9. NORMA PROCESSUAL PENAL RELATIVA À ASSISTÊNCIA JURÍDICA DAS VÍTIMAS DE RACISMO
A Lei 14.532/23, em meio a vários dispositivos de caráter penal, apresenta uma normativa de natureza processual penal e civil.
Trata-se do artigo 20 – D incluído na Lei 7.716/89, mandando que em todos os atos processuais, civis ou criminais, a vítima dos crimes de racismo deva ser acompanhada de advogado ou defensor público. Note-se que embora a Lei 14.532/23 trate a maior parte do tempo dos crimes de “Injúria Racial” e de “Apologia ao Racismo”, o artigo 20 – D ora enfocado contém uma determinação que vale não somente para esses crimes citados, mas para todos os crimes de racismo previstos na Lei 7.716/89.
Vemos nesse dispositivo uma excelente manifestação dos Direitos Humanos aplicados à vítima, no sentido de assegurar-lhe um Processo Penal e Civil justo. 95
De acordo com o artigo 20 – D em estudo é possível concluir que a própria vítima poderá, se tiver condições financeiras, constituir advogado ou, em caso de hipossuficiência, receber advogado dativo de convênio com a OAB ou Defensor Público para sua assistência. Ainda que a vítima tenha condições de contratar advogado, mas não o faça, deverá, obrigatoriamente, ser-lhe nomeado defensor público ou advogado dativo conveniado. A redação do dispositivo é imperativa (“deverá”) e não facultativa.
Esse defensor obviamente poderá e deverá ser habilitado no Processo Penal como Assistente da Acusação (artigos 268 – 273, CPP).
No Processo Civil a vítima naturalmente já teria de valer-se de advogado constituído, dativo ou Defensor Público para postular em juízo, razão pela qual a norma enfocada nos parece, SMJ., supérflua.
Um detalhe que nos parece relevante. No Processo Civil não há problema, porque realmente sem o advogado ou defensor não seria possível sequer ingressar com a ação. Mas, no Processo Penal, em se tratando de crimes de racismo, que são de ação penal pública incondicionada, o titular privativo da ação penal é o Ministério Público (artigo 129, I, CF). Então é possível que uma ação penal por crime de racismo venha a ser instaurada sendo fato que a vítima não seja assistida por advogado ou Defensor Público em um, algum ou mesmo todos os seus atos processuais. A indagação que precisa ser feita é a seguinte:
A falta de nomeação de advogado ou Defensor Público à vítima de crime de racismo enseja nulidade do Processo Penal respectivo?
Em tese, poder-se-ia falar em nulidade nos termos do artigo 564, IV “por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”. Contudo, não somente a razoabilidade e a instrumentalidade das formas como também as regras legais das nulidades no Código de Processo Penal, indicam para o seu não reconhecimento.
Em primeiro lugar a determinação contida no artigo 20 - D da Lei de Racismo é realizada em proveito da vítima de racismo. Não seria razoável que uma formalidade não cumprida em prol da vítima viesse a prejudicar ainda mais os seus interesses. Sim, porque o reconhecimento da nulidade de um Processo Criminal beneficia o réu e não a vítima, beneficia o racista e não a pessoa discriminada.
Além disso, o artigo 563, CPP, em positivação do “Princípio da Instrumentalidade das Formas”, estabelece que uma nulidade somente será reconhecida e declarada se houver efetivo prejuízo para a acusação ou para a defesa. É evidente que a falta de defensor à vítima não prejudica de forma alguma a defesa e também não atrapalha em nada o trabalho do acusador público (no caso, o Ministério Público). Normalmente não haverá influência na apuração dos fatos, da “verdade substancial” ou na “decisão da causa”, de modo que se afastaria a nulidade de acordo com o artigo 566, CPP, também relativo ao “Princípio da Instrumentalidade das Formas”.
Mas, realmente o principal motivo para não haver nulidade na falta dessa formalidade é o fato de que a vítima não seria em nada beneficiada por isso. Ao reverso, sofreria sobrevitimização ou vitimização secundária. Já teria sido prejudicada pela falta de assistência jurídica no processo criminal e agora veria tal processo anulado, em especial quando houvesse condenação do réu.
Mas e se o réu alegar essa nulidade?
A resposta é que a nulidade não poderá ser acatada, uma vez que se trata de formalidade cuja observância só interessa à parte contrária (artigo 565, “in fine”, CPP).
E no caso de haver absolvição do réu? Será que mesmo assim a nulidade não poderia ser arguida pela vítima e/ou Ministério Público?
A resposta também é não. Isso porque quem deu causa a nulidade não pode arguir sua ocorrência em benefício próprio, nos termos do artigo 565, CPP, parte inicial. O Ministério Público, enquanto fiscal da lei deveria ter zelado pela presença de advogado da vítima ou nomeação de Defensor Público. Sua desídia no cumprimento de suas funções é que deu causa a eventual nulidade, razão pela qual não poderia jamais alegá-la e ter seu pleito acatado. Quanto à vítima, também lhe cabia apresentar advogado constituído ou requerer seus direitos no decorrer do andamento processual. Não o fazendo deu causa àquela falha. Mesmo que se considere que a vítima não tem obrigação legal de ter ciência de seus direitos e deveria ser tutelada pelos agentes públicos envolvidos (Juiz e Promotor), fato é que também não agiu e, mais que isso, a nulidade nessa situação somente pode ser considerada como “relativa” e não “absoluta”, de modo que a falta de arguição no primeiro momento propício convalida o Processo em seus atos.
Assim sendo a falha dos agentes públicos, especialmente do Juiz de Direito em nomear defensor ou assegurar-se de que a vítima é assistida por advogado nos casos de crimes de racismo, deve ficar para a solução na seara administrativa com a responsabilização disciplinar de magistrados e promotores, bem como, eventualmente, de Defensores Públicos omissos.
10. CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foi analisada a Lei 14.532/23 que alterou a Lei 7.716/89 (Lei de Racismo), sob seus aspectos penais, processuais, constitucionais e convencionais.
Inicialmente foi exposto um breve histórico do tratamento jurisprudencial e legal conferido ao longo do tempo para a chamada “Injúria Racial, Racista ou Preconceito”, objetivando situar o leitor quanto ao desenvolvimento cronológico do tema. Constatou-se que a “Injúria Racial” foi inicialmente inserida como qualificadora da Injúria no Código Penal, sofrendo algumas alterações ao longo do tempo quanto ao seu conteúdo e ação penal. Uma virada interpretativa ocorre com decisões jurisprudenciais do STJ e do STF apontando a “Injúria Racial”, ainda que prevista na legislação codificada e não na lei especial de racismo, como uma modalidade de crime de racismo com todas as suas consequências. Finalmente, vem a lume a Lei 14.532/23 que positiva esse entendimento jurisprudencial.
Procedemos introdutoriamente a um esclarecimento terminológico a respeito das distinções entre os conceitos de preconceito, discriminação e segregação, valendo-nos do escólio de Sannini e Gilaberte, 96 chegando à conclusão de que em geral a conformação do preconceito ainda se dá como um sentimento, um pensamento ou postura interna, de modo que em cotejo com os tipos penais previstos na Lei de Racismo, trata-se de fase de cogitação do “iter criminis”. Os tipos penais descritos na Lei 7.716/89 descrevem condutas de discriminação e segregação em suas variadas formas de expressão externa.
A Lei 14.532/23 teve a virtude de regularizar, ao menos parcialmente, uma situação de violação do “Princípio da Legalidade” e da “Separação dos Poderes”, criada por um ativismo judicial agressivo do STJ e do STF.
Com a positivação da “Injúria Racial” no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89, o que era uma espúria atividade jurisprudencial se torna uma previsão normativa obediente ao “Princípio da Legalidade”.
Não obstante essa virtude, a legislação em estudo comete o erro de promover uma cisão no tratamento dessa espécie de injúria preconceituosa, deixando no Código Penal questões relativas à religião, idade e deficiência (artigo 140, § 3º., CP). A partir daí várias lesões ao “Princípio da Proporcionalidade” são constatáveis.
Na verdade a melhor opção para o tratamento da matéria seria a previsão de uma legislação que se referisse a atitudes preconceituosas, discriminatórias negativas e segregatórias em geral, na forma dos tipos penais já previstos na Lei 7.716/89. A enumeração de espécies fechadas de racismo é contraproducente e não propicia uma lei à qual se possa aplicar uma chamada “interpretação progressiva”, entendida como aquela “que busca amoldar a lei à realidade atual. Evita a constante reforma legislativa e se destina a acompanhar as mudanças da sociedade”. 97 A omissão do legislador na Lei 14.532/23 e sua opção pela continuidade de enumeração taxativa de espécies de racismo impediu que outra questão que também hoje se apresenta como aberrante construção criminal jurisprudencial por analogia “in mallam partem”, prossiga produzindo nefastos efeitos sobre a segurança jurídica e a legalidade, qual seja, a questão do preconceito homotransfóbico.
Por outro lado, conclui-se que a transformação da “Injúria Preconceito” em crime de racismo é desproporcional e não tem a menor comparação com as demais figuras previstas na Lei 7.716/89. A antiga distinção entre “Injúria Preconceito” como crime comum contra a honra, embora qualificado, e os crimes de racismo era adequada e proporcional. Essa transposição feita inicialmente pela via ativista judicial radical e em seguida pelo legislador não é movida pela cientificidade jurídica, mas tão somente por apelos midiáticos e submissão vergonhosa ao politicamente correto. Por outro lado, enquanto o legislador se preocupa em agradar agendas identitárias politicamente corretas, se olvida de que precisaria realmente fazer uma reforma na Lei de Racismo, adequando as penas à gravidade dos ilícitos. As punições previstas na Lei 7.716/89, a nosso ver, chegam a ser ridículas diante de crimes tão bárbaros ali descritos. A visão do legislador e da sociedade em geral acaba sendo obnubilada por um véu de futilidades que não lhes permite enxergar o que realmente importa. Seria necessário um aumento geral das penas da Lei de Racismo, visando evitar um mal de insuficiência protetiva que a nosso ver contamina a referida legislação.
A previsão do chamado “Racismo Recreativo” deve ser utilizada “cum grano salis”, apenas em casos patentes nos quais fique muito claro que o agente se utilizou falsamente de uma brincadeira ou contexto de divertimento para, na verdade, praticar uma conduta racista. No entanto, realmente os temores dos humoristas e artistas em geral não deixa de ter boas razões, isso porque nada garante que essa interpretação e aplicação sóbria consiga conter a sanha punitiva e autoritária do politicamente correto que pressiona e influencia a mídia, a polícia, o ministério público, o judiciário e até mesmo empresas, isso sem falar em seu influxo deletério e belicoso na população em geral.
Quanto à questão das imunidades penais nos crimes contra a honra, conforme dispõe o artigo 142, CP, constata-se possível dissenso doutrinário – jurisprudencial sobre o tema. No entanto, a nosso ver, seria muito difícil e mesmo inadequado reconhecer imunidade penal para casos de “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) ou “Injúria Racial” (artigo 2º. – A da Lei 7.716/89), tendo em vista a gravidade dessas ofensas e sua amplitude lesiva que ultrapassa o dano à honra para adentrar em violações mais gravosas a “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” (inteligência do artigo 3º., IV, CF).
O denominado “Racismo Funcional” é previsto agora como causa especial de aumento de pena adstrita somente aos crimes dos artigos 2º. – A e 20 da Lei 7.716/89. Para configuração da majorante será necessário que o autor do ilícito atue em razão da função e não fora dela. O conceito de “funcionário público” é dado na forma de uma “norma remetida” ao artigo 327, CP, que apresenta uma definição geral de “funcionário público” para fins penais. Essa definição legal é mais abrangente do que a encontrável no Direito Administrativo, mais se aproximando do conceito de “agente público”. Justifica-se plenamente a majorante, tendo em vista a obrigação legal dos agentes públicos de combater e reprimir o racismo, jamais praticá-lo ou disseminá-lo de qualquer forma. Aliás, fica uma dúvida: qual foi a razão pela qual o legislador restringiu esse aumento somente a duas figuras e não a todos os crimes de racismo, o que nos pareceria mais coerente e justo? Além disso, também não pode ser aplicada a majorante aos casos de “Injúria Preconceito” previstos no artigo 140, § 3º., CP, o que novamente viola a proporcionalidade, já que o aumento é aplicável expressamente somente aos artigos 2º. – A e 20da Lei de Racismo.
Também se chega à conclusão de que essa causa de aumento de pena funcional não se aplica ao particular em nenhuma circunstância, mesmo no caso de concurso de agentes com funcionário público. Isso porque a condição de funcionário público é “pessoal” e, portanto, não se transmite, já que não é elemento do tipo seja do artigo 2º. – A ou do artigo 20 da Lei de Racismo (inteligência dos artigos 29 e 30, CP).
Há previsão de qualificadora para o artigo 20 da Lei 7.716/89 quando o crime for praticado por intermédio de meios de comunicação social, publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza. A novidade é a menção expressa às redes sociais e à internet. No mais, essa qualificadora já existia. Na realidade, mesmo a menção às redes sociais e internet somente tem o condão de explicitar o que já era reconhecível como qualificadora, seja quando a lei falava em “meios de comunicação social” ou mesmo “publicações de qualquer natureza”. Assim sendo, embora possa haver discussão, entende-se que a qualificadora tem poder retroativo, já que se trata de “continuidade normativo típica neutra” e não de “novatio legis in pejus”. Outras questões foram debatidas, tais como o uso de vestimentas e tatuagens, concluindo-se pela tipicidade de tais condutas de acordo com cada caso concreto, aplicando-se o “caput” do artigo 20 ou a sua forma qualificada, além do § 1º. do mesmo dispositivo.
Também se qualifica o crime de “Apologia ao Racismo” acaso perpetrado em contexto de eventos públicos esportivos, religiosos, artísticos ou culturais. A qualificação se justifica pela presença de muitas pessoas nesses eventos, razão pela qual a apologia espúria ganha potencialidade. Embora haja menção a eventos religiosos, é preciso ter em mente que a normativa em estudo não pode conflitar com a liberdade religiosa de forma a coartá-la.
Nessa qualificadora é prevista uma pena privativa de liberdade e uma pena restritiva de direitos. Devido à redação sofrível do dispositivo, vislumbram-se dúvidas quanto à sua aplicação. Nosso entendimento é o de que as penas devem ser aplicadas obrigatoriamente em conjunto, sendo o tempo de impedimento de acesso aos eventos fixo em 3 (três) anos. A individualização se daria então somente quanto à pena privativa de liberdade que tem intervalo mínimo e máximo. Foram apresentadas, além dessa interpretação, mais duas possíveis. Nenhuma é ideal, havendo sempre algum problema de individualização da pena e/ou conflito com a redação legal, isso tendo em vista a má redação do dispositivo, conforme já mencionado.
O emprego de violência, óbice ou impedimento contra manifestações ou práticas religiosas é previsto como uma modalidade equiparada penalmente ao artigo 20 da Lei 7.716/89. Isso reforça o fato de que a liberdade religiosa não pode ser objeto de repressão por instrumentalização do artigo 20, § 2º. – A. Também demonstra que a injúria religiosa foi relegada à vala comum do Código Penal, mas atos de violência, óbice ou impedimento às manifestações ou práticas religiosas são catalogados como crimes de racismo. Fica uma lacuna quanto à proteção de outras práticas “culturais” não religiosas.
No caso de emprego de violência, que a nosso ver pode ser contra pessoas ou coisas, a lei impõe o cúmulo material de delitos. Foram ainda analisados casos em que ocorra homicídio ou crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos. Em relação à contravenção penal de “Vias de Fato” (artigo 21, LCP), entende-se que deverá ser absorvida como ilícito – meio, diversamente das lesões corporais, danos etc. Ademais, a elementar do emprego de violência não é obrigatória, podendo ocorrer óbice ou impedimento por outros meios. O crime é de forma livre.
A alteração promovida pela Lei 14.532/23 na redação do § 3º., do artigo 20 da Lei 7.716/89 é meramente de natureza redacional material, ajustando a dicção legal devido à inclusão de dois novos parágrafos após o § 2º. já existente. Por isso o § 3º. se remete expressamente hoje ao § 2º. e não mais ao “parágrafo anterior” como constava na redação antiga. Quanto às cautelares passíveis de serem aplicadas em nada se alteraram com o advento da Lei 14.532/23.
A norma geral de hermenêutica criada com o artigo 20 – C da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23, além de socialmente contraproducente e embasada em ideologias identitárias radicais, sofre do mal de inconstitucionalidade por diversos motivos expostos ao longo do trabalho.
Muito embora a Lei 14.532/23 tenha promovido uma cisão entre a “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) e a “Injúria Racial” (artigo 20. – A da Lei 7.716/89) com previsão de penas diferentes, violando diretamente à proporcionalidade, entende-se, diante de possível dissenso doutrinário – jurisprudencial, que o crime previsto no artigo 140, § 3º., CP continua mantendo sua característica de “crime de racismo”, com base nas decisões pretéritas do STJ e do STF. O advento da Lei 14.532/23 não altera o quadro fático e nem jurídico de maneira a justificar uma mudança de entendimento. Ao menos assim, inobstante nossas fortes ressalvas ao ativismo judicial violador da legalidade, abranda-se um pouco o vilipêndio praticado contra a proporcionalidade. As penas serão diversas, o que é incorreto, mas ao menos o crime do Código Penal poderá seguir como um delito de racismo imprescritível e inafiançável. Haverá ainda discussão acerca da natureza da ação penal pública condicionada, conforme disposto no artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. No entanto, a nosso ver não há coerência na existência de um crime grave de racismo imprescritível e inafiançável que, concomitantemente, pode ter sua punibilidade extinta em meros 6 (seis) meses de prazo decadencial. Assim sendo, a nosso ver, a partir das decisões do STJ e do STF, que se mantém atualmente inalteradas, o crime do artigo 140, § 3º., CP é de ação penal pública incondicionada.
Outra questão relevante foi constatada. Na transposição do artigo do Código Penal para a Lei de Racismo, se perdeu a palavra “origem”, que acabou substituída pela expressão “procedência nacional”. Refletindo sobre a questão, chegou-se à conclusão que houve uma redução indevida do alcance da norma. “Origem” diz respeito a qualquer espécie de procedência (nacional, estadual, de classe etc.). Já “procedência nacional” é apenas uma das espécies do gênero “origem”. A qualificação da procedência como “nacional” reduz o alcance da norma e relega à mera “Injúria Simples” (artigo 140, “caput”, CP) ofensas a pessoas em razão da unidade federativa originária, da cidade, da classe social (v.g. nordestino, cearense, cabeça – chata, favelado etc.). Há evidente inconstitucionalidade por proteção insuficiente. Ainda pior, deixa-se a descoberto os “apátridas”, que também ficarão com tutela deficiente mediante o único recurso à “Injúria Simples”. Neste último caso, aponta-se, além da inconstitucionalidade por insuficiência protetiva, a inconvencionalidade por infração ao artigo 3º., da “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” (Nova York, 28.09.1954, vigor a partir de 06.06.1960), de que o Brasil é signatário por via do Decreto 4.246/02. Ainda sobre o tema importa destacar que o artigo 1º. da Lei de Racismo sofre da mesma omissão quanto à palavra “origem”, somente mencionando uma espécie de “procedência”, a “nacional”, de modo a transmitir a falha para toda a legislação. Esse, aliás, deve ter sido o motivo da perda da palavra “origem” durante o transporte do Código Penal para a Lei de Racismo. Propõe-se uma revisão urgente sobre esse ponto, mesmo porque em outros dispositivos do diploma usa-se a palavra “origem”, mas também qualificada por “nacional”, mantendo a redução semântica indesejável (v.g. artigo 4º., § 1º., “in fine” da Lei 7.716/89).
A posição jurisprudencial do STJ, abrigada por parte da doutrina de dividir a “procedência nacional” em estrangeira e interna não nos convence, pois é violadora da legalidade ao distorcer semanticamente o sentido de “procedência nacional” e “origem nacional”, além de em nada resolver casos de preconceito por outras “origens”, tais como a sócio – econômica (“favelado”, “pobre”, “sem teto” etc.).
Finalmente, saliente-se que a Lei 14.532/23 apresenta várias normativas inovadoras de caráter penal e, em meio a elas, um dispositivo de natureza processual penal e civil, consistente no artigo 20 – D acrescido à Lei de Racismo. Ali se estabelece a obrigatoriedade de assistência jurídica à vítima de crimes de racismo (por advogado ou Defensor Público) em todos os atos de processos civis ou criminais. Embora a norma seja redigida de forma imperativa, entende-se que a omissão da presença de defensor à vítima não levará a nulidade, tendo em conta que normalmente o reconhecimento desta irá prejudicar mais a vítima do que o réu. A omissão no cumprimento da norma legal em destaque deve conduzir à responsabilização administrativa de magistrados e membros do Ministério Público encarregados de fiscalizar e cumprir a lei, bem como, eventualmente, de Defensores Públicos relapsos.
Esperamos que as alterações promovidas pela Lei 14.532/23 na Lei 7.716/89, inobstante suas lacunas e equívocos, venham a ser interpretadas e aplicadas da melhor forma possível, visando sempre o combate a qualquer espécie de racismo e à pacificação social que se produz pela reciprocidade do respeito entre as pessoas, sejam elas de que raça, cor, etnia, religião, origem ou procedência nacional for.