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A constitucionalização do direito de herança:

da garantia ao direito à limitação da autonomia de vontade

12/04/2023 às 17:28

Resumo:


  • O direito de herança foi constitucionalizado pela Constituição de 1988, alterando a forma como a autonomia de vontade do titular dos bens é entendida.

  • A partir dessa constitucionalização, o herdeiro legítimo passou a ser privilegiado em relação ao testamento, sendo definido legalmente no Código Civil de 2002.

  • A limitação da autonomia do testador em relação à herança é consolidada judicialmente para proteger os interesses tanto do testador quanto dos herdeiros.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Considerando a constitucionalização de direito de herança, quais os efeitos na relação entre esse direito e a limitação da autonomia de vontade?

INTRODUÇÃO

Este estudo aborda a constitucionalização do direito de herança, que foi uma grande evolução no direito das sucessões, pois, como se verá, houve significativa modificação da forma como deve ser entendida a autonomia de vontade daquele que possui bens e direitos a serem destinados a herdeiros.

Havendo previsão legal de herdeiros legítimos e herdeiros testamentários, a problemática para o estudo busca resposta a seguinte questão: considerando a constitucionalização de direito de herança, quais os efeitos na relação entre esse direito e a limitação da autonomia de vontade?

Realizando pesquisa bibliográfica, com consulta na doutrina, na legislação e na jurisprudência, pode-se chegar ao objetivo proposto, qual seja o estudo do conteúdo relativo aos temas acima citados.

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE HERANÇA: DA GARANTIA AO DIREITO À LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DE VONTADE

Sobre o conceito de herança pode-se dizer que são os bens, direitos e obrigações, aos quais tem direito os herdeiros e legatários assim que ocorre a morte de quem os possuía em vida sendo, em sentido amplo, toda a universalidade de bens, direitos e obrigações e, em sentido estrito, a quota-parte de quem possui o direito no acervo hereditário (CARVALHO, 202O, [s.p.]).

Paulo Lobo (2021, [s.p.]) informa que, historicamente, a sucessão testamentária sempre foi privilegiada nas normas existentes sobre o direito de sucessão, inclusive no Código Civil de 1916, que vigorou determinando que ‘morrendo a pessoa sem testamento, transmite-se a herança aos herdeiros legitimados’, ou seja, bem enraizada a autonomia da vontade do titular do acervo hereditário.

A partir da Constituição de 1988 é retirada essa maior valorização do testamento, passando o direito das sucessões a privilegiar o herdeiro legítimo, que são os definidos legalmente, conforme a situação de cada um em relação ao de cujus (LOBO, 2021, [s.p.]). É o que se encontra no inciso XXX do artigo 5º da CF/88: “é garantido o direito de herança” (BRASIL, 1988).

Assim sendo, os sucessores que se qualificam como herdeiros têm garantia constitucional à herança. Os demais sucessores dependem de definição pelo de cujus de quais bens, direitos e obrigações terão direito. Desta forma, o autor da herança não pode mais dispor de todo seu acervo testamentário como pretender porque está obrigado a respeitar a parte destinada aos herdeiros legítimos. Nesse sentido, Lobo afirma que as normas do Código Civil “hão de ser interpretadas em conformidade com as normas constitucionais” e, havendo dúvidas, “o intérprete deve encontrar o sentido que melhor comtemple o direito do herdeiro e não a vontade presumida do autor da herança” (LOBO, 2021, [s.p.]).

Atualizando, então, o conceito de autonomia da vontade no âmbito sucessório, Carvalho, tratando como princípio do respeito à vontade manifestada, expressa que determina “a obediência à vontade do autor da herança manifesta em testamento e prevalece sobre a sucessão legitima, exceto quanto à legitima resguardada aos herdeiros necessários” (CARVALHO, 2020, [s.p.]).

O Código Civil, que regulamenta o direito de herança constitucionalmente previsto, determina em seus dispositivos algumas limitações à autonomia de vontade, seja para não prejudicar os herdeiros, seja para proteger o testador, a exemplo:

Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

[...]

Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.

§ 1 o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.

[...]

Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:

I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos;

II - as testemunhas do testamento;

III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos;

IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento.

Art. 1.802. São nulas as disposições testamentárias em favor de pessoas não legitimadas a suceder, ainda quando simuladas sob a forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa.

Parágrafo único. Presumem-se pessoas interpostas os ascendentes, os descendentes, os irmãos e o cônjuge ou companheiro do não legitimado a suceder.

(BRASIL, 2002)

Ressalta-se o artigo 1.857, pelo qual toda pessoa capaz pode dispor da totalidade ou de parte de seus bens por testamento, havendo no §1º do referido artigo a proibição de incluir a metade relativa a legítima dos herdeiros no testamento.

Nesse contexto, traz-se decisão do Superior Tribunal de Justiça (STF) ressaltando que a prevalência do testamento somente se dará em relação ao que não se destina aos herdeiros necessários, estando, desta forma, o testador limitado em sua possibilidade testamentária. Neste caso havia somente um imóvel a destinar e esse imóvel foi dado em pagamento por dívida a filha, sendo que esta não era a única herdeira necessária (BRASIL, STJ, 2021). O STF manteve a decisão do Tribunal de Justiça de origem que anulou a escritura pública de dação em pagamento. Veja-se:

O apelo especial foi deduzido com base no art. 105, III, a, da Constituição Federal, em desafio a acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia assim ementado (fls. 610-611, e-STJ): DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. AÇÃO ANULATÓRIA DE ESCRITURA PÚBLICA DE DAÇÃO EM PAGAMENTO. PRELIMINARES DE OMISSÃO REJEITADAS. MATÉRIAS QUE SERÃO APRECIADAS NO MÉRITO RECURSAL. IMÓVEL DADO EM PAGAMENTO DE GENITORA PARA DESCENDENTE SEM AUTORIZAÇÃO DA SEGUNDA HERDEIRA. BEM ÚNICO DO PATRIMÔNIO DA FALECIDA MÃE. POSSÍVEL PREJUÍZO À LEGÍTIMA E PARCELA SUCESSÓRIA DA OUTRA HERDEIRA. ANULAÇÃO QUE SE IMPÕE, RETORNANDO O BEM AO PATRIMÔNIO DO ESPÓLIO. IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIÇÃO DE PARTILHA. ALUGUÉIS QUE DEPENDEM DA VERIFICAÇÃO DE ELEMENTOS DO INVENTÁRIO. NECESSIDADE DE INVENTÁRIO. PRELIMINARES REJEITADAS. RECURSOS IMPROVIDOS. [...] 4. Apesar de não ser sempre equiparável à compra e venda, a dação em pagamento deve respeitar o direito à legítima, verificando-se, no caso, prejuízo à coerdeira, que não autorizou a dação do único imóvel do acervo hereditário em pagamento de dívida com diversidade de valores, frustrando a obrigação legal de colação dos adiantamentos feitos em vida. 5. A anulação de negócio jurídico entre ascendente e descendente visa preservar a legítima, de modo a proteger o direito patrimonial dos demais herdeiros. [...] Desse modo, tendo em vista que as alegações feitas no presente agravo interno não são capazes de modificar o convencimento manifestado no aresto recorrido, permanece inalterada a decisão agravada. Ante o exposto, nego provimento ao agravo interno (BRASIL, STJ, 2021).

Outro caso julgado no STJ manteve a decisão do Tribunal de Justiça de origem para acatar a autonomia da vontade do testador, mesmo havendo erro técnico na redação do testamento. Veja-se:

AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTOS NÃO IMPUGNADOS. ARTIGO 1.021, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015. DECISÃO SINGULAR QUE NEGOU PROVIMENTO AO ARESP. INCONFORMISMO DA PARTE AUTORA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE NÃO VIOLADO. REVALORAÇÃO JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA 7, DO STJ. TESTAMENTO. APARENTE DISPOSIÇÃO DA LEGÍTIMA. NÃO OCORRÊNCIA. PRINCÍPIO DA SOBERANIA DO TESTADOR. [...] 4. Nos termos da jurisprudência pacífica deste STJ, “na existência de cláusula testamentária duvidosa, que remete a interpretações distintas, deve-se compreendê-la de modo que melhor se harmonize com a vontade manifestada pelo testador, em atenção ao princípio da soberania da vontade desse, insculpido nos artigos 112 e 1.899 do Código Civil [...] (BRASIL, STJ, 2020).

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Nesse caso, foi questionado pelo filho testadora que se viu prejudicado por ter sido destinado maior percentual à filha, ambos igualmente herdeiros necessários. No testamento constou:

[...] resolveu dividir o imóvel acima descrito e legar aos beneficiários a seguir relacionados, na seguinte proporção: lega 50% do imóvel acima referido para sua filha CINILDA FROESCHLIN KRUGER (...); lega 25% do dito imóvel para seu filho ÉLCIO FROESCHLIN (...); e lega 25% do dito imóvel para sua neta ARETUSA KRUGER (...), pedindo aos mesmos que aceitem a divisão na forma estabelecida (...) [...] (BRASIL, STJ, 2020).

Para decidir por manter a vontade da testadora, o entendimento foi de que, mesmo com o uso equivocado da palavra legar:

Como bem destacado pelo magistrado de origem, a testadora resguardou 50% do bem objeto de disposição de última vontade a seus dois herdeiros necessários, sendo 25% para cada um; em relação à parte disponível, atribuiu 25% a uma das herdeiras necessárias (elevando seu quinhão para 50%) e os outros 25% à neta (BRASIL, STJ, 2020).

Nos exemplos expostos observa-se que as decisões estão de acordo o objetivo constitucional e infraconstitucional quanto ao direito de herança e as limitações à autonomia da vontade, visando proteger os interesses tanto do testador como dos herdeiros.

CONCLUSÃO

O direito de herança foi tratado constitucionalmente a partir da Constituição Federal de 1988, levando a regulamentação hoje encontrada no Código Civil de 2002, sendo que anteriormente, no Código Civil de 1916, era com foco na vontade do titular dos bens e direitos em vida. Ou seja, os herdeiros legitimados somente herdariam se o titular morresse sem deixar testamento.

Essa privilegiada autonomia da vontade não mais se verifica, pois é atualmente limitada, já que aquele que vai elaborar seu testamento não pode dispor do que a lei determina que seja reservado aos herdeiros necessários, que corresponde a cinquenta por cento do total do acervo hereditário.

Com a constitucionalização da garantia do direito de herança, a sucessão passa a ter como privilegiado o herdeiro legitimo, definidos legalmente no Código Civil.

Ressalta-se que esse privilégio voltado ao herdeiro legitimo, refere-se somente a parte legalmente destinada a ele, ou seja, cinquenta por cento do total do acervo hereditário, pois o restante continua sendo objeto da vontade do testador, devendo, para ser válido o testamento, respeitar as regras proibitivas estabelecidas, que incluem não nomear quem escreveu o testamento, tabelião que aprovou o testamento, entre outros, bem como favorecer pessoas não legitimadas de forma simulada.

A limitação da autonomia do testador, especialmente em relação a parte da legítima, é consolidada no Poder Judiciário como pode ser verificado nos exemplos demonstrados.

Portanto, conclui-se que o direito de herança ganhou uma regulamentação diferenciada após sua constitucionalização, constando no Código Civil vigente que deve ser respeitada, estando o titular dos bens em vida limitado em sua autonomia, pois deve observar a proibição de não dispor em testamento da parte que é destinada aos herdeiros legítimos, além das outras restrições mencionadas acima.


REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 set. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 20 set. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1828655 – BA. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgamento: 31/05/2021. Publicação: 01/06/2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/decisoes/doc.jsp?livre=1828655&b=DTXT&p=false&l=10&i=1&operador=e&tipo_visualizacao=RESUMO. Acesso em: 30 set. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 1176887 – SC. Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Julgamento: 21/09/2020. Publicação: 24/09/2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1176887&b=ACOR&p=false&l=10&i=1&operador=e&tipo_visualizacao=RESUMO. Acesso em: 30 set. 2022.

CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das sucessões. São Paulo: saraiva educação, 2020. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:742870. Acesso em: 27 set. 2022.

LÔBO, Paulo. Direito Civil – volume 6: sucessões. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Disponível em: https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:754575. Acesso em: 20 set. 2022.

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Sobre o autor
Vinícius Rosindo Saraiva

Acadêmico de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAIVA, Vinícius Rosindo. A constitucionalização do direito de herança:: da garantia ao direito à limitação da autonomia de vontade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7224, 12 abr. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103507. Acesso em: 21 dez. 2024.

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