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A problemática do infanticídio enquanto tipo autônomo

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3 CONCEITUAÇÕES

O crime de infanticídio está previsto no art. 123 do Código Penal da seguinte forma: "Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto, ou logo após: Pena – detenção de 2 a 6 anos".

Este delito é composto pelos seguintes elementos: matar o próprio filho; durante o parto ou logo após; sob influência do estado puerperal. Excluído algum dos dados constantes nessa figura típica, esta deixará de existir, passando a ser outro crime.

Além da definição de infanticídio em sentido lato e em sentido estrito, é necessário que se estabeleça, neste momento, uma conceituação dos elementos que estão na formação do tipo penal supra, bem como de outros conceitos normativos correlacionados a este delito.

3.1 Conceito de Infanticídio

A palavra infanticídio originou-se da fusão de dois radicais latinos: infans (criança) e caedere (matar), podendo ser definida, lato sensu, como dar morte a uma criança.

Entretanto, para o Direito brasileiro, infanticídio não é a morte de uma criança qualquer. Para se dar uma definição de infanticídio compatível com o ordenamento jurídico pátrio (stricto sensu), é necessário que se leve em consideração cada elemento formador do tipo contido no art. 123 do CP brasileiro.

Neste sentido, de acordo com as disposições contidas no art. 123 do Código Penal, "podemos definir o infanticídio como a ocisão da vida do ser nascente ou do neonato, realizada pela própria mãe, que se encontra sob a influência do estado puerperal". [23]

3.2 Puerpério

O termo puerpério vem da junção de puer (criança) com parere (parir), significando dar à luz uma criança.

Conforme os autores Santos, Krymchantowski e Duque, [24] "o puerpério se inicia com a eliminação da placenta e termina com o reinício dos ciclos menstruais". Já no entendimento de Roberson Guimarães, [25] "puerpério é o período de tempo entre a dequitação placentária e o retorno do organismo materno às condições pré-gravídicas, tendo duração média de 6 semanas".

Como se vê, a obstetrícia médica não possui uma posição unânime sobre a duração exata do puerpério, havendo uma enorme variedade de opiniões a respeito do assunto. Dependendo do autor que se queira seguir, encontrar-se-á médicos afirmando que o puerpério dura no máximo oito dias, como opiniões de médicos dizendo que ele pode durar até oito semanas [26].

Entretanto, o que não pode haver é confusão entre puerpério e estado puerperal. Conforme a definição de Hélio Gomes, puerpério é um quadro fisiológico, comum a todas as mulheres que dão à luz, com começo, meio e fim determinados, capaz, em alguns casos, de causar alterações do psiquismo materno, de duração e gravidade variados, porém de fácil detecção, via diagnóstico médico, clínico e/ou laboratorial. [27]

Já estado puerperal seria uma situação de alteração e transtorno mentais, advinda das dores físicas do parto e capaz de alterar temporariamente o psiquismo da mulher previamente sã a ponto de levá-la a agir instintiva e violentamente contra o próprio filho durante o seu nascimento ou logo após o parto.

3.3 Parto

Hélio Gomes [28] entende o parto como sendo o "conjunto de processos mecânicos, fisiológicos e psicológicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado a termo ou já viável".

Sobre o momento do parto, Genival Veloso de França [29] aduz que "dá-se o seu começo, para os obstetras, com as contrações uterinas, e, para nós, com a rotura da bolsa, e termina com o deslocamento e o expelimento da placenta".

O diagnóstico do parto e do puerpério é de suma importância para elucidar alegações de infanticídio. A realização do exame pode ocorrer tanto na mulher viva quanto na mulher morta, devendo esclarecer se houve parto, e se este é recente ou não.

Na mulher viva, realiza-se tal diagnóstico através das provas de parto recente, em que se analisa sinais mais ou menos evidentes, como

seios volumosos, com secreção de colostro ou de leite; abdome flácido; corrimento de lóquios (de odor sui generis, reação alcalina, cor a princípio vermelho-escura, depois clara); reação de ASCHCHEIM-ZONDEK positiva; lesões eventuais no canal genital e no períneo [30].

Já para a verificação de existência de parto antigo, busca-se o reconhecimento de alguns estigmas corporais deixados pela gravidez, como "estrias e flacidez abdominais, estrias e pigmentação das mamas, cicatrizes himenais, cicatrizes da fúrcula e períneo, mudança da forma e cicatrizes do óstio externo do colo uterino". [31]

Para se realizar o diagnóstico de parto recente ou antigo na mulher morta, além de todos os elementos analisados no diagnóstico de parto em mulher viva, é de suma importância analisar-se os detalhes do útero e dos ovários.

3.4 Feto nascente

Conforme o ensinamento de Genival Veloso de França, [32] feto nascente é aquele que "apresenta todas as características do infante nascido, menos a faculdade de ter respirado".

Nesta fase do parto, a criança já atravessou totalmente ou em parte o orifício externo do útero, ficando desprotegida e acessível a atos violentos da mãe infanticida ou de terceiros.

Em outras legislações, denomina-se feticídio a morte da criança nesse estágio. No Brasil, entretanto, o legislador definiu que o infanticídio também ocorre "durante o parto", estando, desta forma, protegida legalmente a vida do feto nascente.

3.5 Neonato ou recém-nascido

Recém-nascido é aquele que se desprendeu totalmente do ventre materno e já respirou, havendo ou não a expulsão da placenta.

Para os médicos legistas, o estado de recém nascido estende-se até aproximadamente o 7º dia depois do nascimento da criança. Já para a Pediatria, recém-nascido é a criança até com 30 dias de vida.

Como bem assinala Hélio Gomes,

basta, ao infanticídio, que haja vida no momento do parto, não se cogitando da viabilidade do ser que nasce. Fetos incapazes de vida autônoma, ou recém-natos portadores de anomalias graves, ou prematuros que não tenham condições de sobrevivência, uma vez dados à luz vivos, enquadram-se nas exigências para a configuração do tipo. São excluídos, somente, a degeneração do ovo (mola hidatiforme) e o natimorto. [33]

3.6 Natimorto

Natimorto é o feto que se desprende sem vida do organismo materno. Para a Medicina Legal, natimorto é o feto que morre durante o chamado período perinatal que, de acordo com a CID-10 (Cadastro Internacional de Doenças), tem início na 22ª semana de gestação, quando o peso fetal é de aproximadamente 500g [34].

A morte do feto durante a fase perinatal pode ter causa natural ou violenta. Genival Veloso de França [35] destaca que "as causas naturais mais comuns são: anoxia anteparto, prematuridade, anomalias congênitas e doença hemolítica congênita". As causas violentas dividem-se em tóxicas ou medicamentosas e mecânicas.

Conforme assinala Antonio José Miguel Feu Rosa [36] "constitui fator fundamental apurar-se se a criança nasceu viva, porque costuma acontecer que a mãe pensa que cometeu o crime, mas na realidade deu à luz um natimorto". Neste caso, a conduta da agente é impunível, pois a mãe incorre em crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto, conforme o disposto no art. 17 do Código Penal brasileiro, pois é necessário, para a configuração do infanticídio, que o sujeito passivo esteja vivo no momento efetivo da ação criminosa.

3.7 Nascituro

A palavra nascituro designa o embrião humano desde o momento da concepção até o parto.

Desta forma, o nascituro não pode ser sujeito passivo do delito de infanticídio, já que este crime só se dá no momento do parto ou logo após, mas também ele não se encontra desprotegido pelo Direito penal brasileiro, pois, conforme assinala Nélson Hungria, [37] "antes de iniciado o parto, a ocisão do feto é aborto", cujas modalidades estão previstas nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Assim como o legislador penal pátrio não deixou de tutelar a vida humana intra-uterina, o legislador civilista protegeu também os direitos civis do ser humano nesta fase do desenvolvimento embrionário, ao dispor, no artigo 2º do Código Civil brasileiro, que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Com o surgimento de novas técnicas de reprodução humana (fertilização in vitro e congelamento de embriões), tornou-se questionável o momento em que se deve considerar juridicamente o nascituro. Entretanto, a parte majoritária da doutrina penal e civilista brasileira entende que a vida tem início com a concepção no ventre materno.

Ocorre que, somente após o nascimento com vida, é que o nascituro passa a ser pessoa. Conforme declara César Fiuza,

independentemente das teses levantadas pela Medicina, para o Direito, ainda é a respiração o limite entre a vida e a morte. Se a pessoa respira, ainda está viva, possuindo, pois, personalidade. Se não respira, está morta, não sendo mais pessoa [38].

Desta forma, pode-se dizer que personalidade é um atributo ou valor jurídico que confere ao ser humano a capacidade de ser titular de direitos e deveres nas relações jurídicas. Como ainda está para nascer, o nascituro não possui personalidade, mas seus direitos encontram-se protegidos e preservados por ser pessoa em potencial.

Sobre este assunto, Maria Helena Diniz explica que,

conquanto comece do nascimento com vida a personalidade civil do homem, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (CC, arts. 2º, 1.609, 1.779 e parágrafo único e 1.798), como o direito à vida (CF, art. 5º); à filiação (CC, arts. 1.596 e 1.597); à integridade física; a alimentos (RT, 650:220; RJTJSP, 150:906); a uma adequada assistência pré-natal; a um curador que zele pelos seus interesses em caso de incapacidade de seus genitores, de receber herança (CC, arts. 1.798 e 1.800, §3º), a ser contemplado por doação (CC, art. 542); a ser reconhecido como filho etc. [39]

3.8 Delito privilegiado

Conforme ensina Luiz Regis Prado, [40] "o tipo autônomo (delictum sui generis), ainda que não tenha conexão com outro tipo legal, representa uma variante autônoma, e se encontra, por isso, separada de todo outro tipo do sistema penal".

Apesar de possuir o mesmo núcleo contido no tipo de homicídio, o infanticídio é um delito autônomo, não se confundindo com aquele, já que recebeu tratamento diferenciado do legislador, sendo definido em dispositivo próprio, e recebendo uma pena mais branda do que a dispensada ao crime de homicídio.

Portanto, diz-se que o infanticídio é delito privilegiado, pois, apesar de significar a mesma conduta contida no homicídio, qual seja, matar, possui tratamento diferenciado (mais ameno) por parte do Código Penal brasileiro, em virtude de o legislador ter entendido que a autora deste delito não age livremente, mas influenciada por alterações físicas e psíquicas decorrentes do estado puerperal.


4 CIRCUNSTÂNCIAS ELEMENTARES DO CRIME

O Código Penal brasileiro, em seu art. 30, fala a respeito das circunstâncias elementares do tipo. Tais elementos são requisitos específicos do delito, importantíssimos para a caracterização do crime, podendo compreender "o verbo que descreve a conduta, o objeto material, os sujeitos ativo e passivo etc. inscritos na figura penal". [41]

Com relação ao infanticídio, são circunstâncias elementares o sujeito ativo (mãe), o sujeito passivo (filho), a conduta (matar), o objeto material (vida), a elementar normativa (estado puerperal) e a elementar normativa temporal (durante o parto ou logo após).

Faltando qualquer um desses elementos descritos no tipo penal, fica descaracterizado o delito de infanticídio, podendo ocorrer duas situações distintas:

Em uma primeira, a conduta do agente caracteriza outro crime diferente do infanticídio. É o caso, por exemplo, da mulher que pratica a ação contida no verbo do tipo sem estar sob a influência do estado puerperal. Desta forma, ficaria descaracterizado o crime de infanticídio, porém tal conduta passaria a caracterizar o crime de homicídio.

Em outra situação, deixaria de haver crime, caso a puérpera, por exemplo, praticasse a ação violenta contra natimorto. Desta forma, nos termos do art. 17 do Código Penal, não haveria crime, devido à absoluta impropriedade do objeto.

Portanto, como se vê, faz-se necessário o estudo de cada uma das circunstâncias elementares contidas no tipo de infanticídio, com vistas a se entender a intenção do legislador ao prescrever tal delito como figura autônoma no Código Penal brasileiro.

4.1 Sujeitos do delito

Conforme o ensinamento de Miguel Reale, [42] para que haja uma relação jurídica penal, "é necessário que, de maneira precisa e típica, coincidam os atos praticados com a hipótese prevista numa regra jurídica tipicamente adequada". Ou seja, é necessário que haja uma adequação entre o fato e a conduta descrita na norma.

Toda relação jurídica possui, entre outros elementos fundamentais, dois tipos de sujeito: um sujeito ativo e um sujeito passivo.

"Sujeito ativo do crime é todo aquele que pratica a conduta descrita na lei, ou seja, o fato típico" [43]. Só pode ser considerado sujeito ativo de um delito a pessoa humana, e não os animais ou as coisas inanimadas. Entretanto, tal conceito não abrange apenas a pessoa que pratica o núcleo da figura típica, como também o autor ou partícipe, que, de alguma forma, concorrem para a conduta delituosa.

Já sujeito passivo do delito é o "titular do bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão" [44]. Nada impede, porém, que, em um mesmo delito, duas ou mais pessoas sejam sujeitos passivos.

Ao falar sobre o sujeito passivo do crime, Julio Fabbrini Mirabete o classifica em duas espécies:

Fala-se em sujeito passivo constante ou formal, ou seja, o Estado que, sendo titular do mandamento proibitivo, é lesado pela conduta do sujeito ativo. Sujeito passivo eventual ou material é o titular do interesse penalmente protegido, podendo ser o homem (art. 121), a pessoa jurídica (art. 171, §2º, V), o Estado (crimes contra a Administração Pública) e uma coletividade destituída de personalidade jurídica (arts. 209, 210 etc.) [45].

Analisar-se-á, a seguir, individualmente, cada um dos sujeitos existentes no crime de infanticídio, passando-se pela problemática relativa à co-autoria deste delito que tem, desde a edição do Código Penal brasileiro em 1940, ensejado intermináveis disputas na doutrina.

4.1.1 Sujeito ativo

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O autor do crime de infanticídio só pode ser a mãe parturiente que esteja sob a influência do estado puerperal.

Conforme se depreende da exposição de motivos do Código Penal, é necessário, para a tipificação deste crime, que o agente ativo seja a mãe parturiente que esteja sofrendo uma perturbação psíquica sobrevinda em conseqüência do puerpério, de modo a inibir sua capacidade de entendimento ou de auto-inibição.

Portanto, qualquer outra pessoa que pratique a conduta delituosa, que não seja a genitora, ou mesmo esta sem estar sofrendo influência do estado puerperal, responderá pelo crime de homicídio.

4.1.2 O problema da co-autoria

Há casos, entretanto, em que o autor não age sozinho, praticando o crime com a ajuda de uma terceira pessoa.

Apesar de a doutrina classificar o infanticídio como crime próprio, tal qualificação doutrinária não impede a possibilidade do concurso de agentes. Conforme diz Mirabete, [46] "problema exaustivamente discutido é o de se saber se responde por infanticídio ou homicídio aquele que colabora na prática de um infanticídio".

Vários doutrinadores, fundados no art. 30 do Código Penal brasileiro, entendem que se estende ao co-autor ou partícipe as circunstâncias pessoais do agente, qual seja, a qualidade de ser mãe e de estar sob a influência do estado puerperal, respondendo, desta forma, o terceiro que concorre para a execução do crime, por infanticídio.

Em contrapartida, há uma outra corrente de doutrinadores que defende que o estado puerperal é condição de natureza personalíssima, e, portanto, incomunicável. Desta forma, não se aplicam a este crime as regras contidas nos artigos 29 e 30 do CP, respondendo o co-autor ou partícipe por homicídio.

Em uma tentativa de pôr fim a essa discussão, surgiu uma terceira corrente com uma solução mista, defendendo a punição do terceiro por homicídio se ele praticar ato executório consumativo, e por infanticídio se for apenas partícipe.

Na doutrina brasileira, adotavam o ponto de vista da comunicabilidade (infanticídio): Roberto Lyra, Olavo Oliveira, Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Basileu Garcia, Euclides Custódio da Silveira e Bento de Faria. Ensinavam que o partícipe deve responder por crime de homicídio: Nélson Hungria, Galdino Siqueira, Costa e Silva, Heleno Cláudio Fragoso, Salgado Martins e Aníbal Bruno. [47]

Sobre a participação de terceiro em crime de infanticídio, Luiz Regis Prado [48] lista três possíveis situações: "a) a mãe e o terceiro realizam dolosamente o núcleo do tipo (matar); b) a mãe mata o nascente ou recém-nascido e é ajudada pelo terceiro (partícipe); c) o terceiro mata a criança, com a participação da mãe."

Para a primeira hipótese, há três diferentes entendimentos. Parte da doutrina, adepta da teoria da comunicabilidade, entende que, por força do art. 29 do Código Penal, ambos são co-autores do crime, devendo responder por infanticídio. Uma outra parte da doutrina, adepta da teoria da incomunicabilidade, defende que a mãe responde por infanticídio e o terceiro por homicídio. E já uma terceira corrente, adepta de uma teoria mista, defende que, como o terceiro praticou ato executório consumativo, responderá por homicídio, enquanto a mãe do sujeito passivo, por infanticídio.

Com relação à segunda hipótese, ocorre a mesma falta de entendimento entre as diversas correntes doutrinárias que existem. A primeira corrente entende que os dois respondem por infanticídio. A segunda entende que a mãe responde por infanticídio e o terceiro por homicídio. Já a terceira corrente defende a punibilidade do partícipe por infanticídio, junto com a autora do delito.

Relativamente ao terceiro caso, as divergências doutrinárias ficam reduzidas a dois pensamentos contrários: o primeiro pensamento defende que o terceiro deve responder como autor do crime de homicídio e a mãe como partícipe. Já outra corrente de pensamento defende que, diante da regra do artigo 30 do Código Penal, tanto a influência do estado puerperal quanto a relação de parentesco são elementares do tipo e comunicam-se entre os fatos dos participantes, devendo ambos responder por infanticídio.

Como se vê, este assunto é bastante polêmico no meio jurídico, estando longe de haver um consenso na doutrina e jurisprudência brasileiras enquanto perdurar o infanticídio na forma como está definido no art. 123 do CP.

Caso ímpar e bastante citado na doutrina é o de Nélson Hungria que, por quatro décadas de vida dedicadas ao estudo do Direito, defendeu ferrenhamente a incomunicabilidade das circunstâncias pessoais no crime de infanticídio, tendo voltado atrás em seu raciocínio, à beira da aposentadoria, época em que passou a defender a teoria da comunicabilidade [49].

O estado puerperal é, sem sombra de dúvida, uma condição de cunho pessoal. Entretanto, ele figura como elementar do tipo de infanticídio, sendo essencial à sua configuração.

Isso cria um contra-senso dentro do Código Penal brasileiro, pois, dependendo da corrente de pensamento à qual o julgador se filia, pode tanto privilegiar o terceiro co-autor ou partícipe em infanticídio, que não está sob a influência do estado puerperal, a receber a pena mais branda do infanticídio, quanto pode levar a mulher que esteja sob a influência do estado puerperal, e que tem participação na morte do próprio filho durante o parto ou logo após, a responder por homicídio.

4.1.3 Sujeito passivo

O sujeito passivo do crime de infanticídio é o feto nascente ou o neonato.

Como o infanticídio pode ocorrer tanto durante o parto quanto logo após o mesmo, está protegida, pelo tipo penal contido no artigo 123, tanto a vida do filho nascente quanto a do recém-nascido.

Pode ocorrer de a mãe, por erro in personam, matar filho alheio, supondo tratar-se de seu próprio filho. Neste caso, por força do que dispõem os arts. 20, §3º, e 73, do Código Penal, são consideradas as condições ou qualidades da vítima contra quem se queria praticar o delito, e não as da vítima real, devendo a autora responder por infanticídio, como se houvesse matado seu próprio filho.

Casper, [50] médico-legista alemão para quem "viver é respirar e não respirar é não ter vivido", influenciou a maioria das legislações no mundo ocidental, tendo também influenciado sobremaneira a doutrina jurídica brasileira, em especial a civilista.

Atualmente, entretanto, a Medicina Legal já demonstrou que tal conceito pode, em determinados casos, ser falho, irreal e ilógico, já que é perfeitamente possível a existência de vida apnéica extra-uterina, o que consistiria em um contra-senso dizer-se que não há vida em tal situação apenas porque o ser ainda não respirou.

Não mais se discute a viabilidade do ser que nasce. Não é necessário indagar-se se o feto é capaz de vida autônoma extra-uterina. Para que se configure o infanticídio, basta que, começado o parto, se possa considerar o feto biologicamente vivo; sendo que vida biológica corresponde à "existência do mínimo de atividades funcionais de que o feto já dispõe antes de vir à luz, e das quais é o mais evidente atestado a circulação sangüínea" [51].

Cabe à perícia médico-legal a tarefa de provar se o feto estava vivo no momento em que foi alvo da violência física da puérpera. A forma de se provar a existência de vida extra-uterina no feto varia conforme o fato de ter ou não iniciado a respiração pulmonar autônoma. Sobre isso, Almeida Jr e Costa Jr asseguram que,

em relação a feto que ainda não tinha respirado (que morreu durante o parto, ou nos primeiros instantes posteriores a este), a prova só se pode fazer com a ajuda de dois fenômenos dependentes da circulação: o tumor de parto e os caracteres vitais das lesões. [52]

Por tumor de parto, entende-se que é uma saliência de cor violácea, presente quase sempre na cabeça, em face da pressão exercida pelo anel do colo. Sua formação ocorre durante o trabalho de parto e desaparece em geral em torno de 24 a 36 horas, sendo que nem sempre encontra-se presente no infante ou recém-nascido.

As lesões acima referidas são as resultantes das violências desferidas contra o corpo da vítima, ressaltando-se que as lesões produzidas em um corpo vivo evidenciam reações vitais, enquanto as agressões produzidas em um cadáver apresentam características próprias das lesões post mortem.

Havendo a criança respirado, passa a ser qualificada como recém-nascido ou neonato. Neste caso, pesquisa-se a existência de vida autônoma extra-uterina na criança através das docimásias (do grego dokimasia, que significa exame, prova, experiência), que podem ser respiratórias ou não-respiratórias, dividindo-se as primeiras em pulmonares ou extrapulmonares.

As docimásias respiratórias pulmonares tencionam provar a existência de respiração anterior. O pulmão que respirou adquire uma cor entre o vermelho-claro e o rosado, seu volume é maior do que o pulmão que não respirou, e apresenta uma consistência esponjosa com um crepitar característico.

Hélio Gomes [53] leciona que, dentre todas as docimásias respiratórias pulmonares, "a mais antiga e de uso mais difundido é, sem dúvida, a docimásia hidrostática de Galeno. É também a melhor, pela facilidade de execução e de interpretação dos resultados".

Esta docimásia, explicita Genival Veloso de França, [54] compõe-se de quatro fases distintas: a primeira consiste em se colocar os pulmões, a traquéia, a laringe, a língua, o timo e o coração em um recipiente com água. Se estes órgãos flutuam por inteiro ou à meia-água, fica provada a respiração autônoma do feto. Se não flutuam, passa-se à segunda fase, que consiste em separar-se os pulmões das demais vísceras. Se ele flutua por inteiro ou à meia-água e os outros órgãos continuam no fundo, está comprovada a respiração autônoma da criança. Se os pulmões permanecem no fundo, passa-se à terceira fase, em que são cortados, no interior do líquido, vários fragmentos de pulmão e observa-se seu comportamento. Se alguns fragmentos flutuam, a fase é considerada positiva, mas se todos os fragmentos continuam no fundo, a fase é negativa, passando-se, então à quarta e última fase, que consiste em se comprimir, com o dedo, alguns desses fragmentos que estão no fundo do vaso, contra as paredes do recipiente. Se ocorrer o desprendimento de finas bolhas gasosas misturadas com sangue, é esta fase considerada positiva. Caso contrário, é negativa.

As docimásias respiratórias extrapulmonares objetivam informar dos efeitos da respiração em outros sistemas do organismo do feto. Exemplos desse tipo de docimásia são a docimásia gastrintestinal de Breslau, que busca a existência de ar no aparelho gastrintestinal do cadáver, e a docimásia auricular de Vreden, Wendt e Gelé, que se baseia na pesquisa de ar na caixa do tímpano, nos casos em que apenas se dispõe da cabeça do feto para análise.

As docimásias não-respiratórias objetivam demonstrar

a existência da vida através de outras atividades fetais, independentemente do início da atividade respiratória. Dentre elas, a docimasia alimentar consiste na busca de alimentos absorvidos pelo neonato durante a vida extra-uterina; a docimasia siálica, busca de saliva no estômago [55].

Além dessas provas citadas anteriormente, a presença de corpos estranhos nas vias aéreas, ou de substâncias alimentares no tubo digestivo, dependendo do caso, podem ser de grande valia, servindo como provas ocasionais para a confirmação da existência de respiração ou até de vida extra-uterina autônoma e sua duração.

As docimásias, entretanto, nem sempre conseguem levar o perito a um resultado elucidativo a respeito do nascimento do feto com vida ou sem vida. A insuflação de ar nos pulmões, a putrefação, o congelamento, a prévia conservação do pulmão em álcool, a cocção da víscera do cadáver, a respiração sem deglutição de ar, prejudicam os resultados das docimásias, levando a um falso resultado [56].

4.2 Estado puerperal

As legislações penais que vigoraram no Brasil, antes da edição do Código Penal de 1940, consideravam o infanticídio como uma espécie de homicídio privilegiado quando praticado por motivo de honra pela mãe ou por algum parente próximo, para esconder gravidez ilegítima.

Nestes casos, em decorrência do critério psicológico honoris causae, atenuava-se a pena de quem matasse um recém-nascido para ocultar a própria desonra ou a de algum parente próximo.

Tal critério foi defendido por Beccaria, Feuerbach e outros adeptos das teorias filosóficas do Iluminismo, no século XVIII, e acabaram influenciando a maioria das legislações surgidas a partir de então, entre elas as editadas no Brasil antes de 1940.

Essas idéias tiveram ampla aceitação, tanto na sociedade comum quanto entre juristas e doutrinadores, em uma época em que ser mãe solteira era algo escandaloso, socialmente reprovável, e em que as penas eram bastante severas e brutais, especialmente para a mulher infanticida.

Antonio José Miguel Feu Rosa relata que,

numa época em que não havia pílulas anticoncepcionais, proliferavam as mães solteiras. Estas tornavam-se alvo de humilhações e do desprezo da sociedade, seus filhos atravessavam a vida com aquela chaga da origem pecaminosa. Não havia assistência social, e a rede hospitalar, além de particular, apresentava a precariedade de recursos que tornava o parto perigosa aventura. A mulher grávida sentia, por antecipação, os pavorosos sofrimentos que a atormentariam. Não existia, ainda, a anestesia. O índice de mortalidade atingia níveis alarmantes e pavorosos, porque quando se precisava de cesariana, ora salvava-se a mãe, ora a criança. Era quase impossível ambas sobreviverem. [57]

Com o passar dos anos, a sociedade foi mudando, a noção de moral foi-se modificando e o critério psicológico foi perdendo sentido, ao mesmo tempo em que surgiram novas idéias a respeito do conceito de honra, sobre o incômodo de se possuir uma prole portadora de doenças ou deformidades, sobre o trauma psíquico do parto que muitas vezes levava à loucura, o que fez com que surgissem novas teorias a respeito do infanticídio.

Tais idéias deixaram de lado o conceito psicológico puro, relacionado com o conceito de honra e prenhez ilegítima, e passaram a adotar um critério fisiopsicológico, relacionado à influência exercida pelo puerpério no psiquismo da mulher.

Desta forma, influenciado por tais idéias, o Código Penal brasileiro de 1940 passou a reconhecer o infanticídio como uma espécie de homicídio privilegiado, com pena mais branda, não mais se calcando no motivo de honra, mas atrelando-se à "influência do estado puerperal".

Com relação à intenção do legislador ao inserir a figura do estado puerperal na legislação que trata do infanticídio, Almeida Jr. e Costa Jr lecionam que seu intuito foi abarcar os casos em que a

mulher, mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho. De um lado, nem alienação mental, nem semi-alienação (casos estes já regulados genericamente pelo Código). De outro, tampouco a frieza do cálculo, a ausência de emoção, a pura crueldade (que caracterizariam, então, o homicídio). Mas a situação intermédia – podemos dizer, até, ‘normal’ da mulher que, sob o trauma da parturição e dominada por elementos psicológicos peculiares, se defronta com o produto talvez não desejado, e temido, de suas entranhas . [58]

Neste mesmo sentido, o entendimento de Helio Gomes, para quem

as vítimas dessa ‘loucura’ momentânea devem ser mulheres sem história pregressa de doenças mentais (esquizofrenia; psicose maníaco-depressiva) ou mesmo quaisquer desordens de cunho psíquico (neuroses; personalidades psicopáticas), em suma, perfeitamente normais, do ponto de vista psiquiátrico, pois o contrário caracterizaria o homicídio, aplicando-se, então, conforme o caso, o artigo 26 do Código Penal e seu parágrafo. [59]

Sabe-se que existem transtornos mentais e comportamentais capazes de acometer a mulher durante o puerpério, podendo aparecer nas seis primeiras semanas após o parto, conforme a classificação da CID-10 [60]:

F 53.0 Transtornos mentais e comportamentais leves associados ao puerpério –

Depressão:

- pós-parto SOE

- puerperal SOE

F 53.1 Transtornos mentais e comportamentais graves associados ao puerpério:

- psicose puerperal SOE

F 53.8 Outros transtornos mentais e comportamentais associados ao puerpério, não classificados em outra parte.

F 53.9 Transtorno mental ou comportamental associado ao puerpério, não especificado.

O estado puerperal seria, portanto, de acordo com Damásio de Jesus, [61] "o conjunto das perturbações psicológicas e físicas sofridas pela mulher em face do fenômeno do parto"

A Exposição de Motivos do Código Penal fala que

o infanticídio é considerado um delictum exceptum quando praticado pela parturiente sob a influência do estado puerperal. Esta cláusula, como é óbvio, não quer significar que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica: é preciso que fique averiguado ter este realmente sobrevindo em conseqüência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de auto-inibição da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio.

Como se vê, para receber o benefício da pena mais branda, é necessário que a mulher esteja realmente sob a influência do estado puerperal ao praticar o crime, sem o que não há que se falar em infanticídio, mas em homicídio.

Entretanto, a existência da influência do estado puerperal no ânimo da parturiente não é entendimento tão unânime assim na doutrina jurídica nem na doutrina médica. A adoção do critério fisiopsicológico por parte do Código Penal de 1940 tem recebido inúmeras críticas desde sua edição. Ao referir-se ao estado puerperal, Hélio Gomes [62] classificou-o como uma entidade "no mínimo pouco palpável, para não dizer virtual".

Para quem considera que as lições do ilustre professor de Medicina Legal acima citado encontram-se defasadas, traz-se à baila Genival Veloso de França, [63] também professor de Medicina Legal (porém mais moderno), para quem não há "nada mais fantasioso que o chamado estado puerperal, pois nem sequer tem um limite de duração definido".

Nerio Rojas refere-se à questão da duração do estado puerperal da seguinte forma:

La duración del estado puerperal, por lo pronto, es indeterminable con exactitud, sin contar las diferencias de critério que establecen divergencias fundamentales entre los tocólogos. Unos denominam ‘estado puerperal’ al embarazo, al parto y al puerperio que le sigue; otros, sólo a este último; algunos consideran que este estado puerperal dura el tiempo de la involución clínica del útero; otros lo refieren a la involución histológica de ese órgano, que suele durar hasta dos meses; hay quienes lo limitan a la duración de los lóquios, y otros lo extienden hasta la aparición de la menstruación. [64]

Heleno Cláudio Fragoso, ardente crítico do critério fisiopsíquico, é taxativo ao dizer que o estado puerperal jamais poderia, por si só, provocar na mulher uma tal agressividade contra o próprio filho, violando o impulso natural da maternidade. Ou existe uma precedente situação de anomalia psíquica que a gravidez e o parto precipitam (e estaríamos então na esfera do art. 22 e seu parág. único), ou existem fatores de ordem social (gravidez fora do casamento, extrema severidade dos pais, intensa reprovação dos parentes) que provocam grave perturbação de ânimo capaz de conduzir ao crime [65].

O infanticídio é um delito pouco comum. Ainda não dá para se determinar quantos casos de infanticídio ocorrem anualmente no Brasil, pois não há um levantamento estatístico capaz de ajudar no mapeamento deste crime, talvez até devido à própria natureza do delito, que ocorre, em geral, em partos clandestinos, e após o término de uma gravidez escondida.

Entretanto, sabe-se que ele é um crime mais comum entre mulheres das camadas mais pobres da população, abandonadas pelo pai da criança, ou então que carregam no ventre o fruto de uma relação extraconjugal.

Além disso, a mulher acusada de infanticídio só vai ser avaliada pelos peritos muito tempo depois de realizado o ato criminoso, o que dificulta a constatação da real ocorrência do estado puerperal.

Como diz Nélson Hungria,

o legislador penal brasileiro deixou a questão aberta: na apreciação de cada caso concreto, terá o juiz de invocar o parecer dos peritos-médicos, a fim de que estes informem se a infanticida, ainda que isenta de taras psicopáticas, francas ou latentes, teve a contribuir para o seu ato criminoso as desordens físicas e psíquicas derivadas do parto. [66]

Entretanto, o que se tem visto sempre é a caracterização do privilégio de delito excepcional a todos os casos de morte causada pela parturiente no próprio filho, conforme se vê na seguinte jurisprudência:

Sendo a prova segura em indicar que a conduta da ré ocorreu logo após o parto, o que faz presumir estar ela sob a influência do estado puerperal, já que este é o efeito costumeiro de qualquer parto, não depende o seu reconhecimento de prova pericial. (TJSP – RSE – Rel. Gomes de Amorim – RJTJSP 172/300). [67]

Outro problema que tem ocorrido é a confusão feita nos tribunais brasileiros a respeito das elementares do crime. Apesar de a lei brasileira adotar o critério fisiopsicológico do estado puerperal, tem-se desencavado o critério psicológico, fazendo com que, aos poucos, ambos se confundam, conforme se depreende das jurisprudências abaixo colacionadas:

A influência do estado puerperal é o efeito normal e corriqueiro de qualquer parto. Dada a sua grande freqüência, deverá ser admitida sem maior dificuldade. Presente a causa da honra, então, deverá ser afastada qualquer dúvida a respeito. (RT 417/111). [68]

O infanticídio é, inegavelmente e antes de tudo, um delito social, praticado na quase totalidade dos casos (e é fácil a comprovação pela simples consulta dos repertórios de jurisprudência), por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos e pelos amásios. Raríssimas vezes, para não dizer nenhuma, têm sido acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de regra, dão à luz cercadas do amparo do esposo e do apoio moral dos familiares. Por isso mesmo, o conceito fisiopsicológico do infanticídio – "sob a influência do estado puerperal" – introduzido no nosso Código Penal para eliminar de todo o antigo conceito psicológico – a causa da honra – vai, aos poucos, perdendo sua significação primitiva e se confundindo com este, por força de reiteradas decisões judiciais. (TJSP – Rec. – Rel. Silva Leme – RT 421/91). [69]

Soma-se a isso a crítica de Maggio:

Finalmente, considerando que, na dúvida, sempre prevalece o brocardo in dúbio pro reo, surge, então, a presença de uma válvula de escape que, juridicamente, acaba por agraciar mães parturientes, aparentemente homicidas, premiando-as com a brandura e amenidade da punição [70].

4.3 Objetividade jurídica

De acordo com Bitencourt [71] "o bem jurídico do crime de infanticídio, a exemplo do homicídio, é a vida humana. Protege-se aqui a vida do nascente e do recém-nascido".

A vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. Em seu conceito estão inseridos outros direitos, como a dignidade da pessoa humana, privacidade, integridade física, integridade moral e o direito à existência. Conforme diz José Afonso da Silva, [72] "de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos".

Não se faz mais distinção entre vida biológica e vida autônoma ou extra-uterina. Neste sentido, Nélson Hungria afirma que há infanticídio desde que, começado o parto, o feto se podia considerar biologicamente vivo. Nem mesmo é necessário indagar-se se o feto era capaz de vida autônoma: basta averiguar, remontando-se ao momento anterior à expulsão, a presença de vida biológica, isto é, a existência do mínimo de atividades funcionais de que o feto já dispõe antes de vir à luz, e das quais é o mais evidente atestado a circulação sanguínea [73].

Com relação ao bem jurídico tutelado pelo crime de infanticídio, uma das críticas comumente feitas ao Código Penal de 1940 é a referente ao fato de ele tratar o infanticídio como modalidade de homicídio privilegiado com uma pena mais branda, pois, segundo seus críticos, isso denota que o legislador considerava a vida de um adulto socialmente mais valiosa que a vida de uma criança.

4.4 Ação típica

A ação típica do infanticídio constitui-se em a mãe matar o próprio filho, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal.

Devido ao fato de o infanticídio ser um crime de forma livre, sua execução pode ocorrer através dos mais variados meios, diretos ou indiretos, capazes de produzir a morte do ser humano nascente ou recém-nascido.

A conduta delituosa tanto pode ser operada através de atitudes positivas (comissivas), em que a ação incide violentamente sobre o sujeito passivo, quanto através de atitudes negativas (omissivas), em que a inação consiste em não-realizar os cuidados indispensáveis à vida do sujeito passivo no momento do seu nascimento ou logo após.

O infanticídio é menos comum durante o parto. Almeida Jr. e Costa Jr. [74] relatam que a literatura francesa notificava a respeito de "uma certa parteira, hábil em perfurar a moleira dos fetos no momento do nascimento; assim como é sabido que algumas vezes, nesse mesmo instante, a criança tem sido decapitada".

Após o feto ter atravessado todo o canal de parto, deixa de ser infante nascente e torna-se infante nascido (recém-nascido). A partir deste momento, já poderá ser objeto de atos criminosos dos mais variados, sendo as causas mais comuns, o estrangulamento ou a esganadura, a sufocação, o afogamento, o lançamento da criança contra paredes ou similares, bem como as lesões produzidas por instrumentos perfurantes, cortantes, ou pérfuro-cortantes [75].

Muita gente confunde o infanticídio com a conduta descrita no art. 134, § 2º, do Código Penal quando se trata da hipótese em que a mulher, sob a influência do estado puerperal, abandona seu filho recém-nascido em lugar ermo, exposto a alguma situação que possa lhe levar à morte.

Não há razão, todavia, para que se faça tal confusão, uma vez que esses dois crimes, apesar de possuírem o mesmo resultado "morte", são totalmente diferentes entre si. Para configurar o crime descrito no art. 134, § 2º, do CP, que pode ser classificado como um crime de perigo, é necessário que o agente queira apenas livrar-se do bebê com o fim de ocultar desonra própria, sem desejar sua morte, mas aceitando colocá-lo em uma situação perigosa para sua vida (dolo de dano). "O resultado morte, que agrava a pena da agente, é de ter decorrido apenas culposamente, vale dizer, ser apenas previsível, mas jamais querido, nem sequer aceito". [76]

Já para haver a configuração do crime de infanticídio, é necessário que se averigúe se a mãe (agindo sob a influência do estado puerperal e logo após o parto), ao abandonar o próprio filho em local ermo, desejava (dolo direto) ou assumiu o risco (dolo indireto eventual) de obter o resultado morte sobrevinda em decorrência do abandono.

Nesta última hipótese, se a conduta não se der "logo após o parto" ou se a mãe não agir "sob a influência do estado puerperal", caracterizado estará o crime de homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal.

4.5 Momento consumativo

O crime de infanticídio consuma-se com a morte do feto nascente ou do infante nascido.

A morte, segundo Magalhães Noronha [77] só existe a partir do momento em que se "apresenta a chamada Trípode de Bichat, constituída pela cessação das funções cerebrais, da circulação e da respiração".

Como já se viu anteriormente, na análise do sujeito passivo deste delito, não mais se questiona a respeito da viabilidade do ser que nasce, bastando apenas que ele nasça com vida. Como o feto nascente pode também ser sujeito passivo do infanticídio, não se exige que tenha havido vida extra-uterina, mas apenas vida biológica.

Conforme a lição de Gerardo Vasconcelos, [78] "o monstro, o feto disforme, desde que vivo, pode ser objeto de infanticídio. Exclui-se apenas a mola, o ovo degenerado e o natimorto, isto é, o feto que, por condições alheias à vontade, nasceu morto".

Para que fique configurado o crime de infanticídio, é necessário que a morte do sujeito passivo tenha ocorrido durante ou logo após o parto. Neste sentido, a seguinte jurisprudência:

O simples fato de demorar o recém-nascido para morrer não desnatura, por si só, o delito de infanticídio. Se assim fosse, tratar-se-ia de comum homicídio. (TACRIM/SP, AC, rel. Juiz Octávio E. Roggiero – JUTACRIM 33/229). [79]

Ocorre que há uma grande querela doutrinária a respeito do que se deve entender pela elementar normativa temporal "durante o parto ou logo após". A doutrina médica não é pacífica ao tratar do início e fim do parto. Para alguns autores, o parto inicia-se com as primeiras contrações uterinas e termina com a expulsão do produto da concepção. Para outros, o parto inicia-se com o período de dilatação uterina e termina com a expulsão da placenta. Esta falta de entendimento dificulta a caracterização do crime, pois, se ocorrer a morte criminosa do feto antes de iniciado o parto, trata-se de aborto, e se não se der durante ou logo após o parto, será homicídio.

Para Nélson Hungria,

a expressão ‘logo após o parto’ não deve ser entendida isoladamente, mas subordinada à frase anterior do art. 123 – ‘sob a influência do estado puerperal’. Não lhe pode ser dada uma interpretação judaica, mas suficientemente ampla, de modo a abranger o variável período de choque puerperal. [80]

Neste mesmo sentido, o entendimento de Magalhães Noronha, para quem o período logo após o parto encontra-se delimitado pela influência do estado puerperal. Desta forma, apesar de a lei não ter fixado um prazo para sua ocorrência, "não se lhe pode dar uma interpretação mesquinha, mas ampla, de modo que abranja o variável período do choque puerperal" [81]. E finaliza dizendo que é "essencial que a parturiente não haja entrado ainda na fase da bonança, em que predomina o instinto materno" [82].

Com relação à forma tentada do infanticídio, não há muitos pormenores a se tratar, pois é consenso na doutrina a admissão da sua existência, em virtude da materialidade do crime, que ocorre quando, iniciada a ação de matar, esta não se consuma, por motivos alheios à vontade da agente.

Por força do disposto no parágrafo único do art. 14 do Código Penal, pune-se a tentativa de infanticídio com a pena correspondente ao crime consumado, que é a de detenção por 2 (dois) a 6 (seis) anos, diminuída de um a dois terços.

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Sobre o autor
Pedro Ivo Augusto Salgado Mendes da Costa

advogado em São Luís (MA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Pedro Ivo Augusto Salgado Mendes. A problemática do infanticídio enquanto tipo autônomo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1508, 18 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10301. Acesso em: 18 abr. 2024.

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