5. Excepcionalidade da Intervenção Federal e Cooperação Institucional
Conforme consignado, intervenção federal na segurança pública de um Estado Federado não significa intervenção militar, muito menos configura a introdução, no País, de um estado de exceção. Muito pelo contrário, o que se objetiva é justamente estancar o inegável processo de deterioração da segurança pública, fenômeno que reconhecidamente se encontrava em curso quando da edição do Decreto nº 9.288/18. Trata-se a intervenção federal de uma medida democrática, prevista expressamente no Texto Constitucional, direcionada para situações excepcionais, tal como a constatação de um grave comprometimento da ordem pública, exatamente a cruel e infeliz realidade diagnosticada no Rio de Janeiro, e que demandava mesmo a adoção de um instrumento jurídico excepcional.
A crise da segurança pública é ampla, profunda e perigosa [...] porque o crime criou coalizões. Ninguém sabe hoje a separação entre tráfico de drogas e tráfico de armas. [...] As drogas e as armas entram pela terra, pelo mar ou pelo ar, atravessam estradas e rios, cruzam fronteiras estaduais, chegam nas grandes cidades e alimentam o poder de grupos que tiram a soberania do Estado Nacional sobre partes do nosso território urbano. [...] A crise da segurança pública não é mais algo localizado, virou uma epidemia. Não é um problema segmentado, mas um risco generalizado. A violência está em níveis intoleráveis e [...] atingiu dimensão de país em guerra. [...] o inimigo é grande e ameaça não uma cidade, mas a Nação [...].
(MIRIAM LEITÃO; Todas as Forças, O Globo, 21 jan. 2018, p. 32)
Tendo em vista o princípio da cooperação que deve reger as relações entre os Entes Federados e os Poderes da República, certamente não poderia a União quedar inerte diante do caos instalado na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. No presente caso, o mesmo espírito cooperativo deve orientar a postura institucional do Legislativo e do Judiciário. Afinal, se às Forças Armadas foi conferida a missão de pôr fim ao grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro, devem elas igualmente receber os meios (em todos os aspectos legais possíveis, inclusive no campo da legítima e republicana cooperação institucional) necessários para o cumprimento exitoso da tarefa. Até mesmo porque, sabemos perfeitamente que não há, no País, outra Força Estatal a ser constitucionalmente convocada para debelar o “incêndio” que efetivamente ameaça arrasar o corpo social, capaz até mesmo de anular um dos direitos mais básicos dos indivíduos: o direito de ir e vir. Diferentemente de Gotham City, não dispomos de um Batman para salvar o Rio de Janeiro.
Destarte, contra o mal (vale dizer, o crime organizado) que se pretende controlar – posto que eliminá-lo seria uma utopia estatal –, é preciso muito mais do que militares e policiais armados. Precisamos, sim, ombrear – para usar um termo próprio da Caserna – com aqueles que, neste momento, estão arriscando a vida por uma sociedade segura e em paz, necessidade que o Congresso Nacional já havia considerado ao editar a Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que alterou o Código Penal Militar (CPM – Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), estabelecendo, em síntese, que os crimes de que trata o art. 9º do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa, de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante, ou de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da CF/1988 e na forma dos seguintes diplomas legais: Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica; Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999; Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e Lei n 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Portanto, andou bem o Parlamento Federal ao conferir tal competência à Justiça Militar da União, mormente se considerarmos o preciso argumento esposado pelo General VILLAS BÔAS, Comandante do Exército Brasileiro:
A Justiça Militar tem um histórico de austeridade na aplicação das penas e celeridade na condução dos processos. Submeter os militares das Forças Armadas ao foro da Justiça Militar, ao contrário do que possa parecer àqueles com menor conhecimento sobre o tema, torna mais rígida e célere a punição de crimes e abusos cometidos por esses representantes do Estado, nas operações de GLO”.
(General EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS; Revista de Direito Militar, nº 126, set./dez. 2017, p. 3)
Da mesma forma, a Advocacia-Geral da União já percebeu a necessidade de apoiar institucionalmente os executores da medida em questão, conforme demonstra a matéria publicada em O Globo, ora transcrita:
Defesa - Intervenção Terá Apoio Jurídico
Num encontro ontem com o interventor Walter Braga Netto, a ministra Grace Mendonça, advogada-geral da União, disse que três advogados do governo federal já foram indicados para prestar assessoramento direto ao general durante as ações no Rio. A reunião, que teve a participação do procurador geral do Estado do Rio, Claudio Roberto Pieruccetti Marques, foi para definir as responsabilidades jurídicas durante a intervenção federal. Ficou decidido que o governo do estado e a União devem buscar, sempre que possível, atuar em conjunto. E que a cooperação jurídica ocorrerá sempre que necessária.
Os acordos firmados foram descritos num memorando. O texto diz que a cooperação não afetará as respectivas competências constitucionais e legais da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral do Estado e que eventuais dúvidas sobre tais atribuições deverão ser solucionadas em comum acordo pelas instituições.
Após a reunião, Grace Mendonça ressaltou que não existe a figura de mandado de busca e apreensão coletivo. Ela disse, no entanto, que não há controvérsia quando os mandados definem as áreas onde as forças de segurança vão atuar.
- Todos nós sabemos que num ambiente de comunidade não se tem precisão em torno daquele endereço ou sequer se tem o endereço. Os mandados de busca e apreensão vêm bem delimitados em torno daquela extensão em que se dará a operação. Então, não enxergamos qualquer tipo de controvérsia - explicou a ministra.
O mandado de busca e apreensão é uma autorização dada pela Justiça para que a polícia vasculhe um determinado endereço ligado ao suspeito. Esses documentos são, normalmente, expedidos com o nome do acusado e o local onde a polícia pode entrar para buscar provas.
(BRUNO ALFANO; Defesa - Intervenção Terá Apoio Jurídico, O Globo, 3 mar. 2018, p. 8)
Assim, não há dúvida de que a chave para o sucesso desse tipo de empreitada encontra-se exatamente na cooperação. Não se pode admitir que o Estado, que é por definição uno e indivisível, possa se digladiar, em face de seus diferentes órgãos com distintas competências. Até porque, tecnicamente, não existem três Poderes. Apenas o Poder Estatal, cujo exercício funcional, por seu turno, é dividido nas esferas Executiva, Legislativa e Judiciária. Não obstante, o que se observa, na realidade, é uma espécie de auto-degradação do Poder Estatal, conforme registrado por DORRIT HARAZIM:
Toda cidade cuja rotina depende de um aplicativo como o Onde Tem Tiroteio (OTT-RJ), o qual só no primeiro mês deste ano (01/2018) registrou mais de cem confrontos a céu aberto, é uma cidade doente. Todo estado (federado) que tem a administração pública transformada em bandidagem tentacular, como o Rio de Janeiro, é um estado moribundo. E todo país cujos Três Poderes se revezam na capacidade de autodegradar-se é o retrato do Brasil de 2018 com seus 207 milhões de habitantes. Fica faltando uma sociedade com âncora na moral pública.
(DORRIT HARAZIM; Escassez de Moral Pública, O Globo, 4 fev. 2018, p. 20)
Sem um amparo jurídico, quer sob a ótica legislativa, quer sob o ponto de vista de uma adequada hermenêutica judicial, não há como enfrentar, com a devida e necessária parcela de êxito, o extraordinário nível de sofisticação e abrangência que a criminalidade logrou alcançar nos últimos anos.
A atuação de criminosos sob o controle de bem estruturadas organizações é um dos mais graves problemas do mundo contemporâneo. Em torno delas se estabelece um círculo vicioso de causas e consequências, envolvendo instituições estatais, que torna muito difícil o encontro de soluções. No Brasil, fatores como a exclusão social, o crescimento do narcotráfico, a ineficácia generalizada da segurança pública, a corrupção e a impunidade agravam ainda mais a situação. (General RICHARD FERNANDEZ NUNES; Revista Época, 5 mar. 2018, p. 20)
Nesta toada, não é razoável supor que um soldado convocado por uma determinação legal (compulsória e incondicional) não possa ostentar as condições de segurança jurídica mínimas para o cumprimento pleno e efetivo da missão que lhe foi conferida, preservando-o – a exemplo dos combatentes norte-americanos nas guerras que travam, internamente, através da Guarda Nacional, ou, externamente, com seu Exército Regular – de eventuais “revanchismos ideológicos”, assim como de outras “armadilhas jurídicas” desconexas com a correta exegese das regras excepcionais que autorizaram a própria intervenção federal (de natureza civil), conduzida por efetivos das Forças Armadas do povo brasileiro. Nesse particular contexto, não coaduna com os poderes extraordinários (porém não arbitrários, uma vez que expressamente previstos no Texto Constitucional e nas leis que com ele convergem) e com sua correta e adequada hermenêutica, que, em situações excepcionais, um agente militar do Estado, convocado para esta finalidade, não possa, legal e legitimamente, atirar em um bandido que exiba (em situação de pronto emprego) um fuzil de guerra, mesmo que ainda não esteja mirando diretamente para o militar, mas que seja absolutamente crível que pretendesse fazê-lo. É importante concluir que, em situações especialíssimas – como a de intervenção federal, de caráter excepcional –, o simples porte ostensivo de um fuzil de guerra absolutamente preparado para ser usado contra as Forças Militares e/ou Policiais do Estado já permite concluir que tal criminoso encontra-se em pronta situação de agressão injusta e iminente contra o agente estatal e/ou terceiros, caracterizando, assim, um dos requisitos objetivos necessários para a configuração da excludente de legítima defesa (art. 25 do Código Penal e o art. 44 do Código Penal Militar). Até mesmo porque, cumpre destacar, as excludentes de ilicitude elencadas na Parte Geral dos referidos Codex não devem ser interpretadas de modo restritivo, especialmente por se tratar de normas penais permissivas, raciocínio que se conjuga com o princípio constitucional da presunção da legitimidade dos atos praticados por agentes públicos.
Com efeito, apesar de a intervenção não se traduzir em um estado de exceção, ela se insere em um quadro de absoluta excepcionalidade – grave comprometimento da ordem pública, no qual se constata o frequente emprego de armas de guerra pelos criminosos – e, como tal, deve ser interpretada pelos integrantes da magistratura.
Os dados estão lá, mas são tantos que só de pensar em mergulhar naquele mundo de números já dá sono. O Brasil [...] tem uma das legislações mais modernas do mundo, mas não sabe fazer bom uso [e uma correta hermenêutica interpretativa] dela.
(ASCÂNIO SELEME; Os Cegos que não Viram o Brasil Ser Saqueado, O Globo, 8 fev. 2018, p. 13)
Resta evidente, entretanto, que eventuais excessos devem ser coibidos e punidos com extremo rigor, seja administrativamente, pelas próprias autoridades militares e policiais, seja judicialmente, pelos juízes. Aliás, o próprio General VILLAS BÔAS expressamente consignou que “execuções extrajudiciais, desvios de conduta ou violações de direitos humanos não encontram guarda no estamento das Forças Armadas, nem coadunam com os princípios morais e éticos observados por seus integrantes”, episódios que, caso venham a ocorrer, “resultarão em punição exemplar dos envolvidos” (Revista de Direito Militar, nº 126, set./dez. 2017, p. 3).
Não prover aos interventores os meios adequados para sua atuação seria condenar toda a operação ao fracasso, em prejuízo último do titular do poder político, ou seja, o povo fluminense e brasileiro. Ademais, seria também condenar, sem qualquer possibilidade de manifestação, a sociedade fluminense a suportar o estado de coisas com as quais ela infelizmente se acostumou a conviver.
A ONU entendeu isso perfeitamente e, durante sua intervenção no Haiti, liderada pelas tropas brasileiras, o sucesso decorreu, sobretudo, desse entendimento de que é legítima a ação de alguém que mata outrem que está portando uma arma de guerra, mesmo sem estar apontando diretamente para um cidadão ou para integrantes das Forças Militares e Policiais.
Em 13 anos no Haiti (não houve chancela para ações violentas das tropas que participaram da intervenção), o que demonstra a índole dos militares e o apego à legalidade [ainda que no contexto das regras legais e de engajamento outorgadas pela ONU]. (General AUGUSTO HELENO RIBEIRO; Tensão Permanente, O Globo, 24 fev. 2018, p. 10)
Executivo, Legislativo e Judiciário, portanto, devem atuar de mãos dadas, inclusive em respeito à autorização do Executivo, que foi concedida – em absoluta obediência às normas previstas na Constituição Federal –, ouvidos os Conselhos respectivos e com o aval do Legislativo, em benefício último da sociedade brasileira e carioca, que é quem, em última análise, paga os salários de seus membros.
Conclusão
Do exposto, pode-se inferir que o emprego das Forças Armadas na intervenção federal na área da segurança pública do Rio de Janeiro encontrou pleno amparo jurídico-operacional, não podendo tal medida ser equivocadamente rotulada de intervenção militar e, muito menos, como sendo o início da introdução, no País, de um estado de exceção. Muito pelo contrário, o que se objetivou foi justamente estancar o processo de deterioração da segurança pública, fenômeno que reconhecidamente se encontrava em curso quando da edição do Decreto Interventivo, e que foi, nesta hipótese, compulsório (e não meramente discricionário), em face da gravíssima situação de descontrole da segurança pública, na qualidade de função essencial (e, portanto, inafastável) do Estado e, consequentemente, de seus agentes.
Vale reafirmar, por oportuno, que a intervenção federal constitui uma medida democrática, prevista expressamente no Texto Constitucional, direcionada para situações excepcionais, tal como a constatação de um grave comprometimento da ordem pública, exatamente a realidade diagnosticada no Rio de Janeiro, e que demandava mesmo a adoção de um instrumento jurídico excepcional, cuja chave para o sucesso encontra-se exatamente na cooperação entre as Instituições e os Poderes da República. Afinal, sem um amparo jurídico, quer sob a ótica legislativa, quer sob o ponto de vista de uma adequada hermenêutica judicial, não há como enfrentar, com um mínimo de êxito, o extraordinário nível de sofisticação e abrangência que a criminalidade logrou alcançar nos últimos anos, e que, inclusive, a curto e médio prazos, se nada for feito, poderá conduzir nosso País – e não somente o Estado do Rio de Janeiro – a uma situação de fragmentação social, com a criação de verdadeiros “Estados Paralelos” em solo pátrio.