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Tabela Price e anatocismo.

Considerações fundamentais afetas ao direito comum

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30/08/2007 às 00:00
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3 – A CASA ARRUMADA

A casa agora está arrumada, limpa e perfumada. Muito boa esta sensação. O que resta, agora, é indagar pelas razões da prevalência da adoção da Tabela Price ou qualquer outra (porque todas funcionam sob os mesmos pressupostos) no sistema financeiro brasileiro e mundial.

Independente de quaisquer outros motivos, a razão principal decorre da velocidade de realização dos lucros bancários. No mundo econômico incipiente, o credor poderia esperar, sem grandes dificuldades, a realização do seu lucro. Não custava esperar anos até que o capital e os juros fossem devolvidos. O capitalismo ia a passos lentos e seguros.

Todavia, já não vivemos esta fase incipiente. O capitalismo tem pressa. Corre em desabalada carreira e tem pressa na realização dos lucros; tem pressa quanto à circulação e retorno financeiro. O capital financeiro realiza os seus lucros por intermédio da circulação. Sem circulação, não há como realizar os lucros.

Se pudesse, o capitalismo bancário moderno trataria de sugar, diariamente, os lucros, capitalizando diariamente os juros que cobra pela venda do dinheiro que têm à disposição.

A legislação, por seu turno, não está adaptada a tal voracidade financeira. Mas, não faltam vozes no sentido de criticar o tartaruguismo e a falta de modernidade da estrutura jurídica nacional, [38] nem asseclas do capital que deixam de perceber o que ocorre no subterrâneo da realidade. [39] Muitos, aliás, perdem-se no meio de tanta crítica. Não nos esqueçamos que, do jeito que a coisa está, os cidadãos terão menos proteção contra o sistema financeiro do que contra os assaltantes e malfeitores que sempre existiram. No que diz respeito ao sistema financeiro, a roubalheira é garantida porque a lei e subterfúgios diversos acabou por criar um grupo dos intocáveis, vale dizer, os banqueiros.

O problema de Al Capone, como é sabido, foi ter sonegado impostos e por essa razão foi condenado à prisão. Faltou-lhe maior esperteza. Deveria ter criado um banco no Brasil. Digo no Brasil porque aqui vale prender bicheiro; [40] gente dos bancos, nem pensar. [41]

Mas, se a legislação é assim, por que os bancos não modificam os seus procedimentos?

Por uma razão básica e simples. A maior parte dos devedores é constituída por gente simples, que fará tudo o que estiver ao seu alcance para quitar as suas dívidas. Para a maior parte do povo simples, continuamente espoliado pelo Governo [42] e pelos bancos, somente resta a ilusão de que a coisa mais importante neste mundo é ter um nome limpo.

Uma última observação vem refletir um pouco sobre as profissões de advogado e de economista. Aprendi muitas coisas nos cursos de economia e direito. Mas, a coisa mais importante, aquela que distingue e torna alguém realmente um advogado ou economista é o senso crítico. Principalmente o economista deve olhar além das aparências, perceber o real movimento por debaixo da calmaria. Ser economista é saber desvelar o véu que camufla a realidade. O advogado, por seu turno, exatamente para que sua profissão tenha relevância social, deve compreender como é que funcionam os mecanismos sociais. [43]

Sem tal percepção e agudo senso crítico, inevitavelmente haveremos de retroceder a fases ideológicas pré-capitalistas. Vamos acabar defendendo a idéia de que a agricultura é a única fonte de riqueza de um país qualquer ou, defendendo a idéia de que o Brasil é um país rico porque conta com muitos recursos minerais. Pior do que tudo isso é creditar os males da economia à inflação sem perceber que o real transtorno econômico é o da transferência de renda. Nenhuma destas posições aqui denominadas pré-capitalistas é condizente com o que se espera de um verdadeiro economista e de um verdadeiro advogado.

Isto posto, concluo o artigo no entendimento de que, data venia posições adversas, a Tabela Price de amortização, e não apenas ela, baseia-se na adoção sistemática da capitalização de juros compostos. Ou seja, estruturalmente admite o anatocismo como forma de equacionar uma tabela de amortizações. [44] Com esta posição, alio-me, portanto, à minoria que pensa desta forma. [45]


Notas

01 Antonio Pereira da SILVA, O sistema de Amortização Price não Pratica Anatocismo, In: Corecon-PR, [Internet]. (Nota do Editor: o texto também está disponível no Jus Navigandi, em http://jus.com.br/artigos/5647)

02 O artigo citado foi também publicado, de modo extremamente mutilado, na Revista Diálogo Econômico, nº 2, out/2004 do Corecon-PR. Pela mutilação, recomendo o acesso ao artigo em sua integralidade.

03 Carlos Alberto GANDOLFO, Anatocismo na Revista Diálogo Econômico nº 3, fev/2005, p. 19.

04 DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO, Nova Fronteira, 1999.

05 O termo anatocismo deriva originalmente do grego que reúne o advérbio a n a (ao longo de, através de, durante) + t o k i z w (emprestar a juros) . Cf. Isidro PEREIRA, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Porto: Apostolado da Imprensa, 5ª ed., 1976. Ou seja, anatocismo é a cobrança dos juros que se calculam sobre os próprios juros.

06 Cf. a abordagem de Celso OLIVEIRA. A aplicação da lei de usura financeira aos contratos em discussão e a revogação da súmula 596 do Supremo Tribunal Federal In: Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/2507 [internet].

07 DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984. A definição jurídica é melhor, mas, ainda capenga porque a redação é sujeita a interpretações errôneas.

08 DE PLÁCIDO E SILVA, Op. Cit.

09 E, o assunto da capitalização é uma grande salada que nem todos digerem sem fazer uma grande confusão. Vide Deltan Martinazzo DALLAGNOL. Capitalização de juros no direito brasileiro In: Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/3439 [internet].

10 O dicionário Antonio HOUAISS é mais preciso na definição uma vez que capitalizar significa "juntar ao capital" (juros e dividendos) ou "transformar em capital" (imóveis) . Capital, pela própria etimologia do termo, indica o principal (a cabeça, caput, capita) ao qual são agregados juros (acessórios) .

11 Esta é também a conclusão de Gilberto da Silva MELO, Juros simples ou Compostos, In: http://www.gilbertomelo.com.br/tabelaprice.php [internet].

12 Conforme propõe MELO em sua argumentação na obra citada, os juros compostos implicam existência de anatocismo. Diz ele "a matemática financeira, através de conceitos e fórmulas, só admite duas formas de aplicação de juros: simples ou compostos. Se não são simples, só podem ser compostos. Pela simples utilização da fórmula já se embutem os juros compostos nas prestações a serem pagas. Matematicamente só se consegue retornar o mesmo capital se as prestações forem retornadas a valor presente pela fórmula de juros compostos". Apesar do argumento utilizado, ainda não está perfeitamente demonstrado que os juros compostos sejam equivalentes a anatocismo.

13 Mas, a MP 1963-17 acabou por permitir, às instituições financeiras, a prática do anatocismo. Sobre o assunto, cf. Bruno Mattos e SILVA. Anatocismo legalizado: MP 1963-17 beneficia as já poderosas instituições financeiras. In: Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, mai. 2000. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/730 [internet].

14 Não há falta de gente que responda negativamente a tal pergunta. Cf. Oziel CHAVES. Aspectos financeiros do anatocismo In: Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 48, dez. 2000. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/738 [internet];

15 Aliás, é exatamente assim que são propostas as ações de execução por inadimplência contratual. Se, por exemplo, houve um financiamento em 24 parcelas e 10 não foram adimplidas, a execução do crédito vai pautar-se pelo cálculo a partir das parcelas inadimplidas. Cada uma das parcelas adquire vida própria de modo que as parcelas inadimplidas sofrem, cada uma por si, o cálculo das taxas de juros contratadas, além dos juros moratórios, correção monetária, honorários advocatícios, etc. Não se quita um montante qualquer, mas, um conjunto de prestações.

16 Código Civil Brasileiro vigente (!!!!) artigo 591 permite a capitalização anual dos juros. Ou seja, os juros não podem ser cobrados (capitalizados) mensalmente.

17 Não é apenas o Código Civil vigente (!!!!) que não prevê a capitalização mensal dos juros. A proibição de tal prática também consta no Decreto 22.626/33 que prevê, no artigo 4º "é proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano em ano."

18 A questão da capitalização dos juros é assombrosa. Luiz Gonzaga Juqueira de AQUINO FILHO, Respostas a Declaração em Defesa de uma Ciência Matemática ou Financeira ou na Prática a Teoria é Outra, In: www.sindecon-esp.org.br/artigos/artigo_resposta_mat.pdf [internet] acabou se dispondo, tal qual Dom Quixote de La Mancha, a defender a ciência financeira dos ataques de infiéis que praticam táticas talibanescas. Na verdade, o autor indignou-se contra um grupo de professores de matemática financeira porque estes assinaram uma declaração em que reconhecem a contemplação dos juros compostos no Sistema Price. Ora, é até patético dizer o contrário. A Tabela Price contempla juros compostos. Ou, pensa o autor, que se tratam de juros simples? De fato, no afã de refutar a idéia do anatocismo (cf. o artigo citado na nota de rodapé , adiante) , acabou por meter os pés pelas mãos. A solene declaração dos professores de matemática financeira nada fala sobre o anatocismo; fala, apenas, dos juros e capitalização composta, aplicável, por conta das diferentes capitalizações que ocorrem durante o financiamento (no caso, da casa própria) . Juros simples são aqueles que são aplicados uma única vez sobre o principal. Exemplo típico de juros simples pode ser encontrado na Justiça de Trabalho. Sobre os créditos trabalhistas, aplica-se a taxa de juros de 1% ao mês simples. Ou seja, é devida uma capitalização sobre o montante do crédito apurado. Por conta do ataque quixotesco contra moinhos de vento, o restante do artigo de AQUINO FILHO fica comprometido. Fica no ar, a pergunta com que é concluso o artigo, pergunta esta que se retoma adiante (2.2 – A pergunta que não quer calar) .

19 Adolfo Mark PENKUHNI, A Legalidade da Tabela Price, In: http://www.forense.com.br [internet].

20 Maria Helena DINIZ, Dicionário Jurídico, vol. 3, São Paulo: Saraiva, 1998.

21 Em se tratando de diferentes contas com previsão de juros simples, pode-se falar que os juros acumulados das contas perfaz tanto.

22 Humberto Piragibe MAGALHÃES & Cristóvão Piragibe Tostes MALTA. Dicionário Jurídico. 8ª ed., Rio de Janeiro: Editora Destaque.

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23 Cf. os fundamentos indicados nas notas de rodapés e supra.

24 O Direito acaba por não admitir a nomenclatura juros compostos por capitalização anual. Com isso, acaba por existir um novo conceito jurídico relativo aos juros.

25 Contra a idéia de A. P. da SILVA, Op. Cit., o qual considera ser um absurdo o problema da exigibilidade dos juros.

26 Outra questão diferente e impertinente aos objetivos do presente artigo é se tais regras jurídicas de fato funcionam dentro das instituições sociais nacionais. O fato é que não porque o percentual dos que recorrem ao judiciário é muito pequeno.

27 Luiz Donizete TELES, Tabela Price e Prática de Anatocismo, In: Corecon-SP [internet].

28 Deraldo Dias MARANGONI, A Tabela Price e a Capitalização dos Juros, In: Corecon-SP [internet].

29 Luiz Gonzaga Junqueira de AQUINO FILHO, Tabela Price e a Prática do Anatocismo, In: www.sindecon-esp.org.br/artigos/resptabelaprice.pdf [internet].

30 Cf. nota de rodapé supra.

31 Luiz Donizete TELES, A Capitalização de Juros na Tabela Price, In: Corecon-SP [internet].

32 Desconsidero, neste artigo, os desvios centesimais da conta. Por impertinente, deixo de explicitar os meandros mais elementares dos cálculos, mesmo porque, a pressuposição deste artigo é que o leitor conheça as regras básicas da aritmética e da matemática financeira.

33 Os juros são maiores na última parcela porque o transcurso do tempo aumenta o importe dos juros. Ou seja, na última parcela, os juros serão muito maiores do que na primeira. Todavia, a percepção de tal realidade somente pode acontecer se o leitor compreender como funciona o raciocínio do fluxo de caixa descontado, ou seja, compreender o que significa o valor presente de qualquer prestação.

34 Os juros representam o ganho que se tem sobre os empréstimos fungíveis, em especial, o dinheiro. Mas, o ganho somente ocorre pelo transcurso temporal. Sem o tempo, os juros deixam de ter realidade porque o empréstimo somente pode ser perfectibilizado dentro de categorias temporais. Inexiste um empréstimo feito fora do tempo.

35 Aliás, comum é que as pessoas não consigam perceber a realidade por trás da aparência simples e inocente de que os juros nunca são calculados sobre juros.

36 Conforme prescrição do Código Civil Brasileiro, art. 354. Mas, é bom dizer que a intenção da previsão do texto legal é, apenas, defender o devedor contra a prática do anatocismo.

37 No caso, o presente é dado pelo momento da fixação contratual; o futuro refere-se ao momento de quitação das parcelas.

38 Quem quiser encontra literatura sobre este tema. O próprio Departamento de Estudos e Pesquisas do Banco Central do Brasil publicou, em 1999, Juros e Spread Bancário no Brasil. Nesta publicação, entre as medidas legais sugeridas, preconiza-se que seja feito "esclarecimento sobre o anatocismo". O tal esclarecimento diz respeito, evidentemente, ao poder judiciário que "vem dando ganho de causa a devedores que alegam a validade do dispositivo do Decreto 22.626/33 que trata da não capitalização dos juros". Outra publicação do Banco Central, sob responsabilidade de Pedro FACHADA & Luiz Fernando FIGUEIREDO & Eduardo LUNDBERG, Sistema Judicial e Mercado de Crédito no Brasil In: Notas Técnicas do Banco Central do Brasil, nº 35, março 2003, aprofunda a questão do esclarecimento. Conforme os autores, "para evitar que alguns devedores continuassem a utilizar a morosidade judicial em seu benefício, o governo editou a Medida Provisória esclarecendo sobre a legalidade da cobrança de juros sobre juros (anatocismo) pelas instituições financeiras". Ou seja, para o leitor atencioso, não se trata do Banco Central negar a existência do anatocismo; trata-se de defender a legalidade de sua cobrança. A falta de modernidade mencionada no texto refere-se, evidentemente, à falta de adaptação jurídica à lógica bancária que é, na própria avaliação dos mercados financeiros, o melhor e mais simples dos mundos.

39 E aqui temos o grande mérito de Karl Marx. Independente de concordar ou não com suas doutrinas, Marx destacou-se do restante da turba pelo fato de investigar como o mundo econômico se comporta; não conforme a aparência, mas, conforme a realidade do movimento. Neste sentido, todo economista ou jurista sério tem de tomar parte deste insight.

40 E, já alerto o leitor para o fato de que a ação do Estado contra os bicheiros baseia-se em razões de Estado. A rigor, o jogo de bicho é muito mais honesto do que toda a jogatina legalizada. Esta sim, não passa de uma grande roubalheira.

41 Cf. Elza Alinde Miranda CARDOSO, Das dificuldades da aplicação do direito perante o poder dos bancos no atual governo brasileiro: anatocismo institucionalizado. In: Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 46, out. 2000. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/721 [internet]. O caso de prisão de alguns banqueiros não tem ligação com o que estamos dizendo neste momento.

42 Refiro-me, especificamente, à questão tributária.

43 Sem a exata compreensão dos mecanismos sociais, torna-se, o advogado, mero instrumento da manutenção do status quo. O advogado deve defender o seu cliente sem que isso signifique ser ignorante em relação ao que realmente ocorre atrás do véu que cerca a realidade.

44 Com essa conclusão, coloco-me ao lado daquela minoria de economistas que, conforme o sindicato dos economistas de São Paulo, "não têm conhecimento técnico-científico" sobre o assunto. Cf. os termos do Informe do Sindecon, ano VI, nº 115 de julho/2003, In: http://www.sindecon-esp.org.br/Informe/Informe115.pdf [internet].

45 Contra meu posicionamento está a maioria. Mas, a ciência não se constrói pela democracia e sim, pelo convencimento da verdade de cada proposição.

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Sobre o autor
Marcos Kruse

Perito Judicial Cível. Bacharel em Direito. Economista. Doutorando em Direito Civil pela Universidade Nacional de Lomas de Zamora (UNLZ) – Argentina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRUSE, Marcos. Tabela Price e anatocismo.: Considerações fundamentais afetas ao direito comum. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1520, 30 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10331. Acesso em: 22 dez. 2024.

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