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Tabela Price e anatocismo.

Considerações fundamentais afetas ao direito comum

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30/08/2007 às 00:00
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2 – FAZENDO A LIMPEZA

2.1 – Anatocismo: sim ou não?

O anatocismo já foi definido supra. Do que já foi dito é possível destacar que o anatocismo somente pode ter vez no caso dos juros compostos. Anatocismo não ocorre nem pode ocorrer nos juros simples. Havendo ocorrência de capitalização composta, há, em tese, possibilidade de ocorrência do anatocismo. Esta é a questão que precisamos destrinchar.

Para analisar o problema, inicio pelas reflexões feitas por Teles em setembro de 2002. [27] Conforme o autor, na conclusão de seu estudo, "a Tabela Price capitaliza juros porque traz embutida em sua metodologia de cálculo uma função exponencial. Por isto, somente por isto, torna-se legalmente inadequada para a nossa realidade".

Não é o caso de aqui analisarmos os exemplos de cálculo e os argumentos trazidos por Teles. De fato, Marangoni, tratou de escrever uma manifestação ao artigo de Teles. [28] Nesta manifestação, aparece uma discussão interessante sobre os fundamentos do cálculo financeiro. Conforme pondera o autor, logo no início de suas reflexões, que "colegas economistas estão sendo ‘convencidos’ por profissionais de outras áreas de estudo, mormente a jurídica, a abandonarem o enfoque econômico/financeiro e olharem a questão sobre outra ótica, outros conceitos e outras aplicações"

Vejamos o assunto mais de perto.

Teles apresentou em seu trabalho uma situação hipotética de um empréstimo de R$ 3.790,79 a ser liquidado em 5 prestações com juros de 10% ao mês. Pela aplicação da Tabela Price, a liquidação do empréstimo se faz pela paga do principal + juros em cada contraprestação. Assim:

i = 10%
C = 3.790,79
n = 5
PMT = ?

Dadas as variáveis, o Sistema Price retorna o valor da parcela mensal suficiente para quitar o principal + juros devidos a cada mês. Temos, pois, que o PMT = R$ 1.000,00. A Tabela Price, por meio de fatores de cálculo faz, então, aquilo que a calculadora financeira moderna faz. É preciso lembrar que, no século XIX, não havia calculadoras financeiras disponíveis. Para saber quanto deveria ser pago em cada prestação era um tormento de contas matemáticas.

Então, a paga periódica de R$ 1.000,00, em 5 pagamentos, quita o empréstimo de R$ 3.790,79. O período de paga (mensal, trimestral, anual, etc) não é definido pela Tabela Price. Originalmente, as prestações eram anuais e os juros eram definidos como juros anuais. Aliás, as prestações eram chamadas de anuidades.

Voltando ao exemplo do cálculo, temos, pois, a seguinte tabela de amortização.

parcela

prestação principal amortizado juros saldo
[0]       3.790,79
[1] 1.000,00 620,92 379,08 3.169,87
[2] 1.000,00 683,01 316,99 2.486,86
[3] 1.000,00 751,31 248,69 1.735,54
[4] 1.000,00 826,45 173,55 909,10
[5] 1.000,00 909,09 90,91 0,01

Tabela 3: Tabela de Amortização

Na Tabela 3 aparecem os juros de 10% ao mês. Em momento algum são tais juros calculados sobre os juros; são, exclusivamente, calculados sobre o saldo devedor. Temos assim:

3.790,79  
3.169,87 379,08
2.486,86 316,99
1.735,54 248,69
909,10 173,55
- 90,91
  -

Tabela 4: Juros mensais

Mas, o assunto não é findo neste momento. Aquino Filho [29] traz outro exemplo em que propõe, a partir de um saldo devedor inicial de R$ 10.000,00 e taxa de juros de 12% ao ano, a paga do débito em 18 parcelas. As parcelas mensais perfazem R$ 609,92. Temos, pois, o exemplo apresentado por Aquino Filho:

    C=E*0,01    
    mês anterior    
A B C D E
prestação total dos encargos juros pagos
(12% aa ou 1% am)
principal amortizado saldo devedor
[0]       10.000,00
[1] 609,82 100,00 509,82 9.490,18
[2] 609,82 94,90 514,92 8.975,26
[3] 609,82 89,75 520,07 8.455,19
[4] 609,82 84,55 525,27 7.929,92
[5] 609,82 79,30 530,52 7.399,40
[6] 609,82 73,99 535,83 6.863,58
[7] 609,82 68,64 541,18 6.322,39
[8] 609,82 63,22 546,60 5.775,80
[9] 609,82 57,76 552,06 5.223,73
[10] 609,82 52,24 557,58 4.666,15
[11] 609,82 46,66 563,16 4.102,99
[12] 609,82 41,03 568,79 3.534,20
[13] 609,82 35,34 574,48 2.959,72
[14] 609,82 29,60 580,22 2.379,50
[15] 609,82 23,79 586,03 1.793,47
[16] 609,82 17,93 591,89 1.201,59
[17] 609,82 12,02 597,80 603,78
[18] 609,82 6,04 603,78 0,00

Tabela 5: Tabela de Amortização – juros 1% am

Deste exemplo, e, considerando que os juros não foram calculados sobre os juros (apenas sobre o saldo devedor) , pergunta ele "como poderia existir a cobrança de juros sobre juros ou anatocismo na Tabela Price se em nenhum momento novos juros são incorporados ao saldo devedor sobre os quais os novos juros teriam que ser cobrados?

Fica então esta minha pergunta no ar para ser respondida".

Eis aqui exposta e desnuda a questão do anatocismo. Pelos posicionamentos até aqui abordados, a resposta sobre o anatocismo pende para a negativa, ou seja, inexiste o anatocismo nas tabelas de amortização, mesmo aquelas que adotam o Sistema Price que prevê a quitação do saldo devedor e juros em parcelas sucessivas e de igual valor.

2.2 – A pergunta que não quer calar

Contudo, todavia, porém, o assunto ainda não está suficientemente resolvido. Se o leitor prestou bem atenção a todo arrazoado até aqui exposto e desenvolvido, deve ter notado que ainda pode restar uma pulga incomodando atrás da orelha. E, porque preocupamo-nos com pulgas atrás da orelha, é melhor levar o assunto adiante.

Volto às ponderações de G. da S. MELO. [30] Este autor observa que a análise do Sistema Price de amortização precisa partir do conceito de fluxo de caixa descontado. Este conceito de fluxo de caixa descontado está nos fundamentos da matemática financeira. Ou seja, para se entender qualquer realidade financeira, é preciso considerar o valor presente de desembolso.

O próprio Donizete Teles, depois de seu primeiro artigo, tratou de escrever novo artigo sobre o assunto do anatocismo [31] e, neste outro artigo precisou melhor o seu argumento. Neste, tem a felicidade de abordar a temática a partir do conceito de fluxo de caixa descontado. Apresenta, então, um exemplo de uma tabela de amortização.

PMT = 1000
n = 5
i = 10% am

Dados tais elementos, qual é o valor emprestado? Para saber qual seja este, é preciso trazer o valor das prestações para o valor presente. A resposta é R$ 3.790,79, valor também constante do artigo que ora comentamos.

Mas, como é que se chegou a tal valor?

Tal valor é resultado da somatória dos valores presentes de cada uma das prestações. Assim:

A primeira prestação, paga após o transcurso do mês, equivale (Valor Presente) a R$ 909,09. Ou seja, este valor presente, líquido dos juros, após o transcurso temporal é que recebe os juros de 10%, (R$ 909,09 * 1,10 = R$ 1.000,00) [32] perfazendo R$ 1.000,00 que é o valor da primeira prestação.

O valor presente das próximas prestações é progressivamente menor porque os juros, pelo transcurso do tempo, serão progressivamente maiores. [33] Assim:

P1 = 909,09
P2 = 826,45
P3 = 751,31
P4 = 683,01
P5 = 620,92

Os juros, por sua vez, são calculados pelo diferencial entre o valor presente de cada parcela e o efetivo desembolso. Ou seja, os juros realizam-se após o transcurso temporal.

Assim:

parcela

índice juros prestação VP juros
[1] 1,10000 R$ 1.000,00 R$ 909,09 R$ 90,91
[2] 1,21000 R$ 1.000,00 R$ 826,45 R$ 173,55
[3] 1,33100 R$ 1.000,00 R$ 751,31 R$ 248,69
[4] 1,46410 R$ 1.000,00 R$ 683,01 R$ 316,99
[5] 1,61051 R$ 1.000,00 R$ 620,92 R$ 379,08
         
    R$ 5.000,00 R$ 3.790,79 R$ 1.209,21

Tabela 6: Planilha de Amortização – Fluxo Descontado

Perceba, o leitor, que cada prestação tem o mesmo valor (R$ 1.000,00) . Mas, para que se possa, efetivamente comparar valores temporalmente diferentes, é preciso reduzir cada prestação ao termo comum. Este termo comum é o valor presente. Assim, contrapõe-se o valor do empréstimo ao valor do retorno.

Destas informações, Teles trata de refazer a tradicional planilha de amortização que, no seu dizer, "camufla a incidência da capitalização composta dos juros". Fica tal planilha assim demonstrada.

A B C D E F G H I
parcela capital
saldo anterior
capital pago capital saldo juros do mês juros acumulados juros pagos juros saldo saldo final
(capital + juros)
      R$ 3.790,79         R$ 3.790,79
[1] R$ 3.790,79 R$ 909,09 R$ 2.881,70 R$ 379,08 R$ 379,08 R$ 90,91 R$ 288,17 R$ 3.169,87
[2] R$ 2.881,70 R$ 826,45 R$ 2.055,25 R$ 316,99 R$ 605,16 R$ 173,55 R$ 431,60 R$ 2.486,85
[3] R$ 2.055,25 R$ 751,31 R$ 1.303,93 R$ 248,69 R$ 680,29 R$ 248,69 R$ 431,60 R$ 1.735,54
[4] R$ 1.303,93 R$ 683,01 R$ 620,92 R$ 173,55 R$ 605,16 R$ 316,99 R$ 288,17 R$ 909,09
[5] R$ 620,92 R$ 620,92   R$ 90,91 R$ 379,08 R$ 379,08 R$ 0,00 R$ 0,00
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Tabela 7: Demonstrativo de Amortização

A questão que emerge da Tabela 7 é a comparação dos valores de desembolso com os valores presentes de cada parcela. Então, trata-se, na verdade, de comparar a taxa de juros e o valor presente que efetivamente é quitado com cada parcela. De qualquer modo, o que Teles quer destacar é que cada prestação, a partir da consideração do seu valor presente, quita primeiro o principal; os juros são quitados pelo diferencial entre valor presente e valor nominal.

O que sobra de tal operação quita, apenas parcialmente os juros que foram capitalizados. De qualquer modo, o sistema acaba com a cortina de fumaça que existe sobre a paga de valores fixos e constantes (no caso, R$ 1.000,00) . O valor pago, sob a ótica do fluxo descontado, não é nem pode ser, por conta do próprio conceito de juros, [34] constante. Em decorrência, o saldo dos juros não quitados vai-se reincorporando ao capital, estando configurado, desta forma o anatocismo.

2.3 – A lei de São Tomé

Mesmo que Teles tenha exposto muito bem o seu argumento, pode ser que existam pessoas ainda não convencidas de tal engenharia econômica. [35] De fato, esta exposição foge ao que, normalmente, se ouve e se lê a respeito do assunto. Aliás, a própria legislação comum prevê o pagamento, primeiro, dos juros para, depois, ser efetuada a paga do principal. [36]

Então, e porque a lei de São Tomé é boa e necessária à ciência, é imperativo verificar a questão por mais um ângulo de observação.

Imagine-se o caso de tabela de amortização que tenha a finalidade de quitar um empréstimo de R$ 3.000,00 em 3 pagamentos. Admitimos a taxa de juros de 10% ao mês. Tomamos, inicialmente, a Tabela Price para identificar o valor da prestação mensal.

vp = 3000
n = 3
i = 10% am

Dos dados indicados, temos que a prestação mensal (PMT) é igual a R$ 1.206,34. Pois bem, se trouxermos tal parcela ao seu valor presente, temos que o valor da parcela inicial é de R$ 1.096,67. Ou seja, em consideração à taxa de juros da amortização, o valor presente da parcela é de R$ 1.096,67.

O diferencial entre o valor da prestação e o valor nominal pago corresponde ao montante de juros liquidados, juros estes que se realizam após o transcurso do tempo. Assim, R$ 1.206,34 - R$ 1.096,67 = R$ 109,67. Ou seja, quitam-se, apenas, R$ 109,67 de juros quando deveriam ter sido quitados R$ 300,00. Há um saldo remanescente de juros que não se quita com a parcela.

Em decorrência, é de se perguntar qual é o valor da prestação necessário para impedir que os juros não pagos venham a compor a base de cálculo da próxima parcela?

O valor necessário para que não haja resíduo de juros a serem incorporados na próxima contraprestação é, pasme o leitor, R$ 3.300,00. Se o valor nominal for, ao invés de R$ 1.206,34, R$ 2.000,00, ainda assim, haverá saldo de juros não quitados no importe de R$ 118,18 (cf. a Tabela 8) . De fato, o valor presente dos R$ 2.000,00 perfaz R$ 1.818,18. Este valor (e não os R$ 2.000,00) é que deve ser contraposto ao valor presente da dívida (R$ 3.000,00) .

parcelas vp juros principal pago saldo principal nominal pago juros pagos saldo juros saldo
[0] 3.000,00             3.000,00
[1] 3.000,00 300,00 1.818,18 1.181,82 2.000,00 181,82 118,18  

Tabela 8: Prestação Necessária I

O problema acusado na Tabela 8 somente tem fim com a paga de R$ 3.300,00 (cf. Tabela 9) . Ou seja, o valor presente de R$ 3.300,00, na primeira prestação, equivale aos R$ 3.000,00, valor do empréstimo.

parcelas vp juros principal pago saldo principal nominal pago juros pagos saldo juros Saldo
[0] 3.000,00             3.000,00
[1] 3.000,00 300,00 3.000,00 - 3.300,00 300,00 -  

Tabela 9: Prestação Necessária II

Isto posto, já se pode afirmar que, qualquer plano de amortização sempre se constrói tendo por base a sistemática dos juros compostos. Neste caso, não há como descaracterizar a prática do anatocismo.

Há duas exceções para tal juízo sobre as tabelas de amortização. A primeira se dá pelo uso e ocorrência dos juros simples, totalmente em desuso na sociedade financeira moderna. A segunda é o permissivo legal de aplicar a capitalização dos juros vencidos somente anualmente. Economicamente, isso ainda não deixaria de ser aplicar juros compostos com prazo de capitalização anual. Mas, é isso que a lei permite e, não chama tal sistemática de juros compostos. A legislação entende, singelamente, que o credor tem direito, após o transcurso de um ano, de capitalizar (cobrar) os juros sobre o capital emprestado.

2.4 – Onde está o Coelho?

A profunda meditação sobre o presente texto pode levar o leitor a situação de perplexidade. Onde, afinal de contas, está o truque? Por que não é possível entender que o mundo funciona de um jeito simples como pretendem os autores que sustentam a inexistência do anatocismo? Não seria o caso de eu estar tentando, por meio da matemática financeira, iludir os leitores? Por que, cargas d’água, o mundo não pode ser do jeito como a Tabela 1 apresenta?

O mundo não pode ser do jeito simples porque o coelho está, tanto na taxa de juros quanto no tempo. O tempo altera o valor da pecúnia. O valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) do exemplo citado em 2.3 – A lei de São Tomé e que é objeto de mútuo guarda, em si mesmo, o germe da valorização. Após o transcurso de um período de tempo, incorporará os juros, os frutos do capital. É como se o capital pecuniário se comportasse em paralelo ao que ocorre com uma infecção. Após o transcurso temporal, os R$ 3.000,00 já serão mais R$ 3.000,00.

Então, admitindo os juros de 10% por período, após o transcurso do período, estes 3 mil já não serão 3; serão 3 mil e trezentos. Se não houvesse taxa de juros e o transcorrer do tempo desprezível, bastaria que fossem pagos 3 parcelas de 1 mil para quitar o empréstimo.

Mas, existindo juros fixados temporalmente, estes afetam, não apenas o valor mutuado, mas, também, o valor de amortização do empréstimo. Este valor é pago após o transcurso temporal. Então, quanto vale o valor da parcela? Para saber o valor da parcela é preciso contrapor o valor do pagamento (valor futuro) ao valor do empréstimo (valor presente) . Esta é a realidade. A cortina de fumaça é a idéia simplória de que o valor mutuado não se altera ele próprio por conta dos juros. Os juros contratados afetam todos os componentes do financiamento.

Os juros, simploriamente calculados como R$ 300,00, incidentes sobre os R$ 3.000,00 iniciais não são uma parcela de plus distinta do valor inicial; são um emoliente ao valor original. Os juros que se capitalizam alteram o valor original, tornam equivalentes os R$ 3.000,00 iniciais, após o lapso temporal, a R$ 3.300,00. De igual modo, pelo inverso, a prestação paga somente pode contrapor-se ao valor futuro (no caso, R$ 3.300,00 contra R$ 1.206,34) ou, ao valor presente (no caso, R$ 3.000,00 contra R$ 1.096,68) .

O coelho da cartola está na impropriedade de comparação dos valores presentes e futuros. Ou se usa o fluxo de desconto sobre o valor futuro trazendo-o para o presente ou, alternativamente, se usa o fluxo de adução sobre o valor presente levando-o para o futuro. [37] O que não dá, em absoluto, é tratar a matemática financeira como se fosse a casa da sogra.

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Sobre o autor
Marcos Kruse

Perito Judicial Cível. Bacharel em Direito. Economista. Doutorando em Direito Civil pela Universidade Nacional de Lomas de Zamora (UNLZ) – Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRUSE, Marcos. Tabela Price e anatocismo.: Considerações fundamentais afetas ao direito comum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1520, 30 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10331. Acesso em: 25 abr. 2024.

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