8. A INJÚRIA PRECONCEITO DO CÓDIGO PENAL CONTINUA SENDO CONSIDERADA CRIME DE RACISMO APÓS A LEI 14.532/23?
Em sua redação anterior ao advento da Lei 14.532/23, o artigo 140, § 3º., CP abrangia injúrias com elementos referentes a “raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
No entanto, a Lei 14.532/23 promoveu uma cisão no trato da matéria. Cisão esta já devidamente criticada neste trabalho dada sua evidente violação à proporcionalidade.
Agora constituem crime de racismo, previsto no artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89 as injúrias marcadas por preconceitos de “raça, cor, etnia ou procedência nacional”. Ficaram relegadas à legislação comum (Código Penal) as injúrias relativas a preconceitos ligados a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”.
Outro detalhe importante: nesses transportes e cisões acabou se perdendo a injúria relativa a questões de “origem”. Este é um problema grave porque conduz a uma atipicidade relativa, não sendo possível a subsunção seja à “Injúria Racial” (artigo 2º. –A, da Lei de Racismo), seja à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP). Em nenhum dos dois tipos penais menciona a legislação a palavra “origem”. É verdade que no dispositivo da Lei de Racismo se faz referência à “procedência nacional”, mas essa expressão é muito mais restrita do que a palavra “origem”. A “procedência nacional” se refere à denominada “xenofobia” (aversão aos estrangeiros), de modo que atinge condutas praticadas contra pessoas originárias de outras nações, países ou Estados estrangeiros. Mas, a palavra “origem” abrangeria outras situações diversas do preconceito contra estrangeiros. Estefam afirma que “origem diz respeito à procedência da pessoa (p.ex. ‘favelado’, ‘baiano’)”. 88 Percebe-se que a palavra “origem” é muito mais abrangente do que “procedência nacional”. A palavra “origem” alcança qualquer referência à procedência da pessoa, inclusive a “nacional”. Quando se usa a expressão “procedência nacional” opera-se uma grande e contraproducente redução do conteúdo semântico. Descarta-se o gênero e se utiliza somente uma espécie. Assim sendo, o preconceito injurioso externado com relação à “origem” que não seja especificamente relativo à “procedência nacional” não pode mais se tipificar nem na “Injúria Preconceito” do Código Penal, nem na “Injúria Racial” da Lei de Racismo. Então o fato seria atípico? A resposta é afirmativa. Mas, é preciso observar que a atipicidade será relativa, pois haverá a tipificação normal do crime de “Injúria Simples” (artigo 140, CP). E mais uma vez temos uma atroz violação do “Princípio da Proporcionalidade” pela Lei 14.532/23.
É inadmissível a situação a que se chega com essa eliminação redacional da palavra “origem” em ambos os dispositivos estudados. Ofender uma pessoa por sua procedência nordestina, por exemplo, fato este infelizmente comum, torna-se doravante, uma “Injúria Simples” por força do “Princípio da Legalidade”. Outra situação absurda se dá com alguém que seja classificado como “apátrida”, ou seja, pessoas que não são consideradas nacionais por nenhum Estado conforme sua legislação. O Brasil reconhece a “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” (Nova York, 28.09.1954, vigor a partir de 06.06.1960), conforme Decreto 4.246/02, bem como regula a questão em normas internas como a Lei 13.445/17 e o Decreto 9.199/17 relativas à migração. Nitidamente todo apátrida é um hipossuficiente, uma verdadeira “minoria” no sentido mais amplo do termo (quantitativo e qualitativo). No entanto, como somente se prevê agora a devida proteção contra preconceito de “procedência nacional” e não mais a fórmula genérica da palavra “origem”, esses desamparados apátridas, acaso injuriados em razão de sua condição, somente contarão com a proteção penal da “Injúria Simples”. Para ter uma noção da absurdidade do esquecimento dessa categoria de pessoas, pesquise-se sobre a população “Rohingya” em Miamar, considerada a maior população apátrida do mundo com mais de um milhão de pessoas submetidas a perseguição e violência sistemáticas nos dias de hoje. 89 Em todos esses casos e muitos outros a inconstitucionalidade por insuficiência protetiva da eliminação da menção da palavra “origem” nos dispositivos é escancarada. E mais, no caso específico dos “apátridas” também é possível reconhecer uma clara inconvencionalidade, já que a Convenção Internacional respectiva acima mencionada, internalizada pelo Brasil, estabelece como norma em seu artigo 3º., a “não discriminação”. Ora a desproteção ou a proteção insuficiente ocasionada pela alteração promovida pela Lei 14.532/23, acaba se convolando em uma nítida “discriminação negativa” inadmissível.
Na realidade, observando o disposto no artigo 1º. da Lei 7.716/89 percebe-se que toda a Lei de Racismo sofre dessa deficiência quanto à menção da questão genérica da origem, reduzindo seu alcance à “procedência nacional”, o que deveria ser objeto de revisão urgente. Como já dissemos, o ideal seria que a legislação se referisse a qualquer forma de preconceito, discriminação ou segregação de maneira genérica, apresentando-se como uma norma de “interpretação progressiva”.
Embora seja uma saída hermenêutica elaborada pela jurisprudência do STJ e disseminada por parte da doutrina, não nos convence semanticamente a divisão do termo “procedência nacional” em estrangeira e interna, de modo a alcançar, na segunda modalidade citada, as procedências estaduais. 90 Além de evidente manobra de tentativa de conserto da dicção legal deficitária, violando com isso a legalidade, ainda assim ficaria muito difícil, por maior malabarismo que se faça, ajustar a situação a questões de procedência social, por exemplo, tais como ofensas usando a condição de “favelado”, “pobre” etc. O correto seria a manutenção da palavra “origem”, o resto não passa de gambiarra jurídica.
Retornando à cisão entre os crimes do Código Penal e da Lei de Racismo, é preciso saber se a “Injúria Preconceito” prevista no artigo 140, § 3º., CP, abrangendo o emprego de elementos religiosos, etários e capacitistas prossegue sendo considerada como uma espécie de crime de racismo, embora descrita no Código Penal.
Fato é que o STJ e o STF firmaram, antes do advento da Lei 14.532/23 que o crime de “Injúria Preconceito” seria uma modalidade de crime de racismo abrigada na legislação codificada (STJ, AgRg no AREsp 686965/DF, 6ª. Turma, j. 18.08.2015, DJe31.08.2015; STF, HC 154.248/DF, Rel. Min. Edson Fachin). Sem entrar novamente no mérito da alteração legislativa por via jurisprudencial, com violação flagrante da Separação de Poderes e do Princípio da Legalidade, fato é que até então todos os casos de preconceito injurioso eram considerados pelas Cortes Superiores Brasileiras como crimes de racismo. Embora não se tratassem de decisões vinculantes, já que derivadas da jurisprudência e não da lei, fato é que mesmo quando não se aplicasse a orientação do STJ e do STF, acaso a controvérsia chegasse a essas esferas, seria reconhecida qualquer injúria preconceituosa como crime de racismo. Esse era o quadro até então existente sob o prisma prático.
A Lei 14.532/23 positivou o então entendimento jurisprudencial das Cortes Superiores Brasileiras quanto às injúrias referentes “raça, cor, etnia ou procedência nacional”, com a criação do crime de racismo do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89. Sobre essa questão não existe mais qualquer discussão ou possibilidade de desconsideração da norma posta.
Porém, como já visto, o legislador, além de olvidar-se do preconceito de “origem”, que ficou realmente sem proteção específica (artigo 140, “caput”, CP), deixou na vala comum do Código Penal a “Injúria Preconceito” relativa a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência” (artigo 140, § 3º., CP).
Quanto ao preconceito de “origem”, não se tratando de “procedência nacional” e tipificando-se doravante no “caput” do artigo 140, CP, não há como se falar em crime de racismo, pois que não se trata de caso abrangido pela Lei 7.716/89 e também nunca houve reconhecimento, ainda que jurisprudencial por vias tortas, de que a “Injúria Simples”, mesmo movida por algum preconceito, fosse equiparável ao racismo.
Já quanto ao caso do preconceito religioso, etário e capacitista, previsto como qualificadora da injúria no artigo 140, § 3º., CP existem as orientações jurisprudenciais do STJ e do STF acima mencionadas.
Assim sendo, no que diz respeito ao artigo 140, § 3º., CP, surgirão certamente dois entendimentos:
a) O artigo 140, § 3º., CP, após as alterações da Lei 14.532/23, deixou de ser uma modalidade de crime de racismo, mesmo diante das posições jurisprudenciais do STJ e do STF. Isso porque tais decisões foram tomadas num contexto em que não havia ainda o transplante efetivo da “Injúria Racial” para a Lei 7.716/89. Com a mudança topográfica parcial do conteúdo do artigo 140, § 3º., CP, somente serão considerados como crimes de racismo os casos elencados no artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89, voltando o artigo 140, § 3º., a ser um simples crime contra a honra. Dessa forma, a injúria qualificada do § 3º. do artigo 140, CP não é inafiançável e nem imprescritível, seguindo também como um crime de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, nos termos do artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. 91
Assumida essa posição é preciso ter em mente que quaisquer pessoas que estejam respondendo a inquéritos ou processos criminais por Injúria Preconceito religiosa, etária ou capacitista, com tratamento de crime de racismo, não poderão sofrer mais essa espécie de incriminação, mas continuarão respondendo por crime comum contra a honra de forma qualificada. A contagem de prescrição também deverá ser revista, pois que não há imprescritibilidade. E se o caso foi tratado como de ação penal pública incondicionada e passado o prazo decadencial de representação, ter-se-á operado a extinção de punibilidade pela decadência. A Lei 14.532/89, nessa perspectiva, seria “novatio legis in mellius” para os perpetradores de preconceito religioso, etário e capacitista, devendo, portanto, retroagir em seu benefício.
b) Independentemente do advento da Lei 14.532/23 e da cisão dos dispositivos legais, a “Injúria Preconceito” prevista no artigo 140, § 3º., CP, embora com pena diversa do artigo 2º.-A da Lei 7.716/89, conserva sua característica de crime de racismo, mantendo-se o reconhecimento de seu caráter imprescritível e inafiançável. A ação penal deve ser pública incondicionada, como nos demais crimes de racismo e não sujeita a prazos decadenciais. Isso tudo porque embora tenha havido a cisão do tratamento, o crime do artigo 140, § 3º., CP continua com as mesmas características quanto aos casos de idade, religião e capacitismo, que embasaram as decisões do STF e do STJ, não havendo motivo material para qualquer forma de “distinguishing” relativo aos precedentes jurisprudenciais enfocados. A mudança operada pela Lei 14.532/23 não teve o condão de alterar o conteúdo ou a natureza da infração penal do artigo 140, § 3º., CP, ou seja, não a atingiu materialmente, mas apenas formalmente, com relação à topografia de parte da norma, que migrou para a Lei 7.716/89. Dessa forma nada se alteraria a não ser o “quantum” de pena previsto no preceito secundário. Obviamente que aqueles preconceitos praticados antes e que depois migraram para a Lei de Racismo, com previsão de pena maior, não sofreriam o incremento penal porque este não poderia retroagir enquanto “novatio legis in pejus”. Entretanto, a condição de crime de racismo do artigo 140, § 3º., CP continuaria intocada no aspecto jurisprudencial e prático. Salvo se em algum momento o STJ e o STF alterarem seu entendimento sobre o tema, o que não nos parece adequado diante do fato de que a mudança levada a termo pela Lei 14.532/23 foi meramente formal e não material, de modo a não justificar qualquer mudança relativa aos precedentes julgados.
Seria bom lembrar (e seria bom que lembrassem também os mencionados Tribunais Superiores) o fato aduzido por Sannini e Gilaberte de que o STF “enxerga no termo racismo, constitucionalmente empregado, algo que vai muito além das questões de raça, consoante o exposto no HC 82.424 (Caso Ellwanger, 2003)”. 92 Como bem destacam os autores, de acordo com o entendimento do STF, “a palavra ‘racismo”, contextualizada na Constituição Federal de 1988, deve ser entendida como “um racismo social, que relega certas categorias de pessoas a uma situação de ‘semicidadãs’”. 93 Nesse passo não há elemento diferencial entre a discriminação derivada do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 e aquela oriunda do artigo 140, § 3º., CP, tanto é fato que emanam da mesma fonte (antigo artigo 140, § 3º., CP). Se é que se pode esperar uma sistemática jurisprudencial ou coerência decisória, há que reconhecer que a Lei 14.532/23 em nada alterou o quadro que levou o STF e também o STJ a essas posições, não se justificando qualquer mudança interpretativa.
A condição de crime de racismo, com consequentes inafiançabilidade e imprescritibilidade do artigo 140, § 3º., CP prosseguiria na forma de um posicionamento jurisprudencial praticamente incontornável, enquanto que a “Injúria Racial” prevista agora no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 passaria de um mero entendimento jurisprudencial para uma previsão expressa da lei em consonância com o preceito constitucional do artigo 5º., XLII, CF.
Embora, como já exposto neste trabalho, sustentemos firme dissenso com relação a alterações legislativas procedidas à fórceps pela via jurisprudencial, especialmente na seara penal, 94 o reconhecimento da figura do artigo 140, § 3º., CP como racismo é fato consumado, independente do seu mérito. As decisões são não vinculantes, mas, como já se disse, na prática, chegando o caso às Cortes Superiores, prevalecerá o entendimento delas. Dessa forma, adotamos como mais correta a posição exposta no item “b” acima, a qual, a nosso ver, deveria prevalecer. Mesmo porque, ainda que por caminhos tortuosos, seria uma forma de diminuir a violação à proporcionalidade produzida pela Lei 14.532/23 ao deixar parcela da “Injúria Preconceito” na vala comum do Código Penal. Acrescente-se, por oportuno, com as mesmas ressalvas e dissenso relativos às violações da Separação de Poderes e do Princípio da Legalidade, que também não se vê motivação alguma para que, com o advento da Lei 14.532/23 se afaste a condição reconhecida pelo STF de crime de racismo, nos casos de condutas previstas na Lei 7.716/89 por preconceito, discriminação ou segregação homotransfóbica. Embora a Lei 14.532/23 tenha perdido a oportunidade de tratar legalmente da questão, dando fim a uma analogia “in mallam partem” empregada na área penal por via jurisprudencial espúria, não se pode dizer que o surgimento dessa nova legislação tenha alterado em nada as razões de decidir do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal. Discordar do ativismo judicial vilipendiador da legalidade e da constitucionalidade, não muda o fato de que essa decisão foi proferida na prática e não sofre qualquer espécie de influência da Lei 14.532/23.
Quanto à questão de ser o crime de ação penal pública incondicionada, afastando-se o prazo decadencial e a necessidade de representação do ofendido, sabe-se que também pode haver discordância, pois há quem entenda que isso violaria o disposto no artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. No entanto, não nos é compreensível como poderia um crime imprescritível ter a punibilidade extinta em 6 (seis) meses por decadência. Não obstante, é preciso ter em mente que, mesmo com a adoção da posição do item “b” essa discussão ainda restará indefinida. Toda essa celeuma desnecessária se dá primeiro por uma ingerência indevida do Judiciário na seara legal e depois por uma atabalhoada alteração legislativa feita pela Lei 14.532/23.