Resumo: O presente artigo objetiva analisar, à luz do Texto Constitucional e da legislação infraconstitucional aplicável, o emprego das Forças Armadas na denominada garantia da lei e da ordem (GLO) e em situações excepcionais de intervenção federal na área de segurança pública, institutos absolutamente inconfundíveis.
Palavras-chave: Forças Armadas. Garantia da Lei e da Ordem. Intervenção Federal.
1. Introdução
O presente artigo objetiva analisar, à luz do Texto Constitucional e da legislação infraconstitucional aplicável, o emprego das Forças Armadas na denominada garantia da lei e da ordem (GLO) e em situações excepcionais de intervenção federal na área de segurança pública.
De início, analisaremos a evolução histórica da destinação constitucional das Forças Armadas, bem como a razão que motivou a redação dada ao texto atual (art. 142, caput, da CF/1988), notadamente no que se refere à garantia da lei e da ordem (GLO), estabelecendo, ainda, a devida distinção entre esta missão e a intervenção federal decretada em 2018 pelo então Presidente MICHEL TEMER na área da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro.
2. A Missão das Forças Armadas na História Constitucional Brasileira
Conforme amplamente noticiado, o Estado do Rio de Janeiro, em diversas ocasiões, contou com o emprego das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem (GLO), uma das missões que lhe foram conferidas pela CF/1988. Em todos os casos em que as Instituições Castrenses foram convocadas a atuar na GLO, um aspecto em comum sempre veio à tona. Referimo-nos aos frequentes e desarrazoados questionamentos sobre a regularidade, à luz do Ordenamento Jurídico vigente, de tal emprego, fato que muito provavelmente guarda relação com episódios do passado nacional, quando as Forças Armadas foram efetivamente utilizadas como instrumento de estabilização política.
Refletindo a respeito das diversas atuações militares experimentadas ao longo da história brasileira, quando as Forças Armadas agiam como verdadeiro instrumento de equilíbrio institucional, é possível afirmar que tal emprego pretérito, dentre outros fatores, possuía alguma relação com aquilo que os dispositivos constitucionais pertinentes preceituavam acerca das missões anteriormente conferidas às Instituições Militares, dado que demanda, a priori, uma análise de tais previsões normativas.
Sintetizando o arcabouço constitucional relativo ao tema, cumpre consignar que a Constituição Imperial (1824) limitava-se a dizer que a Força Militar era essencialmente obediente ao Imperador. A Carta de 1891, por sua vez, previa que as Forças de Terra e Mar eram incumbidas da defesa da Pátria (no exterior) e à manutenção das leis (no interior), sendo obrigadas a sustentar as instituições constitucionais. Nos termos da Constituição de 1934, eram elas destinadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei. A Carta Varguista de 1937 relacionava o emprego das Forças Armadas à defesa do Estado. Segundo a Lei Magna de 1946, eram elas dedicadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. Do mesmo modo, a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, estabeleciam que as Forças Armadas destinavam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. Nota-se, pois, que a expressão garantia da lei e da ordem foi introduzida, pela primeira vez, na Constituição de 1934.
Por fim, de acordo com o art. 142, caput, da Lei Magna de 1988, as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais; e, por iniciativa de qualquer destes, à garantia da lei e da ordem. Conforme explica FERREIRA FILHO (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2008, p. 239), as duas primeiras destinações mencionadas na Constituição em vigor (defesa da Pátria; garantia dos poderes constitucionais) retratam o papel elementar das Forças Armadas, sendo relativas à própria ideia de defesa e soberania do Estado brasileiro. A última delas traduz hipótese em que as Forças Armadas poderão ser empregadas na garantia da lei e da ordem (GLO), por solicitação de qualquer um dos poderes constitucionais, por questões afetas, por exemplo, à ordem pública.
A leitura dos dispositivos constitucionais de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988 permite concluir que a redação prevista no art. 142, caput, da atual Carta Magna, notadamente a expressão por iniciativa de qualquer destes, não era encontrada nas demais Constituições, o que certamente não ocorreu por acaso. A nosso ver, a razão ponderável para a construção dada ao texto atual foi justamente evitar o manejo, antes frequente, mas atualmente impensável, das Forças Armadas como instrumento de estabilização política, por exclusiva iniciativa do Executivo, como tantas vezes ocorreu durante os séculos passados.
Cumpre, então, entender minimamente como a mencionada expressão restou introduzida na Constituição de 1988. Para tanto, recortes jornalísticos publicados por ocasião dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988) revelam intensos debates travados acerca da missão a ser conferida às Forças Armadas, conforme registrou O Globo, de 14 de janeiro de 1986, p. 3, na matéria Forças Armadas Debatem seu Papel na Constituição.
O papel constitucional das Forças Armadas será o principal tema da reunião entre os três Ministros Militares e os Chefes do Serviço Nacional de Informações, Estado-Maior das Forças Armadas e do Gabinete Militar da Presidência da República. A reunião será hoje no Quartel General do Exército e terá início às 10h30m. (O Globo, 14 jan. 1986, p. 3)
Depois de acentuadas disputas na Constituinte, a expressão por iniciativa de qualquer destes foi finalmente aprovada, conforme relata matéria de autoria de DALTON MOREIRA, publicada em 1988:
Apenas os partidos de “esquerda” foram contra a aprovação do artigo que regulamenta o papel constitucional das Forças Armadas. Por 326 a 102 votos e cinco abstenções, o plenário do Congresso constituinte manteve ontem o texto da Comissão de Sistematização (idêntico ao do Centrão) que permite aos militares defender o território nacional, garantir os poderes constitucionais e, por iniciativa de um destes (referência aos três Poderes), a lei e a ordem. [...].
“Se manteve a tutela militar porque a extensão da expressão ‘da lei e da ordem’ é muito abrangente. Pode ser tanto uma intervenção numa greve quanto um golpe militar”, disse o deputado José Genoíno (PT-SP), autor da tentativa de restringir os poderes das Forças Armadas. Sua emenda, que reproduzia integralmente o texto da ex-comissão de Estudos Constitucionais presidida pelo hoje senador Afonso Arinos (PFL-RJ), limitava a ação dos militares à defesa “da ordem constitucional”. (DALTON MOREIRA; Folha de São Paulo, 13 abr. 1988, p. 6)
De fato, é inegável a pertinência da introdução da referida expressão no Texto Constitucional vigente, de modo a não deixar qualquer margem de dúvida quanto ao papel das Forças Armadas no que se refere à garantia da lei e da ordem, atuação que se encontra absolutamente atrelada à iniciativa dos poderes constituídos. Da mesma forma, o Poder Constituinte Originário também determinou que as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas fossem estabelecidas através de Lei Complementar (art. 142, § 1º, da CF/1988). Assim, objetivando balizar de vez o emprego das Forças Armadas, a regulamentação do art. 142, § 1º, da CF/1988 deu-se por meio da Lei Complementar nº 97/99, cujo art. 15 assevera que a utilização das Instituições Militares na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem é de responsabilidade do Presidente da República. Da mesma forma, o § 1º do mesmo art. 15 confere ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Ademais, nos termos art. 15, § 2º, da citada Lei Complementar, a atuação das Instituições Castrenses na garantia da lei e da ordem ocorrerá, desde que esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio relacionados no art. 144 da CF/1988 (natureza subsidiária).
Nota-se, portanto, que a atuação das Forças Armadas, consoante o referido arcabouço normativo (notadamente a Constituição Federal e a Lei Complementar nº 97/99) encontra-se muito bem definida, o que permitiu uma verdadeira guinada na concepção estratégica das Instituições Marciais, de modo que é possível dizer que as Forças Armadas de hoje conhecem perfeitamente o importante lugar que ocupam no quadro institucional brasileiro. E mais: diante desse amplo mapa normativo, pode-se afirmar que as Forças Armadas cumprem um duplo papel. No plano principal, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais. Secundariamente, por iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, garantem a lei e a ordem, o que somente acontecerá subsidiariamente, ou seja, quando verificada a impossibilidade de os órgãos de segurança pública (arrolados no art. 144 da Lei Maior) prover uma resposta à demanda constatada (art. 15, § 2º, da Lei Complementar nº 97/99). Por conseguinte, o emprego das Forças Armadas em missões de GLO deve ser entendido como algo excepcional, passível de acontecer somente em situações que efetivamente fogem à ação dos órgãos de segurança pública, pela razão simples de que tal atuação, nos termos da lei de regência, deve ser subsidiária. De qualquer forma, cumpre frisar para efeito de desenvolvimento de um raciocínio comparativo, que o manejo das Forças Armadas na GLO não enseja o afastamento da autonomia do Ente Federado no qual as tropas estejam sendo empregadas.
3. A Postura Democrática das Forças Armadas do País
Não há como negar a evolução institucional experimentada pelas Forças Armadas de hoje, cuja subordinação constitucional aos poderes constituídos não permite mais o seu emprego como mecanismo de solução política. Afinal, como bem advertiu o Ministro CELSO DE MELLO, quando de sua posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), em 22 de maio de 1997, as crises políticas devem ser solucionadas dentro do quadro normativo delineado pelo Ordenamento Constitucional, com os instrumentos jurídicos nele previstos e com fundamento exclusivo no predomínio da Constituição e das leis, o que confere ao Judiciário como um todo, e em particular ao STF enquanto guardião do Texto Magno, um relevante papel (Mandado de Segurança nº 26.603/DF, Tribunal Pleno, julgamento em 4 de outubro de 2007).
Na mesma linha de dicção, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (FHC), em artigo publicado no Estado de São Paulo, em 2015, ao analisar a atual crise (moral, política, econômica, etc) vivida pelo País, assentou que:
Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira – a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. [...].
Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração “por dentro”, governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá “de fora”. No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se veem sinais.
Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós. (FERNANDO HENRIQUE CARDOSO; Chegou a Hora, Estado de São Paulo, 1 fev. 2015)
Vê-se, portanto, que FHC reconheceu que a atual conjuntura, diversamente do que ocorria no passado, impede que os militares resolvam adotar alguma solução heterodoxa para os graves problemas que atingem o País, justamente por estarem eles absolutamente compromissados com os alicerces de um Estado Democrático de Direito.
Ao contrário, tendo em vista o princípio da subordinação, as Forças Armadas de hoje demonstram rejeitar qualquer proposta autoritária, seja de esquerda ou de direita, estando perfeitamente conscientes do papel institucional que lhes foi reservado no contexto de um Estado Democrático de Direito, bem como de sua absoluta subordinação aos poderes constitucionais. Prova do que ora se afirma é a própria intervenção federal decretada pelo Presidente MICHEL TEMER na área da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, missão na qual as Forças Armadas como um todo, mas em particular o Exército Brasileiro, figuram como protagonistas, não obstante a preocupação exteriorizada pelo Comandante do Exército Brasileiro, General EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS, que reconheceu que o frequente emprego das Forças Armadas em operação de GLO não se apresenta como a situação ideal, “tendo em vista o Exército ser vocacionado, por natureza, à defesa externa da Nação” (Revista de Direito Militar, nº 126, set./dez. 2017, p. 2). O que o Comandante do Exército Brasileiro, com maestria, pretendeu dizer é que a missão precípua das Forças Armadas é a defesa da Pátria, e que atuar em missão de GLO constitui uma função secundária. Portanto, resta absolutamente comprovado que o protagonismo experimentado hoje pelas Forças Armadas não decorre de algum falacioso interesse militar pelo poder civil, mas da própria natureza do grave problema que motivou a edição do decreto interventivo (art. 1º, § 2º, do Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018 – ato relativo à intervenção federal na área da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro). Ora, é de se questionar: caso pairasse a mínima dúvida a respeito do compromisso das Forças Armadas do nosso País com a democracia, que Presidente da República nomearia como interventor um General de Quatro Estrelas? Soa evidente, portanto, a absoluta confiança depositada nas Forças Armadas.
4. Garantia da Lei e da Ordem e Intervenção Federal: Institutos Inconfundíveis
O emprego das Forças Armadas na denominada GLO (art. 142, caput, da CF/1988) não deve em nenhuma hipótese ser confundido com a figura da intervenção federal (art. 34 da CF/1988), instituto este que atinge temporariamente (de modo total ou parcial, a depender da amplitude do instrumento adotado) a autonomia do Ente Federado. Dentre as diversas hipóteses elencadas pela Constituição, importante mencionar, pela pertinência temática, o caso previsto no art. 34, III, da Lei Maior, segundo o qual a “União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, justamente o dispositivo ao qual o art. 1º, § 2º, do Decreto nº 9.288/18 faz referência. Excetuando-se o inédito cenário jurídico estabelecido por meio do mencionado Decreto, em todos os casos em que as Forças Armadas foram utilizadas na garantia da lei e da ordem no Rio de Janeiro (tais como a ocupação dos Complexos do Alemão e da Maré), a autonomia do Estado Federado não foi afastada por qualquer ato interventivo, razão pela qual o comando da segurança pública permaneceu sob a regência do respectivo Governador e do Secretário de Segurança Pública.
Malgrado toda a sorte de considerações (elogiosas ou críticas, indistintamente) levadas a efeito pelos mais diversos setores do Estado e da sociedade brasileira, e deixando de lado qualquer viés ideológico que possa comprometer uma leitura isenta do quadro jurídico-operacional pertinente à parcial intervenção da União na autonomia do Estado do Rio de Janeiro, parece-nos que o caminho trilhado pelo Ente Central encontra pleno amparo constitucional, notadamente o art. 34, III, da Lei Magna. Ademais, sob o prisma operacional, o fato de ter sido nomeado como Interventor um General de Exército (art. 2º, caput, do Decreto nº 9.288/18) em nada altera a lisura da medida decretada (ex officio) pelo Presidente da República. Pelo contrário, a natureza da missão impunha mesmo o chamamento das Forças Armadas (e de um Oficial General competente e habilitado para comandar as tropas) ao centro do problema, cuja gravidade salta aos olhos de qualquer pessoa minimamente informada. Aliás, para percebê-la, basta sair – com a devida cautela para não ser atingido por uma “bala perdida” – às ruas do Rio de Janeiro, cujo cenário é assim retratado.
Não se pode conceber a intervenção federal na segurança do Estado do Rio de Janeiro como um fato isolado, fora de contexto, sob risco de se cair numa armadilha. A decisão foi tomada pelo presidente MICHEL TEMER, a pedido do próprio governador LUIZ FERNANDO PEZÃO, que admitiu que a violência estava fora de controle [...].
Não é segredo para ninguém [...] o descalabro que aconteceu durante o carnaval [...]: arrastões em plena orla de Ipanema, saque a supermercado no Leblon, furtos e roubos por toda parte – alguns seguidos de covardes agressões às vítimas – e desordem generalizada. [...] Cariocas e fluminenses sabem que (estes episódios) eram apenas uma extensão do que já vinha ocorrendo, embora autoridades parecessem ignorar a gravidade da situação: adolescentes atingidos por balas perdidas dentro de escolas; bebê baleado na barriga da mãe; inocentes mortos em operações desastradas; policiais militares sendo assassinados em série. Em resumo, o caos.
Os números refletem esse cenário de anomia. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), o Estado do Rio fechou 2017 com 5.332 homicídios dolosos, o que representa um aumento de 5,57% em relação ao ano anterior. Os dados de janeiro de 2018 mostram que a situação permanece grave. Os casos de letalidade violenta (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e autos de resistência) aumentaram 7,6% em comparação com o mesmo período do ano passado (de 603 para 649).
Portanto, é nesse contexto que se deu a intervenção. E, analisando os fatos sem viés ideológico, não há por que comparar a situação atual com arroubos de autoritarismo dos anos de chumbo. O decreto foi aprovado pelo Congresso Nacional, com ampla maioria, respeitando a Constituição. Tudo dentro da lei.
Caberá a órgãos como Ministério Público, Defensoria Pública etc. denunciar eventuais desvios de conduta de quem quer que seja, como acontece no estado democrático de direito.
Se há hoje algum estado de exceção é o que impõe às comunidades o tráfico e a milícia, que espalham o terror e cobram taxas por serviços básicos que outros cidadãos não pagam. (Medida Necessária; O Globo, 5 mar. 2018, p. 10)
Embora o segmento crítico (e talvez desinformado) insista em etiquetar ideologicamente a aludida intervenção, adjetivando-a por meio da inserção do termo militar, taxando-a, incorretamente, de intervenção militar, cumpre recordar que a iniciativa da excepcionalidade não partiu – nem poderia mesmo partir, tendo em vista o profissionalismo e o completo afastamento das Forças Armadas da cena política – dos militares, mas do Chefe do Poder Executivo Federal, no âmbito de sua competência privativa (art. 84, X, da CF/1988). Frise-se, ainda, que o Congresso Nacional, no exercício do imprescindível controle político que lhe é inerente, analisou e aprovou a medida em questão (art. 49, IV, c/c art. 36, § 1º, ambos da CF/1988).
Vê-se, portanto, que a intervenção federal em questão, ainda que limitada à área da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, não somente encontra previsão na Constituição brasileira, como também corresponde a um instrumento presente nas mais diversas legislações constitucionais e infraconstitucionais no mundo democrático.
Exemplo recente de uma intervenção federal, circunscrita à segurança pública, ocorreu em Miami por duas vezes. Na primeira, no início do governo REAGAN, em 1981, com uma atuação maciça de efetivos da Guarda Nacional, e, posteriormente, em 2003, por determinação do governo BUSH. Em ambos os casos (ainda que com ênfase no primeiro), a operação revelou-se um grande sucesso, debelando a criminalidade que havia tomado conta daquela importante cidade turística norte-americana.
5. Excepcionalidade da Intervenção Federal e Cooperação Institucional
Conforme consignado, intervenção federal na segurança pública de um Estado Federado não significa intervenção militar, muito menos configura a introdução, no País, de um estado de exceção. Muito pelo contrário, o que se objetiva é justamente estancar o inegável processo de deterioração da segurança pública, fenômeno que reconhecidamente se encontrava em curso quando da edição do Decreto nº 9.288/18. Trata-se a intervenção federal de uma medida democrática, prevista expressamente no Texto Constitucional, direcionada para situações excepcionais, tal como a constatação de um grave comprometimento da ordem pública, exatamente a cruel e infeliz realidade diagnosticada no Rio de Janeiro, e que demandava mesmo a adoção de um instrumento jurídico excepcional.
A crise da segurança pública é ampla, profunda e perigosa [...] porque o crime criou coalizões. Ninguém sabe hoje a separação entre tráfico de drogas e tráfico de armas. [...] As drogas e as armas entram pela terra, pelo mar ou pelo ar, atravessam estradas e rios, cruzam fronteiras estaduais, chegam nas grandes cidades e alimentam o poder de grupos que tiram a soberania do Estado Nacional sobre partes do nosso território urbano. [...] A crise da segurança pública não é mais algo localizado, virou uma epidemia. Não é um problema segmentado, mas um risco generalizado. A violência está em níveis intoleráveis e [...] atingiu dimensão de país em guerra. [...] o inimigo é grande e ameaça não uma cidade, mas a Nação [...]. (MIRIAM LEITÃO; Todas as Forças, O Globo, 21 jan. 2018, p. 32)
Tendo em vista o princípio da cooperação que deve reger as relações entre os Entes Federados e os Poderes da República, certamente não poderia a União quedar inerte diante do caos instalado na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. No presente caso, o mesmo espírito cooperativo deve orientar a postura institucional do Legislativo e do Judiciário. Afinal, se às Forças Armadas foi conferida a missão de pôr fim ao grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro, devem elas igualmente receber os meios (em todos os aspectos legais possíveis, inclusive no campo da legítima e republicana cooperação institucional) necessários para o cumprimento exitoso da tarefa. Até mesmo porque, sabemos perfeitamente que não há, no País, outra Força Estatal a ser constitucionalmente convocada para debelar o “incêndio” que efetivamente ameaça arrasar o corpo social, capaz até mesmo de anular um dos direitos mais básicos dos indivíduos: o direito de ir e vir. Diferentemente de Gotham City, não dispomos de um Batman para salvar o Rio de Janeiro.
Destarte, contra o mal (vale dizer, o crime organizado) que se pretende controlar – posto que eliminá-lo seria uma utopia estatal –, é preciso muito mais do que militares e policiais armados. Precisamos, sim, ombrear – para usar um termo próprio da Caserna – com aqueles que, neste momento, estão arriscando a vida por uma sociedade segura e em paz, necessidade que o Congresso Nacional já havia considerado ao editar a Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que alterou o Código Penal Militar (CPM – Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), estabelecendo, em síntese, que os crimes de que trata o art. 9º do CPM, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa, de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante, ou de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da CF/1988 e na forma dos seguintes diplomas legais: Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica; Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999; Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e Lei n 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. Portanto, andou bem o Parlamento Federal ao conferir tal competência à Justiça Militar da União, mormente se considerarmos o preciso argumento esposado pelo General VILLAS BÔAS, Comandante do Exército Brasileiro:
A Justiça Militar tem um histórico de austeridade na aplicação das penas e celeridade na condução dos processos. Submeter os militares das Forças Armadas ao foro da Justiça Militar, ao contrário do que possa parecer àqueles com menor conhecimento sobre o tema, torna mais rígida e célere a punição de crimes e abusos cometidos por esses representantes do Estado, nas operações de GLO”. (General EDUARDO DIAS DA COSTA VILLAS BÔAS; Revista de Direito Militar, nº 126, set./dez. 2017, p. 3)
Da mesma forma, a Advocacia-Geral da União já percebeu a necessidade de apoiar institucionalmente os executores da medida em questão, conforme demonstra a matéria publicada em O Globo, ora transcrita:
Defesa - Intervenção Terá Apoio Jurídico
Num encontro ontem com o interventor Walter Braga Netto, a ministra Grace Mendonça, advogada-geral da União, disse que três advogados do governo federal já foram indicados para prestar assessoramento direto ao general durante as ações no Rio. A reunião, que teve a participação do procurador geral do Estado do Rio, Claudio Roberto Pieruccetti Marques, foi para definir as responsabilidades jurídicas durante a intervenção federal. Ficou decidido que o governo do estado e a União devem buscar, sempre que possível, atuar em conjunto. E que a cooperação jurídica ocorrerá sempre que necessária.
Os acordos firmados foram descritos num memorando. O texto diz que a cooperação não afetará as respectivas competências constitucionais e legais da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral do Estado e que eventuais dúvidas sobre tais atribuições deverão ser solucionadas em comum acordo pelas instituições.
Após a reunião, Grace Mendonça ressaltou que não existe a figura de mandado de busca e apreensão coletivo. Ela disse, no entanto, que não há controvérsia quando os mandados definem as áreas onde as forças de segurança vão atuar.
- Todos nós sabemos que num ambiente de comunidade não se tem precisão em torno daquele endereço ou sequer se tem o endereço. Os mandados de busca e apreensão vêm bem delimitados em torno daquela extensão em que se dará a operação. Então, não enxergamos qualquer tipo de controvérsia - explicou a ministra.
O mandado de busca e apreensão é uma autorização dada pela Justiça para que a polícia vasculhe um determinado endereço ligado ao suspeito. Esses documentos são, normalmente, expedidos com o nome do acusado e o local onde a polícia pode entrar para buscar provas. (BRUNO ALFANO; Defesa - Intervenção Terá Apoio Jurídico, O Globo, 3 mar. 2018, p. 8)
Assim, não há dúvida de que a chave para o sucesso desse tipo de empreitada encontra-se exatamente na cooperação. Não se pode admitir que o Estado, que é por definição uno e indivisível, possa se digladiar, em face de seus diferentes órgãos com distintas competências. Até porque, tecnicamente, não existem três Poderes. Apenas o Poder Estatal, cujo exercício funcional, por seu turno, é dividido nas esferas Executiva, Legislativa e Judiciária. Não obstante, o que se observa, na realidade, é uma espécie de auto-degradação do Poder Estatal, conforme registrado por DORRIT HARAZIM:
Toda cidade cuja rotina depende de um aplicativo como o Onde Tem Tiroteio (OTT-RJ), o qual só no primeiro mês deste ano (01/2018) registrou mais de cem confrontos a céu aberto, é uma cidade doente. Todo estado (federado) que tem a administração pública transformada em bandidagem tentacular, como o Rio de Janeiro, é um estado moribundo. E todo país cujos Três Poderes se revezam na capacidade de autodegradar-se é o retrato do Brasil de 2018 com seus 207 milhões de habitantes. Fica faltando uma sociedade com âncora na moral pública. (DORRIT HARAZIM; Escassez de Moral Pública, O Globo, 4 fev. 2018, p. 20)
Sem um amparo jurídico, quer sob a ótica legislativa, quer sob o ponto de vista de uma adequada hermenêutica judicial, não há como enfrentar, com a devida e necessária parcela de êxito, o extraordinário nível de sofisticação e abrangência que a criminalidade logrou alcançar nos últimos anos.
A atuação de criminosos sob o controle de bem estruturadas organizações é um dos mais graves problemas do mundo contemporâneo. Em torno delas se estabelece um círculo vicioso de causas e consequências, envolvendo instituições estatais, que torna muito difícil o encontro de soluções. No Brasil, fatores como a exclusão social, o crescimento do narcotráfico, a ineficácia generalizada da segurança pública, a corrupção e a impunidade agravam ainda mais a situação. (General RICHARD FERNANDEZ NUNES; Revista Época, 5 mar. 2018, p. 20)
Nesta toada, não é razoável supor que um soldado convocado por uma determinação legal (compulsória e incondicional) não possa ostentar as condições de segurança jurídica mínimas para o cumprimento pleno e efetivo da missão que lhe foi conferida, preservando-o – a exemplo dos combatentes norte-americanos nas guerras que travam, internamente, através da Guarda Nacional, ou, externamente, com seu Exército Regular – de eventuais “revanchismos ideológicos”, assim como de outras “armadilhas jurídicas” desconexas com a correta exegese das regras excepcionais que autorizaram a própria intervenção federal (de natureza civil), conduzida por efetivos das Forças Armadas do povo brasileiro. Nesse particular contexto, não coaduna com os poderes extraordinários (porém não arbitrários, uma vez que expressamente previstos no Texto Constitucional e nas leis que com ele convergem) e com sua correta e adequada hermenêutica, que, em situações excepcionais, um agente militar do Estado, convocado para esta finalidade, não possa, legal e legitimamente, atirar em um bandido que exiba (em situação de pronto emprego) um fuzil de guerra, mesmo que ainda não esteja mirando diretamente para o militar, mas que seja absolutamente crível que pretendesse fazê-lo. É importante concluir que, em situações especialíssimas – como a de intervenção federal, de caráter excepcional –, o simples porte ostensivo de um fuzil de guerra absolutamente preparado para ser usado contra as Forças Militares e/ou Policiais do Estado já permite concluir que tal criminoso encontra-se em pronta situação de agressão injusta e iminente contra o agente estatal e/ou terceiros, caracterizando, assim, um dos requisitos objetivos necessários para a configuração da excludente de legítima defesa (art. 25 do Código Penal e o art. 44 do Código Penal Militar). Até mesmo porque, cumpre destacar, as excludentes de ilicitude elencadas na Parte Geral dos referidos Codex não devem ser interpretadas de modo restritivo, especialmente por se tratar de normas penais permissivas, raciocínio que se conjuga com o princípio constitucional da presunção da legitimidade dos atos praticados por agentes públicos.
Com efeito, apesar de a intervenção não se traduzir em um estado de exceção, ela se insere em um quadro de absoluta excepcionalidade – grave comprometimento da ordem pública, no qual se constata o frequente emprego de armas de guerra pelos criminosos – e, como tal, deve ser interpretada pelos integrantes da magistratura.
Os dados estão lá, mas são tantos que só de pensar em mergulhar naquele mundo de números já dá sono. O Brasil [...] tem uma das legislações mais modernas do mundo, mas não sabe fazer bom uso [e uma correta hermenêutica interpretativa] dela. (ASCÂNIO SELEME; Os Cegos que não Viram o Brasil Ser Saqueado, O Globo, 8 fev. 2018, p. 13)
Resta evidente, entretanto, que eventuais excessos devem ser coibidos e punidos com extremo rigor, seja administrativamente, pelas próprias autoridades militares e policiais, seja judicialmente, pelos juízes. Aliás, o próprio General VILLAS BÔAS expressamente consignou que “execuções extrajudiciais, desvios de conduta ou violações de direitos humanos não encontram guarda no estamento das Forças Armadas, nem coadunam com os princípios morais e éticos observados por seus integrantes”, episódios que, caso venham a ocorrer, “resultarão em punição exemplar dos envolvidos” (Revista de Direito Militar, nº 126, set./dez. 2017, p. 3).
Não prover aos interventores os meios adequados para sua atuação seria condenar toda a operação ao fracasso, em prejuízo último do titular do poder político, ou seja, o povo fluminense e brasileiro. Ademais, seria também condenar, sem qualquer possibilidade de manifestação, a sociedade fluminense a suportar o estado de coisas com as quais ela infelizmente se acostumou a conviver.
A ONU entendeu isso perfeitamente e, durante sua intervenção no Haiti, liderada pelas tropas brasileiras, o sucesso decorreu, sobretudo, desse entendimento de que é legítima a ação de alguém que mata outrem que está portando uma arma de guerra, mesmo sem estar apontando diretamente para um cidadão ou para integrantes das Forças Militares e Policiais.
Em 13 anos no Haiti (não houve chancela para ações violentas das tropas que participaram da intervenção), o que demonstra a índole dos militares e o apego à legalidade [ainda que no contexto das regras legais e de engajamento outorgadas pela ONU]. (General AUGUSTO HELENO RIBEIRO; Tensão Permanente, O Globo, 24 fev. 2018, p. 10)
Executivo, Legislativo e Judiciário, portanto, devem atuar de mãos dadas, inclusive em respeito à autorização do Executivo, que foi concedida – em absoluta obediência às normas previstas na Constituição Federal –, ouvidos os Conselhos respectivos e com o aval do Legislativo, em benefício último da sociedade brasileira e carioca, que é quem, em última análise, paga os salários de seus membros.
6. Conclusão
Do exposto, pode-se inferir que o emprego das Forças Armadas na intervenção federal na área da segurança pública do Rio de Janeiro encontrou pleno amparo jurídico-operacional, não podendo tal medida ser equivocadamente rotulada de intervenção militar e, muito menos, como sendo o início da introdução, no País, de um estado de exceção. Muito pelo contrário, o que se objetivou foi justamente estancar o processo de deterioração da segurança pública, fenômeno que reconhecidamente se encontrava em curso quando da edição do Decreto Interventivo, e que foi, nesta hipótese, compulsório (e não meramente discricionário), em face da gravíssima situação de descontrole da segurança pública, na qualidade de função essencial (e, portanto, inafastável) do Estado e, consequentemente, de seus agentes.
Vale reafirmar, por oportuno, que a intervenção federal constitui uma medida democrática, prevista expressamente no Texto Constitucional, direcionada para situações excepcionais, tal como a constatação de um grave comprometimento da ordem pública, exatamente a realidade diagnosticada no Rio de Janeiro, e que demandava mesmo a adoção de um instrumento jurídico excepcional, cuja chave para o sucesso encontra-se exatamente na cooperação entre as Instituições e os Poderes da República. Afinal, sem um amparo jurídico, quer sob a ótica legislativa, quer sob o ponto de vista de uma adequada hermenêutica judicial, não há como enfrentar, com um mínimo de êxito, o extraordinário nível de sofisticação e abrangência que a criminalidade logrou alcançar nos últimos anos, e que, inclusive, a curto e médio prazos, se nada for feito, poderá conduzir nosso País – e não somente o Estado do Rio de Janeiro – a uma situação de fragmentação social, com a criação de verdadeiros “Estados Paralelos” em solo pátrio.