Resumo: Este artigo aborda a situação em que o deputado federal Deltan Dallagnol foi intimado para prestar declarações pela Polícia Federal, porém, não estava ciente se compareceria na condição de acusado ou testemunha. Essa ambiguidade causou confusão e desconforto ao parlamentar. O estudo destaca as consequências da ausência do Direito de Polícia Judiciária nas grades curriculares das faculdades de Direito brasileiras, levantando a preocupação de que os futuros profissionais do Direito não estejam devidamente preparados para lidar com as complexidades das operações policiais modernas. A ausência desse conhecimento pode resultar em mal-entendidos e prejudicar a representação adequada dos clientes, assim como a compreensão das evidências apresentadas. Portanto, é crucial que as instituições de ensino revisem seus currículos e incluam o estudo aprofundado do Direito de Polícia Judiciária, a fim de garantir uma formação jurídica sólida e atualizada, preparando os advogados para enfrentar os desafios da prática jurídica contemporânea e promover a eficiência e justiça no sistema legal.
Palavras-chave: Direito de Polícia Judiciária, operações policiais, formação jurídica, ambiguidade, conhecimento jurídico.
De acordo com os jornais do dia 30 de maio de 2023, o deputado federal Deltan Dallagnol diz ter sido vítima de abuso de autoridade, uma vez que foi intimado para prestar declarações, mas não sabia se o faria na condição de acusado ou testemunha (SABÓIA, 2023).
O parlamentar teria expressado sua confusão e desconforto em relação à situação ambígua em que se encontrava. De acordo com Dallagnol, ele recebeu uma intimação oficial para comparecer e fornecer depoimentos, contudo, não teria sido especificado na convocação se o ele estaria participando dessa oitiva como alguém que está sendo acusado de algum delito, ou se apenas seria uma testemunha potencial em relação a um fato investigado. (SABÓIA, 2023).
De acordo com Falcão (2023), o mandado entregue pela Polícia Federal ao deputado diz que ele seria ouvido em “termo de declarações”.
Conforme leciona Gomes (2006), frequentemente, uma ou mais testemunhas podem ser consideradas suspeitas. Nessas circunstâncias, elas não são forçadas a assumir a responsabilidade de falar a verdade, pois não podem ser compelidas a fornecer evidências que possam incriminá-las, em respeito ao direito constitucional contra a autoacusação. Nesse cenário, o indivíduo que se encontra nessa condição será submetido a um “termo de declarações”, ou seja, sem a necessidade legal de aderir à primeira parte do artigo 203 do CPP, como foi observado em muitos Habeas Corpus analisados pelo STF, no contexto da CPI do Mensalão.
À guisa de comparação, países de língua espanhola chamariam Deltan Dallagnol de involucrado, ou seja, envolvido, implicado na investigação, ainda sem uma posição precisamente definida quanto a ser testemunha ou ser investigado.
No mesmo sentido, nos explica Anselmo, (2023) que quem é ouvido em termo de declarações no inquérito policial é aquele que não prestará compromisso legal para que não se autoincimine, diferente dos depoentes que são ouvidos em termo de depoimento, e estes sim prestam compromisso.
Da mesma forma, Queiroz (1997) nos ensina que o termo de declarações é usualmente utilizado para oitivas de vítimas e incapazes, mas eventualmente é utilizado para registrar a oitiva de pessoas que estão na condição de suspeitos.
A questão retorna ao nosso radar, solicitando uma consideração mais profunda: Se a condição na qual ele deve apresentar suas declarações pode ser facilmente inferida pela parte da intimação que explicita que ele será ouvido sob o "termo de declarações", por que, então, ele permaneceu em dúvida, mesmo com essa informação claramente mencionada no documento que lhe foi entregue, sobre a condição exata ele será ouvido? Poderia ter faltado em alguma aula sobre isso em seus anos de faculdade? Estaria ele conscientemente gerando uma situação de relevância política?
Não precisamos de muito tempo para chegar à conclusão de que a resposta para ambas as perguntas anteriores é, categoricamente, um sonoro NÃO. Ele, de fato, não possui a certeza da circunstância sob a qual será ouvido, apesar dessa condição estar implicitamente detalhada em sua intimação. E é muito improvável que ele esteja intencionalmente engendrando uma situação com objetivo de gerar implicações políticas.
O que se revela diante de nossos olhos é um emaranhado de confusões e mal-entendidos em torno de algo que deveria ser de natureza extremamente simples. Estamos falando de um indivíduo que conseguiu ser aprovado um dos exames jurídicos mais desafiadores do país. Alguém que alcançou um patamar elevado em sua carreira. Um profissional de inquestionável conhecimento jurídico, contudo, curiosamente, parece ignorar algo que qualquer policial com treinamento básico poderia esclarecer em questão de segundos. É um paradoxo, para dizer o mínimo, que tal desconhecimento esteja presente em alguém tão altamente qualificado.
Ocorre um fenômeno lamentável, mas infelizmente muito comum, que contribui para a ignorância sobre esse tema. Esse fenômeno é bem conhecido entre os profissionais da polícia: as faculdades de Direito do Brasil falham ao não ensinar aos seus alunos o Direito de Polícia Judiciária (DPJ). Esse segmento crucial do sistema jurídico, que deveria ser um pilar do currículo educacional, é muitas vezes negligenciado (PEREIRA, 2017).
O Inquérito Policial, sendo a única seção do DPJ que recebe alguma atenção nas universidades, está confinado a apenas uma parte do primeiro capítulo, do primeiro livro de um vasto conjunto de volumes que compõem a disciplina de Processo Penal. A negligência é tão profunda que os professores de processo penal, de maneira geral, tendem a iniciar suas aulas diretamente do capítulo II, presumindo que o conteúdo anterior seja desnecessário ou trivial, uma vez que o inquérito, na visão dos doutrinadores que atuam, via de regra, após o oferecimento da denúncia, é desnecessário (BICHARA; CASCARDO JR, 2023).
Infelizmente, o Direito de Polícia Judiciária tornou-se o parente pobre dos estudos jurídicos, o ramo mais subestimado e negligenciado, e este fenômeno é surpreendente, quase esquizofrênico, pois, por natureza, a Ciência Jurídica deveria estar sempre vigilante em relação aos limites entre o Direito Penal e o Administrativo (FERRAJOLI, 2002).
A exclusão do DPJ nos currículos das faculdades de Direito é paradoxal, pois forma uma lacuna em nossa compreensão da justiça e do direito. Afinal, o papel da Polícia Judiciária é fundamental na aplicação da lei, sendo o DPJ um instrumento crucial para orientar e regular o comportamento dessas instituições. Então, é um enigma, e um problema real, que a falta de instrução em DPJ continue a ser uma norma nas instituições de ensino superior jurídico em nosso país.
Embora o papel central e de grande destaque que as operações policiais têm assumido nas últimas décadas seja inegável, em especial as operações realizadas pelas Polícias Judiciárias, parece que as instituições de ensino superior, em particular as faculdades de Direito, têm uma perspectiva discordante. Elas parecem operar sob a compreensão de que o conhecimento sobre o Direito de Polícia Judiciária é dispensável.
É crescente o destaque e influência que as operações policiais vêm conquistando na esfera pública e no sistema de justiça como um todo. Elas têm atraído um nível crescente de atenção e escrutínio, principalmente devido à sua importância e impacto em casos de alto perfil e de relevância nacional. A Polícia Federal, em particular, tem estado no centro das atenções, muitas vezes sendo o ponto focal de discussões e debates acalorados sobre questões de justiça e segurança.
Ainda assim, curiosamente, as faculdades de Direito parecem manter a postura de que o entendimento detalhado e profundo sobre o Direito de Polícia Judiciária não é um requisito necessário ou fundamental na formação jurídica. Esse ramo do Direito, que regula e orienta o funcionamento da Polícia Judiciária e é crucial para a realização adequada das operações policiais, é frequentemente negligenciado nas salas de aula das instituições que formam os futuros profissionais do Direito.
Isso levanta uma questão sobre o desalinhamento entre a realidade prática da justiça e segurança e o currículo das faculdades de Direito. Pergunta-se, portanto, se é realmente apropriado que tais instituições educacionais desconsiderem a importância do Direito de Polícia Judiciária, dado o papel central que as operações policiais têm desempenhado em nossa sociedade.
Será que as Universidades estão formando atualmente advogados aptos a representar seus clientes quando alvos de operações policiais que fazem uso intenso de Ciência de Dados, Inteligência Geoespacial, rastreio de Blockchain, coleta de dados com uso de Drones, rastreio quanto à origem de elementos por meio de isótopos estáveis, geoprocessamento de dados e quebras de sigilo de dados telemáticos, dentre outras tecnologias de ponta?
Se os operadores jurídicos não sabem a diferença entre termo de declarações e termo de depoimento; não sabem como deve ser o controle da cadeia de custódia dos corpos de delito; ignoram como deve ser formalizada uma busca domiciliar; desprezam relatórios de inquérito e não fazem ideia da diferença de trabalho de um escrivão para um papiloscopista, estão eles prontos para enfrentar verdadeiras máquinas investigativas de resultados em massa?
Como exemplos recentes, temos a Operação Ganância da Polícia Federal em Rondônia que fez uso de imagens satelitais para levantar indícios de extração ilegal de ouro em reserva indígena e utilizou programas especializados em rastreio de blockchain para apontar indícios de que bilhões de reais em ouro extraídos de forma criminosa teriam sido lavados com criptomoedas. (G1, 2022; FANTÁSTICO, 2022).
Ainda não muito distante no tempo, temos a Operação Siroco, da Polícia Federal no Rio Grande do Norte, que utilizou de bandas espectrais de imagens de satélites da Nasa, além de fotos obtidas com drones e simulações com modelagem matemática em sistema de informação geográfica para levantar indícios de um esquema bilionário de crimes ambientais (COSTA, 2020).
Em conclusão, a situação envolvendo o deputado revela uma preocupante lacuna na formação jurídica dos egressos das Faculdades de Direito no que diz respeito ao Direito de Polícia Judiciária (DPJ).
É alarmante constatar que as faculdades de Direito muitas vezes negligenciam o ensino e o estudo aprofundado do DPJ, um ramo do Direito fundamental para a compreensão e o funcionamento adequado das operações policiais. Essa falta de conhecimento pode resultar em confusões e mal-entendidos, prejudicando tanto os profissionais do Direito quanto o desenvolvimento dos processos judiciais.
Além disso, em um contexto em que as operações policiais cada vez mais se beneficiam do avanço tecnológico, é crucial que os profissionais do Direito estejam preparados para lidar com as questões jurídicas que envolvem as novas ferramentas e técnicas utilizadas. A falta de conhecimento nesses campos pode prejudicar a representação adequada dos clientes e a compreensão das evidências apresentadas.
É responsabilidade das instituições de ensino superior revisarem seus currículos e garantirem que o estudo do DPJ seja abordado de maneira abrangente e aprofundada. Os futuros advogados devem receber uma formação sólida e atualizada, que os capacite a enfrentar os desafios e demandas da prática jurídica contemporânea, incluindo a compreensão do funcionamento das operações policiais.
Somente por meio de uma formação jurídica adequada, que valorize a importância do Direito de Polícia Judiciária, poderemos garantir a eficiência e a justiça no sistema legal. É essencial que os profissionais do Direito estejam preparados para lidar com as demandas da sociedade atual, garantindo que a aplicação da lei seja realizada de maneira correta, justa e transparente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSELMO, M. A. Algumas considerações sobre testemunhas no inquérito policial. Consultor Jurídico, maio 2023.
BICHARA, A. A.; CASCARDO JR, A. G. Inquérito Policial e Proibição de Viés de Confirmação. Jus.com.br, maio 2023.
COSTA, L. PF investiga construtoras por uso de minério ilegal em usinas eólicas no Nordeste. Reuters, 10 jul. 2020.
FALCÃO, T. Dallagnol vai depor como investigado por falas que colocam em xeque decisão de ministros do TSE. CNN, 30 maio 2023.
FANTÁSTICO. “Barões” do ouro ilegal no Brasil: dinheiro movimentado às margens da lei chegou a R$ 16 bilhões em dois anos. FANTÁSTICO, jul. 2022.
FERRAJOLI, L. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
G1. Empresas de Porto Velho são alvos de operação da PF contra extração e comércio ilegal de ouro. G1, 7 jul. 2022.
GOMES, R. C. O papel do delegado e as regras do inquérito policial. Consultor Jurídico, mar. 2006.
PEREIRA, E. D. S. Direito de Polícia Judiciária: introdução às questões fundamentais. Revista de Direito de Polícia Judiciária, v. 1, n. 1, p. 25, 6 mar. 2017. DOI: https:// 10.31412/rdpj.v1i1.470
QUEIROZ, C. A. M. DE. Prática do Inquérito Policial. 4. ed. São Paulo: IGLU Editora, 1997.
SABÓIA, G. Deltan reclama após ser intimado pela PF na Câmara: “Trata-se de mais um abuso”. O Globo, 30 maio 2023.