6. ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.532/23 NO CRIME DE “APOLOGIA AO RACISMO”
6.1. QUALIFICADORA DEVIDO AO USO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, REDES SOCIAIS DE INTERNET E PUBLICAÇÕES DE QUALQUER NATUREZA
Importa ressaltar que o artigo 20 da Lei 7.716/89 configura a chamada “Apologia ao Racismo” e difere bastante da “Injúria Racial”, seja aquela prevista no artigo 2º. – A do mesmo diploma, seja aquela capitulada no artigo 143, § 3º., CP. Nada tem o artigo 20 da Lei 7.716/89 de similar ao caso da injúria racial ou preconceito, pois não se trata de mera ofensa a um indivíduo ou mesmo a um grupo de pessoas determinadas, mas de apologia ao racismo em geral de forma indeterminada, difusa, do incentivo e defesa de práticas e teorias racistas.
Neste sentido:
Não se amolda ao tipo penal em análise o ato de proferir xingamentos ou adjetivações com expressões discriminatórias ou preconceituosas, pois se circunscrevem à injúria racial (...).
O direcionamento individualizado a determinada pessoa afasta a formatação do crime de racismo, pois para o crime racial é necessário que a aversão, a ojeriza ou o preconceito se dê em torno de um grupo ou coletividade. 33
Na redação do artigo 20 em estudo são abrangidas todas as espécies de racismo previstas na lei respectiva em geral conforme seu artigo 1º., quais sejam “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Há um ganho porque o “racismo religioso” não é esquecido. Por sorte a Lei 14.532/23 não alterou o “caput” do artigo 20 quanto à religião. Porém, perdeu o legislador a oportunidade de incluir os racismos “etário” (idoso) e “capacitista” (deficientes). Isso no mínimo, pois, como já dissemos, o ideal seria uma legislação abrangente de qualquer discriminação ou segregação injustificada. 34
A Lei 14.532/23 altera a redação do § 2º. do artigo 20, que prevê uma forma qualificada com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. Antes o crime se qualificava quando cometido por “intermédio de meios de comunicação social” ou “publicação de qualquer natureza”. Essas causas de aumento, tendo em vista o meio de divulgação foram mantidas e foi incluída uma nova causa: quando o crime for perpetrado por intermédio “de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores” (internet). A inclusão é bem vinda, já que em todos os casos a justificativa para o incremento punitivo é seu maior potencial de difusão de ideias racistas. No entanto, em nosso entender, na verdade, a qualificadora já poderia ser aplicada antes porque já havia a previsão de “meios de comunicação social”, onde claramente estão abrangidas as redes sociais. Mesmo que não se entendesse assim, sabe-se lá por que, seria ainda possível a aplicação da forma qualificada por meio da fórmula genérica que fecha a qualificadora e já a fechava antes, “publicação de qualquer natureza”. Portanto, em nossa opinião, a inclusão que ora se faz apenas serve para deixar mais claro e evidente do que antes que o crime praticado por meio de redes sociais é qualificado, sem margem alguma de discussão.
É claro que para quem não concorde com a assertiva de que o uso das redes sociais para propagação do racismo já qualificava o crime do artigo 20 em estudo, essa específica situação de incremento penal não poderá retroagir, já que se trata de “novatio legis in pejus”. No entanto, em nosso entendimento, SMJ., não se trata de “novatio legis in pejus”, mas de mera operação de ênfase, de modo que, na verdade ocorre o fenômeno da “continuidade normativo – típica” de forma neutra. Assim sendo, a nosso ver, como sempre foi, a conduta praticada por intermédio de redes sociais deve ser apenada de forma qualificada, não havendo óbice técnico para a retroatividade.
Na doutrina especializada sobre o tema já se encontra esse entendimento de que desde sempre a internet e redes sociais eram abrangidas pela qualificadora, seja como “meio de comunicação social” ou “publicação”, de vez que o uso “de seus mecanismos permite o acesso a número indeterminado de pessoas, o que preenche a mens legis, como interpretação analógica, permitida em direito penal”. Ademais, chamam a atenção os autores para o fato de que o uso da internet enseja a competência da Justiça Federal, apontando julgado a respeito (“TRF 1ª. Região, RECURSO CRIMINAL 2007.38.00.036480-7/MG Relator: Desembargador Federal Mário César Ribeiro, julgamento: 25/08/09”). 35
Obviamente no caso de “meios de comunicação social” em geral (v.g. televisão, rádio etc.) e “publicação de qualquer natureza” (jornais, revistas, cartazes, panfletos, “flyers”, folhetos etc.) há evidente “continuidade normativo – típica” neutra nem mesmo sendo discutível a possibilidade de retroatividade.
Uma dúvida pode surgir: acaso a pessoa use vestimentas, roupas, camisetas com dizeres ou símbolos racistas em via pública ou locais públicos ou de acesso público, incidiria no crime? E na qualificadora?
No que diz respeito ao crime do artigo 20, “caput”, nos parece induvidoso que há incriminação. Já quanto à qualificadora não se trata de meio de comunicação social ou rede social, mas vestimenta. No entanto, se poderia alegar que poderia tipificar uma “publicação de qualquer natureza”. Não é de se afastar tal entendimento para aquele que produza o vestuário, mas se torna inviável pretender aplicar a qualificadora para quem apenas ostenta a roupa ou a usa em locais públicos, já que não se pode dizer que isso corresponda a alguma forma de publicação. Agora, aquele que customiza, faz uma estampa, emprega um processo de impressão tal como Silkscreen ou serigrafia e vende ou distribui de qualquer modo esse material, além de inserir-se no tipo penal em questão, parece também incidir na qualificadora na sua forma de “publicação de qualquer natureza” (interpretação analógica). Mais um detalhe, se a estampa na camiseta ou qualquer peça de roupa consistir em “símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, quem a usar em público incide no § 1º., do artigo 20 da Lei 7.716/89 no verbo “veicular” e quem “fabrica, comercializa ou distribui” responde nesse mesmo § 1º., mas nestes últimos verbos. Nesse caso específico não nos parece possível combinar, seja em concurso formal ou material os §§ 1º. e 2º., já que tal operação constituiria “bis in idem” no caso da figura da “publicação de qualquer natureza”. Ambos os dispositivos têm em mira a divulgação massiva do racismo e qualificam o crime de apologia. Ambos também se dão por meio de uma impressão ou publicação. Apenas o § 1º. elege materiais especiais, enquanto que o § 2º. diz respeito ao meio de divulgação. Isso, como explicitado antes, se afirma com relação à figura genérica da “publicação de qualquer natureza”. É evidente que se uma pessoa, por exemplo, fabrica, comercializa, distribui ou veicula a cruz suástica ou símbolos nazistas por intermédio de meios de comunicação social ou redes sociais, não haveria óbice para o reconhecimento de concurso material de infrações nos verbos “fabricar”, “comercializar” e “distribuir” e concurso formal impróprio no caso do verbo “veicular”. Outro aspecto importante é que mesmo na figura de “publicação de qualquer natureza” poderá haver o concurso material ou formal impróprio com o § 1º., desde que não se trate de estamparia em vestimentas, mas de publicações em panfletos, cartas – abertas, cartazes, flyers, folhetos, jornais, revistas etc. É que quando se tratam de roupas a produção têxtil e a estamparia já seriam formas de impressão ou publicação por sua própria natureza, razão pela qual se considera haver, neste caso específico, “bis in idem” na pretensão de aplicação do § 2º. Contudo, ainda que se tratando de roupas, se a estamparia é feita e depois propagada em redes sociais, meios de comunicação social em geral, haverá concurso material de crimes entre os §§ 1º. e 2º., já que são condutas independentes e sequenciais.
Embora recentemente um homem tenha sido absolvido pela Justiça brasileira (TJRJ) por ostentar em público tatuagem corporal de símbolo nazista, entende-se que tal conduta se amolda perfeitamente ao tipo penal do artigo 20, § 1º., da Lei 7.716/89, merecendo tal decisão a devida reforma pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal. 36 Não obstante, é preciso lembrar que o crime consiste na conduta externada, no caso a exibição ostensiva, veiculação do símbolo espúrio. O fato de que uma pessoa “simpatize” (sic) com o nazismo não é crime, pois não se punem os pensamentos ou a fase de cogitação do “iter criminis”. Também permitir que se faça em seu corpo ou fazer por si mesmo uma tatuagem dessa espécie no próprio corpo, é certamente imoral e de péssimo gosto, mas não configura crime isoladamente. Para que haja crime, é necessário que a tatuagem seja exibida ostensivamente em público. E no caso de que essa exibição se dê por meios de comunicação social ou redes sociais, haverá incidência em concurso material dos crimes do artigo 20, § 1º. e § 2º. No caso da tatuagem, a situação é similar à estampa na roupa, só que corporal, podendo-se dizer que quem a faz em terceiro é incriminado pelo artigo 20, § 1º., da Lei de Racismo, mas não pode incidir em concurso na figura do § 2º., que se refere a “publicação de qualquer natureza” (“bis in idem”). Não obstante, se faz a tatuagem (imprime, publica no corpo de alguém) e depois a veicula nos meios de comunicação social ou redes sociais, haverá concurso material de infrações (artigo 20, § 1º. e § 2º., da Lei 7.716/89).
Outro aspecto importante é que embora a lei preveja expressamente e de forma qualificada a divulgação de símbolos nazistas, a difusão de outros símbolos racistas não deixa de ser crime, apenas migrando a tipificação do artigo 20, § 1º., para o artigo 20, “caput” da Lei 7.716/89. E se essa divulgação se dá por intermédio de redes de comunicação social, redes sociais ou publicações em geral, incide normalmente a qualificadora do § 2º., do artigo 20 do mesmo diploma. Portanto, apregoar o racismo mediante a divulgação, por exemplo, de símbolos da Ku Klux Klan, de frases discriminatórias etc., podem configurar infração ao artigo 20, “caput” ou mesmo seu § 2º., a depender do meio de divulgação. Somente, nestes casos, por força do Princípio da Legalidade, não será possível aplicar o artigo 20, § 1º., pois embora sejam símbolos ou expressões racistas, não se referem especificamente ao nazismo.
A previsão especial e qualificada com relação aos abjetos símbolos nazistas certamente se dá por razões históricas que chocaram profundamente a humanidade no Século XX. Como bem aduz Silva:
Uma das maiores vergonhas para a espécie humana foi o holocausto perpetrado pelo partido nazista alemão, cujo nome oficial era Partido Nacional – Socialista dos Trabalhadores Alemães.
Nos dias atuais, infelizmente, ainda há pelo mundo aqueles que veneram verdadeiros demônios que foram os idealizadores e executores dessa atrocidade. 37
Este item não poderia ser encerrado sem lembrar mais uma violação tremenda à proporcionalidade ocasionada pela Lei 14.532/23, muito bem descrita por Sannini e Gilaberte. Toma-se a liberdade de transcrever a acertadíssima crítica dos autores:
A proporcionalidade é aviltada, ainda, quando analisamos a manifestação preconceituosa por meio de redes sociais informatizadas no contexto dos arts. 140, § 3º, c/c 141, § 2º, do CP, 2º-A da Lei 7.716 e 20, § 2º, da mesma lei. Analisando apenas o caput desses dispositivos, aquele de maior gravidade é a injúria racial ou xenofóbica, com pena de reclusão, de 2 a 5 anos. A injúria por preconceito do Código Penal e o art. 20. da Lei 7.716 possuem a mesma sanção penal (1 a 3 anos e multa). Logo, são equiparados pelo legislador em reprovabilidade. Contudo, quando esses crimes são praticados por meio de redes sociais informatizadas, a situação muda de figura. O crime mais grave passa a ser o do art. 140, § 3º (cuja pena é triplicada, chegando ao patamar de 3 a 9 anos de reclusão). Já o art. 20, caput e § 1º, sob a regência da nova redação do § 2º do dispositivo, passam a ter uma pena de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa, equiparando-se ao art. 2º-A. E este artigo? Sua pena não sofre nenhum acréscimo. Impossível uma incoerência maior. 38
Acrescente-se, por oportuno, que mesmo a gradação de gravidade entre os “capita” não é escorreita em termos de proporcionalidade. Não há motivo para que a “Injúria Racial” da Lei de Racismo tenha pena maior do que a “Injúria Preconceito” do Código Penal. Pior, não é correto que a “Injúria Preconceito” do Código Penal, enquanto ofensa individual limitada tenha a mesma pena que o crime de “Apologia ao Racismo” do artigo 20 da Lei 7.716/89. Este segundo é muito mais grave. Pior ainda, não é justificável que a “Injúria Racial” tenha pena maior do que a “Apologia ao Racismo”, pois mesmo em se tratando de crime ora previsto também na Lei de Racismo, sua lesividade continua sendo individual e não se pode equiparar à potencialidade lesiva coletiva ou difusa do artigo 20 do mesmo diploma.
6.2. QUALIFICADORA SE O CRIME É PRATICADO EM EVENTOS PÚBLICOS
O crime do artigo 20 também se qualifica com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, nos termos do § 2º. – A.
Essa qualificação se dá quando qualquer dos ilícitos previstos no artigo 20 da Lei de Racismo for cometido no contexto de “atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público”.
O “contexto” que pressupõe a prática criminosa em presença de muitas pessoas, com capacidade de maior disseminação de seu conteúdo racista justifica a exacerbação punitiva.
Note-se que essas atividades (esportivas, religiosas, artísticas ou culturais) devem, segundo a letra da lei, ser “destinadas ao público”. Significa dizer que atividades privadas ou limitadas aos participantes não ensejam a qualificadora. Exemplificando: num jogo de futebol profissional em estádio ou mesmo de várzea, mas aberto ao público em geral, poderá haver a qualificadora. Já num jogo de futebol entre amigos sem acesso público, o famoso “racho” ou “pelada” não será suficiente para qualificar o crime. O mesmo se diga de um culto religioso doméstico (não serve como qualificadora) e um culto religioso em um templo ou nas ruas ou locais públicos (procissões, encontros de jovens, cultos evangélicos, missas, sessões espíritas etc.). Quanto a atividades artísticas e culturais o mesmo critério. Se em privado, numa casa entre amigos ou colegas é feita alguma espécie de apresentação musical, teatral etc. não se caracteriza a qualificadora. Agora se ocorre o fato num teatro, no palco de uma apresentação musical ou mesmo numa apresentação escolar, uma feira artística, teatro amador etc., a qualificadora estará integrada. Não importa que a atividade seja profissional ou não, o que importa é que seja “destinada ao público”. É importante, porém, deixar claro que a “Apologia ao Racismo” perpetrada mesmo diante de um público restrito (amigos, familiares etc.) não perde sua tipicidade. A figura do artigo 20, “caput” não exige direcionamento ao público. Dessa forma, haverá, em tese, o crime, apenas em sua forma simples e não qualificada pelo § 2º. – A.
A previsão dessa qualificadora não deve significar, no âmbito religioso, instrumento para violação da liberdade religiosa. Como bem observam Costa, David e Bretz:
Conquanto a Lei nº 14.532/2023 tenha conferido causa de aumento de pena [“rectius” qualificadora] em face de condutas discriminatórias ou preconceituosas que ocorram no contexto de atividades religiosas (artigo 20, § 2º-A, da Lei nº 7.716/89), isso não significou a criminalização da atividade religiosa; na verdade, o legislador mitigou expressamente a incidência do referido tipo penal em outro ponto, imputando o mesmo gravame penal àqueles que obstam, impedem ou empregam violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas (interpolação nossa).
O mesmo Direito Penal que protege a liberdade religiosa, incrimina também a intolerância religiosa em face de outros grupos.
Em algumas circunstâncias, será difícil para o operador do direito resolver essa equação, principalmente porque alguns dogmas das religiões se confrontam com a percepção daqueles que não comungam das mesmas crenças de salvação e, portanto, sentem-se discriminados.
E as diferentes perspectivas, a nosso ver, ainda que permeadas por falas acaloradas de proselitismo religioso, não são os objetos de incriminação do presente diploma. Se não há crime de divergência hermenêutica de normas jurídicas, menos razão ainda para se punir visões diferentes (e igualmente legítimas) da vida humana e da religiosidade intrínseca da humanidade. Tudo, é claro, se ocorrido sem abuso ou exagero (grifo no original). 39
Como visto, além da pena privativa de liberdade há previsão de pena restritiva de direitos cumulativa, consistente na proibição de frequência àqueles eventos pelo período de 3 (três) anos.
O que causa dúvida na redação do preceito secundário acima mencionado é a frase que encerra o texto, “conforme o caso”. Há basicamente três possibilidades interpretativas:
-
a) Conforme o caso, o juiz poderá aplicar a pena privativa de liberdade cumulada ou não com a restritiva de direitos sempre por 3 (anos) fixos, já que não há intervalo legalmente previsto para individualização. A individualização da pena se daria pela aplicação ou não “in totum” da pena restritiva de direitos. Essa interpretação apresenta o problema de entrar em conflito com a conjunção aditiva “e” que liga a pena privativa de liberdade e a pena restritiva. De acordo com a conjunção aditiva, seria imperativo que o juiz impusesse ambas as penas sempre. Além disso, considerando a pena proibitiva fixa em 3 (três) anos, haveria possível violação do Princípio da Individualização da Pena.
-
b) Conforme o caso, o juiz sempre aplicaria ambas as penas (reclusiva e restritiva), tendo em vista o comando legal constituído pela conjunção aditiva (“e”) que as conecta. Não obstante, embora inexistindo previsão de intervalo temporal com a menção apenas da interdição por 3 (três) anos fixa, poderia o juiz fazer a individualização do “quantum” dessa interdição em cada caso concreto (“conforme o caso”). Então poderia proibir a frequência por uma semana, um mês, seis meses, dois anos, nunca obviamente podendo ultrapassar o patamar máximo legalmente estabelecido de 3 (três) anos. Essa solução não entra em conflito com a conjunção aditiva, mas provoca embate com a previsão legal de proibição por tempo fixo de 3 (três) anos. Ademais, a inexistência de conflito com a conjunção aditiva pode ser elidida pelo aplicador do Direito com a seguinte manobra indireta: como não há limite mínimo, poderia aplicar 0 (zero) dia de interdição ou então uma proibição meramente simbólica de 1 ou 2 dias em que sequer haveria algum evento a ser frequentado pelo infrator. Também poderia haver alegação de infração à individualização devido à obrigatoriedade de cumulação das penas reclusiva e restritiva, independente de cada caso concreto. Inobstante esta última crítica não nos pareça correta, uma vez que as penas privativa de liberdade “e” restritiva de direitos podem ser, em conjunto, a pena mais necessária, adequada e proporcional a essa espécie de conduta criminosa.
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c) O juiz aplicaria sempre a pena privativa de liberdade e a restritiva, tendo em vista a conjunção aditiva imperativa “e”. A pena restritiva seria também sempre fixa em 3 (anos), tendo em vista a inexistência de intervalo legalmente previsto para individualização. A expressão “conforme o caso” seria relativa somente à dosimetria individualizadora da pena privativa de liberdade entre 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão. Essa alternativa tem a virtude de não conflitar com a conjunção aditiva legalmente prevista e nem com a penalidade fixa de proibição de 3 (três) anos. No entanto, quanto à proibição de frequência pode-se cogitar de infração à individualização da pena, já que não haverá nunca variância de um caso concreto para outro. O ideal seria que houvesse o legislador estabelecido um intervalo mínimo e máximo de interdição de frequência. A questão da aplicação necessariamente cumulativa e violação da individualização, como já visto, pode ser afastada com certa facilidade, pois se trataria das penalidades (em conjunto) adequadas a esse tipo de conduta.
Como se vê o legislador não primou em sua redação pela melhor técnica e clareza. A nosso ver, a melhor interpretação é a da letra “c”, já que pelo menos respeita parcialmente a individualização da pena (quanto à pena reclusiva) e no mais se adequa perfeitamente à redação legal. A obrigatoriedade de aplicação conjunta das penas (reclusiva e restritiva) não nos parece ser uma real infração à individualização. Nas demais opções, além de sempre haver alguma violação da individualização, ocorrem choques entre a aplicação da lei e sua redação.
6.3. CONDUTA EQUIPARADA DE PERTURBAÇÃO COM OU SEM VIOLÊNCIA A MANIFESTAÇÕES OU PRÁTICAS RELIGIOSAS
Embora, como já visto, tenha o legislador relegado ao Código Penal a conduta de “Racismo Religioso” no que tange à “Injúria Racial”, no § 2º. – B do artigo 20 da Lei 7.716/89, a Lei 14.532/23 prevê como conduta equiparada com as penas do “caput” aquela de “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Significa dizer que o óbice violento ou não às manifestações ou práticas religiosas é inserido na Lei de Racismo, enquanto que a conduta de ofensa meramente verbal com conteúdo religioso fica adstrita ao Código Penal.
Há nítido e injustificado tratamento diferenciado entre o “Racismo Religioso” e as demais formas de racismo previstas na lei. Para as demais formas, a mera injúria verbal já é abrangida pela lei mais prática e simbolicamente gravosa. Com relação à religião, a injúria verbal parece ser relegada a uma importância menor, preocupando-se o legislador somente com condutas físicas de impedimento, óbice ou violência.
Outro aspecto criticável pela omissão legislativa é a imprevisão nesse parágrafo em estudo do emprego de violência, impedimento ou óbice a manifestações ou práticas culturais por motivo de preconceito, discriminação ou segregação. Sannini e Gilaberte são os autores que originalmente apontam essa falha e exemplificam com o impedimento ou emprego de violência contra uma festa folclórica como a do “Boi - bumbá” ou de uma Parada do “Orgulho Gay”. 40
Parece que a violência que pode informar a conduta equiparada do § 2º. – B pode ser contra pessoas ou coisas. Não há distinção na dicção legal. Além disso, a legislação impõe o cúmulo material entre as penas do crime de racismo (artigo 20, § 2º - B, da Lei 7.716/89) e aquelas referentes à violência. Dessa forma esse cúmulo material de penas poderá se dar, conforme o caso, com crimes, por exemplo, de lesões corporais, danos etc. A contravenção penal de “Vias de Fato” (artigo 21, LCP) parece dever ser absorvida como infração penal – meio.
Por outro lado, as condutas previstas no artigo 20, § 2º. – B não precisam, necessariamente, ser perpetradas mediante violência. Pode haver uma conduta passiva que impeça uma prática religiosa. Por exemplo, postar-se uma multidão em frente ao local de culto, impedindo com barricadas a passagem dos crentes. Lembremos que há os verbos “obstar” e “impedir”, além do “emprego de violência”, sendo o caso de um “crime de forma livre”.
Vale mencionar que também pode ocorrer no contexto do § 2º. – B a conduta dos infratores por meio de “grave ameaça”. Não havendo previsão expressa no tipo penal para o cúmulo material, a não ser para os casos de violência, crimes como os de “Ameaça” ou “Constrangimento Ilegal com grave ameaça ou redução da resistência por outros meios não violentos” ficam absorvidos como crimes – meio. No caso do “Constrangimento Ilegal” praticado por meio de violência, ainda assim, o delito do artigo 146, CP restará absorvido, pois que o constrangimento é conatural do óbice ou impedimento do culto. Restará eventual cúmulo material com a conduta violenta respectiva (v.g. lesões corporais).
Em havendo homicídio a questão se complica. Entendemos que a solução deve variar em cada situação de acordo com a amplitude do óbice ou impedimento mediante violência:
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a) Se uma pessoa determinada ou um grupo determinado é impedido mediante violência em sua manifestação ou prática religiosa, por meio da prática de homicídio e/ou tentativas de homicídio dessas pessoas, então haverá Crime de Homicídio Qualificado por Motivo Torpe (artigo 121, § 2º., I, CP) e o Crime de Racismo será absorvido, já que sua imputação em conjunto seria “bis in idem”. É que a motivação racista é justamente o “motivo torpe” que qualifica o crime, não podendo ser novamente utilizado para apenação. Neste caso se está trabalhando com a hipótese de que uma pessoa determinada ou todas as pessoas de um grupo determinado tenham sido vítimas de homicídio e/ou tentativas de homicídio por motivo religioso. 41
-
b) Se durante o emprego de violência para obstar ou impedir uma prática ou manifestação religiosa, ocorrer um ou mais homicídios ou tentativas de homicídio, mas houver várias outras pessoas atingidas em seu direito ao culto que não são vítimas dessa espécie delitiva (homicídio) há que responsabilizar os envolvidos em geral pelo crime de racismo (artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89). Identificados os autores dos homicídios e/ou tentativas de homicídio, estes deverão responder por homicídio qualificado por motivo torpe (artigo 121, § 2º., I, CP) em concurso material com o crime de racismo (artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89). É que nesses casos há vítimas de homicídio e/ou tentativa de homicídio ao lado de vítimas somente de crime de racismo. Também há autores de homicídio e /ou tentativa de homicídio que não deixaram de praticar autonomamente crimes de racismo contra as demais pessoas vitimizadas no episódio, não podendo isso ficar impune. Infelizmente, no caso de não se conseguir determinar a autoria dos homicídios e/ou tentativas de homicídio, todos os infratores responderão somente pelo crime de racismo (“in dubio pro reo”). Em havendo processo por homicídio o crime de racismo, que normalmente seria processado e julgado pelo Juiz Singular, será da competência do Tribunal do Júri devido à conexão e à “vis atractiva” do Júri (inteligência do artigo 78, I, CPP).
Questão interessante é saber se com o advento do § 2º.-B do artigo 20 da Lei de Racismo com a nova redação dada pela Lei 14.532/23, teria ocorrido ou não revogação tácita do crime de “Ultraje a Culto ou Impedimento ou Perturbação de ato a ele relativo” (artigo 208, CP).
A nosso ver ocorreu derrogação, ou seja, apenas uma revogação parcial do dispositivo do Código Penal, permanecendo este ainda válido para algumas condutas ali previstas que não foram abrangidas pela nova figura da Lei de Racismo.
A conduta de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa” continua incólume, desde que não haja óbice, impedimento ou emprego de violência contra manifestação ou prática religiosa. Também há que verificar se não se configura “Injúria – Preconceito”, conforme descrito no artigo 140, § 3º., CP.
Igualmente a conduta de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, mais uma vez, desde que não haja óbice, impedimento ou emprego de violência contra manifestações ou práticas religiosas. Seria o exemplo famoso do Pastor Evangélico que chutou na televisão uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ou da prática física da frase preconceituosa “chuta que é macumba” (sic), ou seja, quando um indivíduo, passando numa encruzilhada se depara com um trabalho de religiões espiritualistas, tais como as afrobrasileiras, e efetivamente chuta os produtos, quebra ou cospe em objetos, imagens etc. que estão ali na via pública. Observe-se que a imagem não é uma “manifestação ou prática religiosa”, mas um “objeto religioso”. Igualmente os componentes de um trabalho ou oferenda já foram utilizados numa manifestação ou prática religiosa, mas agora, deixados no local expostos, são apenas “objetos religiosos”, razão do afastamento do artigo 20, § 2º. – B da Lei de Racismo e emprego do artigo 208, CP.
Verifica-se que não houve revogação expressa do artigo 208, CP pela Lei 14.532/23. Nem também, nestes casos específicos, houve revogação tácita, já que não se tratou inteiramente da matéria descrita no dispositivo do Código Penal e nem o conteúdo da Lei 14.532/23 é incompatível com o artigo 208, CP (inteligência do artigo 2º., § 1º., da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileira – Decreto –Lei 4.657/42).
Agora, com relação à parte do artigo 208, CP que trata da conduta de “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso”, nos parece que a Lei 14.532/23, incluindo o § 2º.-B no artigo 20 da Lei 7.716/89 e erigindo em crime de racismo a ação de “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”, tratou inteiramente da matéria anteriormente regulada pelo Código Penal. Dessa forma, como se trata de lei posterior, houve revogação tácita parcial do artigo 208, CP nesse ponto (inteligência do artigo 2º., § 1º., da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileira – Decreto –Lei 4.657/42).
Já no que se refere aos “Crimes Contra o Respeito aos Mortos”, permanecem intactos os crimes de “Violação de Sepultura” (artigo 210, CP), “Destruição, Subtração ou Ocultação de Cadáver” (artigo 211, CP) e “Vilipêndio a Cadáver” (artigo 212, CP).
Quanto ao crime de “Impedimento ou Perturbação de Cerimônia Funerária” (artigo 209, CP), não se trata de discutir eventual revogação ou manutenção. Com relação a isso se pode afirmar que o artigo 209, CP não foi revogado expressa ou tacitamente pela Lei 14.532/23. No entanto, haverá que ter cautela na aplicação de cada dispositivo em casos concretos. Explicando:
Não são somente pessoas religiosas que fazem cerimônias funerárias e respeitam seus mortos e ancestrais. Isso pode fazer parte da prática até mesmo de um ateu ou agnóstico. E a ninguém é dado desrespeitar esse direito. Assim sendo, o artigo 209, CP continuará sendo aplicado para os casos de impedimentos ou perturbações de cerimônias funerárias que não tenham a conotação ou natureza de uma “manifestação ou prática religiosa”. Doutra banda, na maioria dos casos, essas cerimônias funerárias são induvidosamente “manifestações ou práticas religiosas” (v.g. católicas, budistas, maoístas, evangélicas, espíritas, muçulmanas, hinduístas, judaicas, umbandistas etc.). Doravante, com o advento do artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23, deverá haver aplicação deste dispositivo, afastando-se o artigo do Código Penal. Neste ponto, há claramente uma violação da proporcionalidade, tendo em vista que o impedimento ou perturbação de uma cerimônia funerária não religiosa não somente será um crime comum, como uma infração de menor potencial ofensivo. Por outro lado uma cerimônia funerária religiosa, similarmente representativa do respeito aos mortos, contará com a proteção especial da Lei de Racismo, constituindo-se em crime de suma gravidade. Não há motivo plausível para essa distinção. Ainda que se considere que o racismo ou preconceito estaria presente quando ofensivo a atos religiosos, não é correto concluir que não possa existir preconceito e discriminação com não – religiosos por esse motivo. Imagine-se que um grupo crente de qualquer credo pretenda atribular uma cerimônia funerária exatamente em repressão à sua natureza ateia ou ausência de elementos religiosos considerados importantes. O legislador deveria ter se lembrado das Cerimônias Funerárias ao redigir o novel § 2º. – B do artigo 20 da Lei 7.716/89. Porém, dada a legislação posta, não é possível aplicar as penas mais graves e a classificação como crime de racismo para atos de perturbação ou impedimento de cerimônias funerárias não religiosas, sob pena de infração ao Princípio da Legalidade. Fica, portanto, a sugestão de “lege ferenda” para o acréscimo das cerimônias funerárias no artigo 20, § 2º. – B da Lei de Racismo, revogando-se expressamente o dispositivo correlato do Código Penal. Nessa inclusão seria de boa cautela constar na redação que a abrangência se daria a quaisquer cerimônias funerárias, religiosas ou não, isso a fim de prevenir eventuais dúvidas ou debates desnecessários.
6.4. PEQUENO AJUSTE NO § 3º. DO ARTIGO 20 DA LEI 7.716/89
Dadas as inclusões dos §§ 2º.-A e 2º.-B no artigo 20 da Lei 7.716/89, a Lei 14.532/23 teve que promover um pequeno ajuste no § 3º., do mesmo dispositivo.
O artigo 20, § 3º., da Lei 7.716/89 sempre estabeleceu providências cautelares que o juiz pode tomar, ouvido o Ministério Público, ainda antes do Inquérito Policial, sob pena de desobediência do sujeito passivo da ordem. Essas providências, que não se alteraram em nada com a Lei 14.532/23, são as seguintes:
I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio;
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.
O problema é que essas medidas cautelares se referem aos casos dos crimes do artigo 20 praticados por meios de comunicação sociais, redes sociais ou publicações de qualquer natureza, razão pela qual o § 3º. iniciava com a seguinte dicção: “No caso do parágrafo anterior”. Na época não havia problema, já que o “parágrafo anterior” ao 3º. era realmente o 2º. Acontece que agora permeiam entre o § 2º. e o § 3º. os §§ 2º.-A e 2º. – B, de modo que o “parágrafo anterior” ao § 3º. passa a ser o § 2º. – B e não o § 2º. Como o § 3º. quer se referir ao § 2º. e não ao § 2º. – B, foi necessário ajustar o início do texto que agora diz: “No caso do § 2º. deste artigo” e prossegue com a mesma redação anterior intacta até enumerar as providências cautelares supra expostas.
Como se vê trata-se apenas de uma questão material de redação que em nada altera o sentido do texto legal.