerando que ao injuriar alguém por qualquer dos elementos mencionados nos dispositivos acima transcritos se está conferindo tratamento negativo à vítima, configurando-se, em qualquer caso uma situação de “Racismo Discriminatório”, não existe motivo plausível para um tratamento diferenciado entre os casos. Não há razão para que as penas sejam diversas, maiores para, por exemplo, uma ofensa relativa à cor e menores para outra ofensa relativa à religião e assim por diante. Afora isso, não há motivo para que legalmente certas discriminações perpetradas por ofensas verbais sejam alocadas na legislação de racismo, com um valor simbólico muito mais intenso, enquanto outras discriminações tão repulsivas quanto as demais permaneçam no Código Penal, na legislação comum, como numa “vala comum”, passando uma mensagem igualmente simbólica de menoscabo.
A crítica de Botelho a essa opção legislativa tresloucada é severa:
Não custa nada lembrar por fim, que mais uma vez o desatento legislador brasileiro pratica uma brutal discriminação contra algumas categorias da sociedade brasileira, ao enquadrar tão somente como racismo as violações referentes aos elementos de raça, cor, etnia ou procedência nacional, deixando de escanteio as importantes questões referentes à liberdade religiosa, condição de pessoa idosa ou com deficiência.
Não custa nada perguntar; noutra seara, perguntar não ofende: será que alguém de procedência estrangeira é mais importante que a liberdade religiosa, ou condição de pessoa idosa ou com deficiência? Releva ainda afirmar que o legislador violou com pena de morte o princípio da proporcionalidade ao criar uma reprimenda menor a quem pratica crime de injúria racial contra a pessoa em razão de sua opção religiosa ou condição de pessoa idosa ou com deficiência. Pobre do legislador, inconsequente, negligente, deitado em berços esplêndidos que mais uma vez presta um insofismável e inexorável desserviço à sociedade brasileira. 9
Também chamam a atenção para esse aspecto, especialmente quanto à injúria religiosa, Costa, David e Bretz:
A Lei 9.459/97 incluiu as circunstâncias de etnia, de religião e de procedência nacional na definição de injúria racial (artigo 140, §3º do CP); contudo essa lógica foi abandonada parcialmente na novel redação do artigo 2º-A.
O legislador cometeu o equívoco de permitir que a discriminação religiosa remanesça no crime de injúria preconceito, não sendo transportada para o novel artigo 2º-A.
Essa decisão chama a atenção pois a discriminação religiosa — em todas as suas facetas — foi pano de fundo de uma das atrocidades da história da humanidade. O holocausto se originou das entranhas da intolerância religiosa, enraizando-se, gradualmente, na sociedade, com a permissividade de grupos de interesse oportunistas que, almejando proveitos pessoais, promoveram atos de extirpação de incontáveis vidas. E, no Brasil, o debate sobre o antissemitismo foi objeto de case do STF (HC 82.424) no qual se reconheceu o racismo religioso. 10
É realmente algo que causa intensa perplexidade ver surgir uma legislação de combate ao racismo que deixa de lado a questão do “racismo religioso”, especialmente após as atrocidades nazistas e comunistas perpetradas no século XX 11 e que ainda seguem em ação, seja no plano ideológico e até mesmo prático.
O antissemitismo sob seu aspecto religioso jamais poderia ser olvidado numa legislação moderna, assim como a história milenar da “Cristofobia”, perseguição a religiões afrobrasileiras, discriminações de vários matizes contra evangélicos etc.
Os autores acima citados, diante desse quadro assustador, tentam apontar uma possível motivação para a exclusão do “racismo religioso” da Lei 7.716/89:
De outro turno, a decisão legislativa de não potencializar o status da injúria religiosa pode ter se dado para não criminalizar de forma mais ampla o proselitismo religioso, vez que o STF inclusive já reconheceu sua licitude (ROHC nº 134.682/ BA), permitindo-se que adeptos de uma religião busquem o resgate religioso de integrantes de outras religiões ou seitas. 12
É indiscutível que o proselitismo religioso jamais pode ser incriminado, pois parte integrante e indissociável do Direito de Liberdade Religiosa. É da natureza das religiões a certeza subjetiva do adepto de que aquela religião por ele seguida é a única correta e, especialmente, que contém a Verdade. Incriminar o direito a essa crença pessoal e sua defesa seria mutilar ou mesmo aniquilar a liberdade religiosa.
Dentre as várias modalidades do conhecimento humano, podem-se destacar quatro: Ciência, Filosofia, Lógica Matemática e Religião. Pois bem, a Lógica Matemática, dado seu nível de elevada abstração não se presta a valorações subjetivas de “certeza”, mas apenas de “exatidão” e “correção”. A Ciência e a Filosofia não admitem a “certeza” em geral ou uma noção de “Verdade” indiscutível. Ao reverso, esses ramos do conhecimento humano têm como elemento constitutivo o constante confrontamento de ideias e a possibilidade de contraditar qualquer proposição. Diversamente, o conhecimento religioso é diretamente ligado ao estado subjetivo de “certeza” e ao conceito dogmático e absoluto de “Verdade”. É somente no âmbito religioso que o pensamento e a ação humanos têm a pretensão e a convicção da posse da “Verdade”. Isso é dito para deixar claro que o tratamento do “racismo religioso” na Lei do Racismo não poderia jamais tocar na convicção e no proselitismo, na possibilidade de que uma religião, por meio de seus adeptos, contrastasse fortemente outras religiões, é claro que sem o emprego de violência ou ofensas gratuitas que se desviem da defesa de suas crenças e convicções e da negação de outras diversas. Assim sendo, não nos parece ser justificável o afastamento do “racismo religioso” pela Lei 14.532/23 da Lei 7.716/89.
Ainda reforçando a crítica dessa paradoxal “discriminação” injusta causada pela própria Lei 14.532/23 que, em tese, pretende combater as discriminações negativas, vale mencionar o escólio de Sannini e Gilaberte:
Essa divisão entre injúria por preconceito e injúria racial cria uma situação de desproporcionalidade, especialmente no tocante ao preconceito religioso. O art. 1º da Lei 7.716 iguala, para fins de aplicação do diploma, o preconceito e a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Em quase todos os tipos penais da lei essas espécies de preconceito são igualadas. A ruptura promovida pelo art. 2º-A, faz com que se puna a injúria de raça, cor, etnia ou procedência nacional com uma pena de reclusão, de 2 a 5 anos, ao mesmo tempo em que, à injúria religiosa, fica reservada a sanção anterior, de reclusão de 1 a 3 anos. Ou seja, provoca-se uma desequiparação injustificada.
Qual é a solução para essa perplexidade?
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(A) Reconhecer-se a inconstitucionalidade da manutenção da injúria religiosa no art. 140, § 3º, do CP, usando o art. 1º da Lei 7.716 para integrar a norma do art. 2º-A (soluciona-se o problema da proporcionalidade, mas cria-se uma possível afronta à legalidade);
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(B) a manutenção da atual dicotomia, o que implica vício de proporcionalidade.
Ou seja, não há uma solução totalmente satisfatória. 13
É preciso, no entanto, destacar que não é possível, sem reforma legal, pretender superar a violação à proporcionalidade com a aplicação da pena mais gravosa da Lei 7.716/89 para as figuras que foram esquecidas no artigo 140, § 3º., CP, pois isso violaria terrivelmente o “Princípio da Legalidade das Penas” (“nulla poena sine praevia lege” – “não há pena sem prévia lei”) e da vedação de analogia “in mallam partem”. Infelizmente a divisão terá de ser mantida enquanto não houver alteração na lei. E a única forma de aplicar dentro dos princípios que regem o Direito Penal Moderno a proporcionalidade, seria mediante o uso da pena menor, prevista no artigo 140, § 3º. CP nos casos do artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89, já que se trataria de uma atuação informada pelo “Favor rei”. Enfim, nenhuma solução é ideal, salvo a reforma legal para corrigir esse erro crasso do legislador.
Na realidade, a nosso sentir, a Lei do Racismo deveria ser alterada, e se perdeu essa oportunidade agora, promovendo duas grandes guinadas essenciais:
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1) Sem retirar o termo “Racismo” que embora tenha perdido seu significado científico (pseudocientífico) na atualidade, mantém importante face histórico – simbólica, seria mais correto alterar a ementa da legislação fazendo referência a toda e qualquer forma de “discriminação negativa” ou “segregação” por motivo de “preconceito”. Assim, os tipos penais da Lei 7.716/89 ganhariam abrangência e questões como a chamada homotransfobia que já levaram a mais uma violação da Separação dos Poderes e do Princípio da Legalidade, estariam solvidas. 14 Ademais, quaisquer atitudes informadas pelo preconceito seriam passíveis de apenação, não sendo necessário o recurso de, a cada fenômeno social discriminatório negativo ou segregatório, haver alteração legal ou, pior, ativismo judicial violador da legalidade penal. Essa abrangência ampla da incriminação de discriminações negativas e segregações, ademais, estaria em plena consonância com o disposto no artigo 3º., IV, CF, que finaliza sua dicção demandando o combate, não a um ou outro preconceito casuisticamente enumerado ou “numerus clausus”, mas se referindo genericamente a “quaisquer outras formas de discriminação” (“numerus apertus”).
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2) Sendo o Racismo considerado como uma conduta criminosa de alta gravidade (como não poderia deixar de ser), impõe-se uma revisão dos preceitos secundários dos tipos penais (penas). As penalidades previstas legalmente para os crimes de racismo são muito brandas, considerando a gravidade das infrações ali previstas. Há um laxismo penal violador da proporcionalidade com relação à proibição de insuficiência protetiva.
Saliente-se que mesmo a passagem legal da “Injúria Racial” para a Lei de Racismo, ainda que procedida na sua totalidade e de acordo com o devido processo legislativo, não nos parece a melhor medida, sendo que a antiga e tradicional distinção entre crimes de racismo e mera injúria era um modelo muito mais racional e proporcional. Essa atual alteração se movimenta em apelos emocionais marcados pelo politicamente correto, afastando a cientificidade do Direito e permitindo sua substituição pela política rasa e influências midiáticas abaixo da mediocridade. Nesse passo, é preciso lembrar com Penn que mesmo homens plenos de conhecimento podem ser instrumentalizados por outrem sem sequer perceberem. Em suas palavras de sabedoria:
O conhecimento é o tesouro, mas o julgamento é o tesoureiro de um homem sábio. Aquele que tem mais conhecimento do que julgamento, é feito para o uso de outro homem mais do que para o seu. 15
Antes da alteração legal o que se criticava duramente era um ativismo judicial indevido, violador inclusive da divisão de poderes e da legalidade penal. Isso porque, se for verdade que a punição da injúria racial, que diferia amplamente do artigo 20 da Lei 7716/89, como crime contra a honra e não como crime de racismo, se constituía em uma espécie de inconstitucionalidade por deficiência protetiva, então o caminho não seria que o Judiciário se arvorasse, como o fez, em legislador, procedendo a uma interpretação construída com analogia prejudicial ao réu. O caminho era a proposta de “lege ferenda” para alteração do quadro legislativo, revogando-se o § 3º., do artigo 140, CP e transplantando o ilícito para o bojo da Lei 7716/89. Aí sim, então, a injúria racial tornar-se-ia, legitimamente, um crime de racismo com todas as consequências correlatas. Foi o que se processou, ao menos parcialmente, com o advento da Lei 14.532/23.
Entende-se que mesmo essa reforma escorreita não seria o melhor caminho porque se trataria de uma reação violadora da proporcionalidade, onde a proclamada inconstitucionalidade por deficiência protetiva se converteria em inconstitucionalidade por excesso. Um mero xingamento verbal ou gestual direcionado a um indivíduo não se pode equiparar a crime de racismo dentro de um mínimo de razoabilidade e proporcionalidade. Afirmar isso não é defender quem assim atua, mas deixar claro que a reação penal tem de ser adequada à gravidade da ofensa, sob pena, inclusive, de banalizar o que se entende por efetivo “racismo”.
Há inclusive quem na doutrina entenda que a punição especial da injúria racial já violava e em parte continuaria violando, naquilo que lhe restou com a reforma, a proporcionalidade se comparada sua pena prevista com a de outros crimes como um homicídio culposo, aborto consentido, crimes de perigo individual etc. Damásio dá o exemplo daquele que ofende alguém de “alemão batata” e recebe pena idêntica àquele que mata um feto ou pena menor do que aquele que mata alguém culposamente. 16
Pode-se afirmar, portanto, que a anterior conduta ativista judicial do STJ e do STF foi equivocada e equiparou condutas que não são equiparáveis dentro do quadro legislativo da época. E mais, que não deveriam mesmo ser equiparadas, ainda que obedecendo a um processo legislativo adequado, conforme em parte se fez com a Lei 14.532/23.
Sannini e Gilaberte chamam a atenção para o fato de que a inclusão da “Injúria Racial” na Lei 7.716/89 pela Lei 14.532/23 criou um problema grave de proporcionalidade, com a previsão de uma pena maior para uma mera injúria do que para os tipos penais de “racismo discriminatório e segregatório” previstos no mesmo diploma. Isso certamente é uma prova da atuação de um “Direito Penal Simbólico”, movido pela influência midiática e do politicamente correto, que acaba conturbando o sistema jurídico em sua estrutura sistemática. Veja-se a lição dos autores:
Além daquilo que já foi mencionado, há outros problemas de proporcionalidade na alteração legislativa. Vejamos: a injúria racial prevista na Lei 7.716, consistente numa ofensa à vítima, é punida com reclusão de 2 a 5 anos. Já a conduta recusar ou impedir o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, que tem evidente caráter segregador, é punida com reclusão de 1 a 3 anos. Entretanto, a forma mais grave de racismo é aquela que segrega, ou seja, que limita direitos e liberdades públicas por razões de discriminação ou preconceito. É evidente que ao ofender uma pessoa por motivos de cor, por exemplo, o agente também promove o racismo, mas de forma menos significativa daquele que se recusa a atender uma pessoa em um restaurante pelo simples fato de ela ser negra. 17
Seja como for, “legem habemus” e é preciso prosseguir em sua análise detida.
Uma alteração que chama a atenção é que no artigo 2º–A da Lei do Racismo a ofensa não mais é descrita como aquela que “consiste na utilização de elementos referentes a..”, como no artigo 140, § 3º., CP. No artigo 2º–A, a ofensa deve se dar “em razão de...”. Significa dizer que no artigo 140, § 3º, CP se descrevia e continua descrevendo um “modus operandi” objetivo, o emprego de expressões discriminatórias, com “animus injuriandi”, a vontade de ofender a dignidade ou decoro de outrem, mas sempre com o emprego de expressões referentes à condição da pessoa contra a qual se tem algum preconceito. Já no artigo 2º-A, o uso de expressões ou palavras discriminatórias ofensivas deve ser marcado por um elemento subjetivo, uma “motivação” racista, preconceituosa, discriminatória ou segregatória, não importando qual a expressão ou palavra utilizada, desde que o que tenha motivado o agente seja o racismo. É de se concluir que no artigo 2º–A, da Lei 7.716/89 não mais se exige a ofensa com o emprego objetivo de expressões e/ou palavras relativas a raça, cor, etnia ou procedência nacional, basta que o impropério ou xingamento tenha se dado “em razão” de racismo. Quando se xingar uma pessoa negra, por exemplo, de salafrária, dever-se-á perquirir se isso se deu de forma genérica, como se faria com um branco ou se o xingamento derivou do preconceito racial. Em não havendo o preconceito o crime será o de injúria simples do Código Penal. Havendo o preconceito, mesmo sem o elemento objetivo de palavras ou expressões ligadas à cor, como por exemplo, “neguinho salafrário” (sic), o crime será o do artigo 2º–A da Lei 7.716/89. É evidente que quando essas palavras ou expressões forem ditas será muito mais fácil aferir o dolo racista. Não havendo seu emprego a aplicação desse dolo racista será mais complicada em termos probatórios e, na dúvida, deverá ser afastado o crime da legislação especial, aplicando-se a injúria simples do Código Penal (“in dubio pro reo”). 18
Outra novidade é a previsão no Parágrafo Único do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 de uma causa especial de aumento de pena da ordem da metade em caso de concurso de agentes (se o crime for cometido por duas ou mais pessoas). A exacerbação punitiva se justifica pela potencialização da lesividade da conduta, considerando o número de sujeitos ativos. E esse aumento será aplicável não importando se um dos concorrentes é inimputável (v.g. doente mental sem discernimento ou menor de 18 anos). A lei prevê o aumento devido ao concurso de duas ou mais “pessoas”, não importando sua imputabilidade, bastando que sejam “pessoas”. Um detalhe: se o concorrente for menor de 18 anos, este responderá nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) por ato infracional correlato. Por seu turno, o maior que com ele atuou responderá, pelo crime de racismo majorado pelo concurso de agentes e também pelo crime de “Corrupção de Menores” (artigo 244 – B, ECA) em concurso formal de infrações.
Por derradeiro uma pergunta se impõe:
Embora os casos de discriminação injuriosa religiosa, etária e capacitista permaneçam no artigo 140, § 3º., CP com penas menores, ainda seria defensável a tese de que constituem “crime de racismo” excepcionalmente previsto fora da Lei 7.716/89?
Responderemos essa questão em item próprio mais adiante neste texto.