5. OUTROS AUMENTOS DE PENA DA INJÚRIA RACIAL E DOS DEMAIS CRIMES DE RACISMO DA LEI 7.716/89
Além da majorante especial prevista para o crime de “Injúria Racial” (artigo 2º. – A, Parágrafo Único da Lei 7.716/89), a Lei 14.532/23 trouxe ao cenário outras causas de aumento de pena gerais, aplicáveis, portanto, não somente à “Injúria Racial”, mas a todos os demais crimes da Lei de Racismo.
5.1. DO RACISMO RECREATIVO
O artigo 20 – A prevê aumento de pena da ordem de um terço até a metade, quando os crimes de racismo “ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. 19
Houve muita reação a essa disposição legal, considerando que pode funcionar como um entrave à liberdade artística dos humoristas. E realmente pode se tornar um terrível instrumento de cerceamento a essa categoria e às pessoas em geral, dependendo do alcance interpretativo que seja conferido ao dispositivo. Infelizmente, a prognose é que haja mesmo uma aplicação marcada pela influência midiática, ideológica e politicamente correta, tornando-se o dispositivo um instrumento de opressão.
No entanto, o correto entendimento acerca dessa causa de aumento de pena é que somente pode ser considerada quando o intuito recreativo ou humorístico não seja real, mas uma espécie de pretexto ou subterfúgio para a prática velada de racismo. Ou seja, quando ficar nítido que a pessoa apenas finge ou afeta tom de brincadeira, mas o intuito é de ofensa, discriminação ou segregação. A análise do caso concreto deverá ser meticulosa, impedindo injustiças, inclusive em caso de dúvida (“in dubio pro reo”), exigindo-se muito cuidado até mesmo para a deliberação de instauração de procedimentos de investigação criminal ou, ainda pior, processos penais desarrazoados.
Pode-se fazer uma comparação com a chamada conduta “passivo – agressiva”, onde se ofende, humilha ou constrange de maneira dissimulada, irônica, sarcástica ou indireta.
Como bem esclarece Furtado:
Pessoas com comportamento passivo-agressivo possuem a habilidade de simular carinho quando no fundo desejam menosprezar, controlar ou ridicularizar. Normalmente não fazem elogios e quando fazem, a apreciação vem sempre acompanhada por uma frase desagradável que estraga a “boa intenção” inicial. 20
A agressividade ou ofensividade se manifesta de forma velada ou silenciosa, mas não deixa de existir. Nas palavras de Brum:
“A comunicação passivo-agressiva é uma forma de expressar sentimentos de raiva ou insatisfação de maneira silenciosa”. 21
Acaso essa “raiva”, “ódio”, “insatisfação”, “repulsa” ou “preconceito” sejam manifestações furtivas ou evasivas de racismo com o uso do recurso da recreação como pretexto, estaremos diante da situação de “Racismo Recreativo”. Caberá ao intérprete e aplicador da lei cavar fundo para encontrar sob a camada recreativa ou jocosa o intento preconceituoso ofensivo.
Dessa forma esta causa de aumento de pena agora prevista para os crimes de racismo equivale, “mutatis mutandis”, ao emprego de “meio insidioso” como qualificadora do homicídio. É a conduta de agir de forma dissimulada, pérfida, acobertando os reais desígnios que justifica a maior reprovabilidade da conduta.
Sannini e Gilaberte muito bem descrevem essa situação, delineando a aplicabilidade do chamado “Racismo Recreativo” àquelas “manifestações preconceituosas travestidas de animus jocandi” (grifo nosso). 22 Chamam ainda a atenção para o fato de que mesmo no caso de “meras brincadeiras” poderá haver responsabilização, mas desde que o agente “possua a consciência de seu conteúdo preconceituoso e potencialmente ofensivo”. 23 Nesse passo acrescentamos que se não fosse assim, estaríamos diante de um quadro inviável de “Responsabilidade Objetiva” com violação direta ao disposto no artigo 19, CP. É ainda preciso destacar que a conduta será passível de ajuste ao artigo 20 – A em estudo somente se perpetrada em sua forma dolosa (dolo direto ou ao menos eventual). Não há previsão e nem deveria jamais haver, de conduta meramente culposa. Como concluem com correção os autores em destaque, essa consciência e intenção do agente que deve estar presente se constitui em uma manutenção “de um resquício de animus injuriandi” para autorizar eventual punição. 24 Sem essa consciência de ofensividade não há crime e muito menos razão convincente para exacerbação penal nos termos do artigo 20 – A da Lei 7.716/89. E concluem os estudiosos:
Ademais, manifestações críticas, ainda que realizadas com bom humor, mas desapegadas de caráter preconceituoso ou discriminatório, jamais poderão ser consideradas criminosas, pois conferem plenitude ao direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento. 25
Sem essa necessária razoabilidade diversas questões polêmicas passariam a ser alvo de proibição no debate público, mesmo em casos de críticas formuladas em tom de humor ou brincadeira. Por exemplo, qualquer discussão acerca de cotas raciais, políticas relativas a povos originários, dissensos religiosos, políticas de migração e imigração ou de concessão de refúgio etc.
Observação também interessante é feita por Costa, David e Bretz quanto à equiparação no artigo 20 – A da Lei de Racismo entre um elemento objetivo (“contexto” recreativo) e um elemento subjetivo (“intuito” recreativo). Enquanto o primeiro se refere, por exemplo ao local ou circunstância (teatro, TV, rádio, festa, roda de amigos) o segundo se mostra como uma elemento intencional. 26 Não obstante, em qualquer situação não se deve pensar que o intento ofensivo ou “animus injuriandi” é dispensável, elevando o “animus jocandi” a conformador de elemento subjetivo típico isoladamente, o que seria um rematado absurdo. Os autores defendem a necessidade de “coexistência” de dois dolos específicos, ao que chamam de “dolo específico ao quadrado”. 27 Ou seja, há necessidade da presença do “animus injuriandi” que se tenta ocultar por um falso “animus jocandi” ou intuito recreativo.
Pode causar certa estranheza que a expressão utilizada tenha sido “dolo específico ao quadrado” e não simplesmente “dolo específico duplo” ou “dolo específico somado”. Isso porque se fizermos uma transdisciplinaridade com a matemática, na verdade o que se está exigindo é a presença de um dolo mais (adição) outro. São dois dolos somados. A operação não é de potenciação ou exponenciação propriamente dita, ao menos num primeiro olhar, pois, ao pé da letra, se elevássemos um dolo ao quadrado isso corresponderia a 1 X 1 e resultaria em 1, um giro de 360 graus sem sair do lugar. E se pensarmos em dois dolos elevados ao quadrado, isso significaria na solução matemática em que surgiriam então quatro dolos, o que também não tem sustento. Acontece que os autores usam a expressão porque entendem que o “animus injuriandi” é potenciado ou exponenciado pelo disfarce do falso “animus jocandi”. Daí a afirmação pode ser acatada não diretamente, mas como uma figura de linguagem metafórica. Não há dúvida quanto ao acerto dos autores nessa operação estilística muito bem posta. Vejamos:
A intenção recreativa é a razão exponencial do animus injuriandi, pois facilita e potencializa a consolidação do preconceito nas estruturas sociais (grifos nossos).
Por isso, a nosso ver, a injúria racista ordinária requer somente o animus injuriandi para a sua consumação. Contudo, se as palavras racistas e injuriosas forem proferidas com intuito ou no contexto recreativos, servindo o autor de tal subterfúgio para camuflar o seu inequívoco intuito de ofender, torna-se possível a incidência da injúria racista majorada pelo contexto ou intuito recreativo (grifo no original).
A conduta racista injuriosa, quando escamoteada pelo manto da menor reprovabilidade social, é estruturalmente mais grave do que a conduta realizada às claras e perceptível em sua intencionalidade real por todos. Por isso a possibilidade de majoração da pena, frisamos. 28
Seguindo no caminho desse intento necessário de procurar camuflar o racismo com suposta descontração, brincadeira ou divertimento, o mesmo raciocínio deve ser empregado, no que tange à “Injúria Preconceito”, prevista no artigo 140, § 3º., CP (religiosa, etária ou capacitista), quando se trata de reconhecimento da chamada “imunidade judiciária, literária, artística, [científica] e funcional”, conforme disposto no artigo 142, CP para os crimes de injúria e difamação (a calúnia não é abrangida pela imunidade). Se fica claro que a pessoa apenas se acoberta nessas atividades com “inequívoca intenção de injuriar ou difamar” não fará jus à imunidade alguma, respondendo pela “Injúria Preconceito” ou mesmo pela difamação praticadas. Chamam a atenção os autores em destaque para a inexistência de direitos constitucionais absolutos e, consequentemente, ainda com maior razão, para a não existência de imunidades penais absolutas derivadas da lei ordinária (Código Penal). São assertivos, Costa, David e Bretz ao afirmarem que “qualquer pessoa que ofenda alguém, travestindo sua intencionalidade racista de rótulos laborais, não se faz merecedor da proteção legal”. 29 Acrescente-se que para alguns toda essa discussão somente terá cabimento com relação à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP). No que se refere à “Injúria Racial” (artigo 2º.-A da Lei 7.716/89), seria evidente que não se pode aplicar qualquer imunidade prevista no Código Penal, já que o ilícito está posicionado em legislação especial que não prevê tal benefício. Não obstante, pode haver posicionamento entendendo que as imunidades previstas no artigo 142, CP são “normas gerais”, embora previstas na “Parte Especial” do Código Penal. Dessa forma, tais imunidades seriam aplicáveis, nos termos e limites acima mencionados, tanto à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) como à “Injúria Racial” (artigo 2º.-A da Lei 7.716/89). Contudo, nos parece muito improvável que em qualquer dos dois casos (Código Penal ou Lei de Racismo) uma injúria dessa espécie e gravidade se possa justificar pela discussão em juízo, pelo exercício da crítica literária, artística ou científica ou pelo exercício funcional. Parece inviável afastar, conforme a dicção da própria lei a vetar as imunidades, a “inequívoca intenção de injuriar ou difamar”.
Além disso, é preciso lembrar que há na doutrina oposição até mesmo à aplicação do “Perdão Judicial” nos casos de “provocação” ou “retorsão” (artigo 140, § 1º., I e II, CP) nos casos de “Injúria Qualificada pelo Preconceito”, alegando-se que nessa espécie de ofensa a “retorsão” ou “provocação” não seria suficiente para mobilizar a “causa geradora do perdão judicial”. Isso porque o preconceito demonstrado não constitui simples injúria e não poderia ser combatido por outra injúria. Na verdade, a aplicação de perdão judicial em casos de injúria qualificada do Código Penal ou, atualmente, da Lei de Racismo, seria aceder com a difusão da discriminação pela troca de ofensas dessa natureza ou pela resposta a alguma provocação com esse tipo de impropério. Não se trata somente de violação à honra, mas de tratamento discriminatório que afeta diretamente meta fundamental do “Estado Democrático de Direito (CF, art. 3º., IV)”. 30
Tendo em vista esses argumentos judiciosos, entendemos que realmente seria muito difícil fundamentar o reconhecimento de imunidade dos crimes contra a honra, nos termos do artigo 142, CP, seja aos casos que ficaram ainda no artigo 140, § 3º., CP, seja aos casos que foram transpostos para o artigo 2º.-A da Lei de Racismo.
5.2. RACISMO FUNCIONAL
Essa causa especial de aumento de pena é prevista no artigo 20 – B da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23 e fica adstrita somente aos crimes de “Injúria Racial” (artigo 2º. – A) e de “Apologia ao Racismo” (artigo 20). Diversamente da majorante do artigo 20 – A, esta agora em estudo não se espraia para todos os crimes de racismo.
A previsão é de um aumento da ordem de um terço até a metade quando os crimes de “Injúria Racial” ou de “Apologia ao Racismo” forem perpetrados por “funcionário público” “no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las”.
A exacerbação da reprimenda legal obviamente se justifica, já que os agentes públicos não podem jamais ser perpetradores e disseminadores de condutas racistas, mas, ao reverso, são os maiores obrigados a seu combate e eliminação da nossa sociedade.
A lei menciona a expressão “funcionário público” como sujeito ativo, mas na verdade se refere a qualquer “agente público”, na medida em que indica expressamente como complemento à sua interpretação o conceito de “funcionário público” do Código Penal. Fato é que a conceituação de “funcionário público” no Código Penal é bem mais ampla do que no âmbito administrativo, conforme se conclui da redação dada ao artigo 327, CP. 31 O opção legislativa na redação do artigo 20 – B da Lei de Racismo de remeter o intérprete ao Código Penal para esclarecer o conceito de Funcionário Público pode ser considerada como supérflua, uma vez que é pacífico que o conceito de Funcionário Público para fins penais sempre deve ser entendido mediante recurso à norma geral do artigo 327, CP, seja para crimes previstos no corpo do Código Penal, seja na legislação esparsa. Não há, portanto, necessidade de remeter o intérprete expressamente ao artigo 327, CP. Ao reverso, se em alguma legislação se pretender empregar um sentido diverso de Funcionário Público para fins penais, é que se deve, naquela lei, erigir um conceito especial (inteligência do artigo 12, CP). É lição de Mirabete e Fabbrini:
Embora o artigo 327 do Código Penal esteja no capítulo dos crimes praticados por funcionários públicos, o conceito aí definido, como é pacífico na jurisprudência, estende-se não só a toda parte especial como às leis penais extravagantes, tendo a característica de regra geral, como a chama o artigo 12 do CP. O fato de ter sido incluída na parte especial não lhe retira essa qualidade. 32
A causa especial de aumento de pena em estudo somente será aplicada a Funcionário Público em razão da função. Os particulares não são abrangidos e mesmo os funcionários públicos quando atuam fora das funções.
Ainda que um particular atue em concurso de agentes com um Funcionário Público que, por sua vez, age em razão da função, o aumento de pena se restringe ao Agente Público e não se transmite ao particular (“extraneus”). Isso porque se trata de condição de caráter pessoal, a qual não se transmite, salvo quando elementar do crime. No caso a condição de Funcionário Público não é “elementar do crime”, mas elemento normativo da majorante especial (inteligência do artigo 30, CP).
Obviamente, em se tratando de causa especial de aumento de pena que faz alusão expressa aos crimes do artigo 2º.-A e 20 da Lei 7.716/89, restringindo inequivocamente seu campo de incidência, não poderá haver aplicação do artigo 20 – B da Lei de Racismo à Injúria Qualificada prevista no artigo 140, § 3º., CP. Eis mais uma violação da proporcionalidade ocasionada pela cisão da antiga Injúria Qualificada entre o Código Penal e a Lei de Racismo. Ademais, não se vê motivação plausível para a restrição do aumento somente para dois crimes da Lei de Racismo. O mais correto e justo seria que o incremento penal se espraiasse por todos os delitos de racismo.