Sumário: Introdução; 1 – Considerações concernentes ao início da vida humana; 2 – Reflexões sobre os momentos que traduzem o final da vida; 3.Considerações finais acerca da prevalência dos princípios bioéticos na defesa dos Direitos Humanos; Referências Bibliográficas.
Introdução
A priori, faz-se mister conceituar o neologismo "bioética", cuja tradução semântica é a "ética da vida", já que deriva dos radicais gregos bios e ethos. Foi utilizado pela primeira vez pelo biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, a princípio com uma conotação ambiental, no sentido de utilizar o conhecimento biológico em prol do equilíbrio do ecossistema terrestre e da preservação da vida e de valores humanos [01].
Hoje, contudo, a bioética tem sido generalizada como uma ética biomédica, já que cuida, sobretudo, de questões surgidas da relação médico-paciente e do desenvolvimento científico [02], apesar de ser na verdade uma nova disciplina que abarca pesquisas multidisciplinares por meio de reflexões filosóficas. Entende-se Bioética como uma nova ciência, ao se considerar a etimologia dessa palavra, do latim scientia, cujo sentido define um conhecimento sistematizado que permite a compreensão de certos fenômenos e, em determinadas situações, até controlá-los.
No que concerne à aplicação da Bioética ao estudo dos Direitos Humanos, importa esclarecer que a ciência dos Direitos Humanos tornou-se autônoma, mas interdisciplinar. Ao se deparar com as conseqüências da rápida evolução da biotecnociência, o homem constatou a necessidade da elaboração de um novo modo de compreensão da realidade. Logo, entendeu-se por bem convocar profissionais de áreas diversas do conhecimento para uma devida reflexão acerca da complexidade da vida na terra, o que resultou no aparecimento de novas disciplinas, com implicações fecundas para a medicina clínica [03]. É nesse contexto de interação entre ciências diversas que a bioética se afirma, sempre que houver a vida como pauta de discussão.
Não há como falar em defesa dos direitos humanos nos momentos-limite da vida, sem enfatizar a importância da história da medicina. É imprescindível dizer que, desde épocas remotas, quando de seu surgimento, a medicina é a profissão que maior noção possuiu acerca das dimensões morais envolvidas em seu exercício. A bioética, nesse quadro, configura-se tão somente como uma palavra nova que aborda uma realidade já antiga [04].
À moderna medicina urge a imposição de limites, haja vista a manifesta disposição de aparatos tecnológicos cujo uso, caso desmedido, pode servir de justificativa deturpada para o desrespeito ao ser humano. Vale salientar que, em todas as suas fases evolutivas (antes de nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer), o ser humano merece que sua dignidade seja preservada [05].
1 - Considerações concernentes ao início da vida humana
Em regra, vida e morte são dois conceitos que se contrapõem. Entretanto, é importante elucidar que a linha limítrofe distintiva dos dois significados é bastante tênue em diversas situações. Além dos sinais vitais acordados cientificamente para determinar o início ou o final da vida, devem ser consideradas também as normas jurídicas que estipulam tais momentos, bem como os aspectos culturais, sociais e religiosos inerentes à questão.
Argumentos em defesa da utilização de embriões humanos para pesquisa, bem como da aceitação da prática do aborto, inferem que o feto não sente dor até um determinado estágio de desenvolvimento. No que respeita ao período de tempo, sabe-se que a primeira característica anatômica, a denominada linha primitiva, aparece aos 14 dias de desenvolvimento. Esse é o local no qual se desenvolverá a coluna vertebral.
Nesse momento, não é possível saber sequer se haverá separação do embrião em dois indivíduos diferentes, originando gêmeos idênticos. Acredita-se que nesse estágio há a probabilidade de o embrião não ser consciente, tampouco sentir dor [06], o que seria uma justificativa para seu descarte e conseqüente uso para pesquisas, ou permissão do aborto.
Mais da metade da população mundial vive em países onde o aborto induzido é permitido por algumas razões específicas, ou não apresenta restrições, ao passo que um quarto da população mundial reside em nações onde esta prática é radicalmente proibida [07].
Nos países que condenam o aborto, a legislação rígida impõe severas sanções. É o que acontece no Brasil, onde o aborto somente é permitido em casos de estupro, com consentimento da gestante, ou de seu representante legal, ou quando não há outro modo de salvar sua vida. O posicionamento brasileiro é o mesmo de várias outras nações mundiais, a despeito das graves conseqüências que essa rigidez pode causar, considerando-se a ausência de uma política pública de planejamento familiar eficaz, voltada, sobretudo às famílias carentes.
As taxas mundiais de aborto são bastante elevadas, tendo como recordistas alguns países da América Latina e África. A OMS, em 1988, declarou o Brasil como o país onde ocorre o maior número de abortos no mundo (10% do total). A mortalidade entre as mulheres que o praticam é de aproximadamente 10%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o aborto clandestino é responsável por 11% das mortes maternas e 20% dos óbitos entre as adolescentes. Suas complicações (lesões traumáticas por perfuração do útero ou ferida de alça intestinal, enfartes útero-anexiais por injeção local de substâncias diversas e as intoxicações) representam a terceira causa mais freqüente de morte materna [08].
O debate bioético em relação ao aborto gira em torno do argumento principal dos defensores de sua descriminalização, ou seja, o respeito à autonomia reprodutiva da mulher e do direito à disponibilidade de seu próprio corpo, entendendo-se o feto como mera parte do corpo feminino. Já os oponentes agregam-se em torno da idéia de que a vida humana é sagrada por princípio. Os argumentos clássicos incluem a crença de que o feto é uma pessoa com vida desde a fecundação e a defesa de sua potencialidade em tornar-se pessoa humana.
É arbitrário considerar um hiato em redor da viabilidade ou do nascimento. Não existe a ocorrência de um salto qualitativo entre uma fase subumana e outra plenamente humana. O que se pode afirmar, na verdade, é a continuidade do processo de desenvolvimento do indivíduo humano. De fato, não há como se avaliar a capacidade de humanização ou personalização do feto. Nada essencial é acrescentado ao novo ser em formação após a concepção. Por conseqüência, critica-se esse posicionamento ao se entender que ele induz também à admissão da eutanásia, assunto que será adiante tratado.
Ao se considerar que o feto nada mais é do que uma parte do corpo da mãe, e que não possui o direito pleno à vida, já que tal direito não depende do que um ser é em si mesmo, mas das relações que com ele estabelecem as pessoas que o rodeiam, reduz-se a pessoa humana a mero objeto de aceitação social, o que lhe retira a dignidade. O idoso, ou o enfermo terminal, cujas relações sociais são inócuas, nesse juízo, seriam privados do direito à vida caso não fossem aceitos ou reconhecidos em seu meio.
Não há justiça nessa formulação, uma vez que tais pessoas possuem qualidades pessoais já firmadas no seio da sociedade, independentes das atitudes das pessoas que os cercam. Perigo maior seria o de deixar indefeso o recém-nascido, ao se supor que sua dignidade humana, nessa lógica de raciocínio, continuaria dependendo de seu reconhecimento como ser humano [09].
2 – Reflexões sobre os momentos que traduzem o final da vida
Quanto à idéia de serem utilizados os princípios bioéticos como justificativa para a procedência da eutanásia ativa, tal hipótese pode ser vista como antiética e amoral, ao se ponderar que não há justiça quando a tomada da decisão da morte não advém do próprio paciente. É o que ocorre no caso da procedência de eutanásia em doentes em coma profundo, ou deficientes, a despeito de opiniões como as de Peter Singer [10], que argumenta não haver diferença substancial entre matar e deixar morrer, pois as duas atitudes não apresentam diferenças morais intrínsecas.
Contudo, para que haja aplicação da justiça ao se adotar tal decisão, faz-se imprescindível a aplicação dos outros princípios em concomitância, no intuito de se proporcionar o mesmo tratamento dispensado a outro paciente, com equidade. É preciso considerar a liberdade de cada um num contexto de igualdade de tratamento. "Os direitos de liberdade evoluem paralelamente ao princípio do tratamento igual. Com relação aos direitos de liberdade vale o princípio de que os homens são iguais." [11]
Por meio de ponderações dos princípios bioéticos entende-se que a ortotanásia não é uma prática antiética ou imoral, muito embora alguns teóricos também entendam pelo acatamento da eutanásia em casos nos quais trabalham com meios extraordinários de tratamento. Há que se diferenciar, portanto, os meios ordinários dos extraordinários.
São ordinários os meios de tratamento quando a terapia é abundante, ou disponível em um número importante de casos, ao passo que a tendência é considerar como extraordinários os tratamentos escassos. Em termos financeiros, são ordinárias as terapias baratas, ao contrário daquelas cujo custo econômico é dispendioso, o que a torna extraordinária. Ademais, quando o tratamento médico ainda não foi clinicamente aceito, encontrando-se em fase de experimentação, há que considerá-lo como extraordinário.
No tocante às denominadas "terapias de ponta", na qual são válidas sofisticadas tecnologias, a distinção entre meios ordinários e extraordinários também se faz presente. São ordinários os tratamentos não invasivos, cujo caráter não é agressivo, e que não utilizam as altas tecnologias para manter um paciente vivo a qualquer custo. Importante elucidar, do mesmo modo, que esse critério é utilizado para diferenciar tratamentos de caráter permanente, daqueles cuja aplicação é temporária ou de curto prazo. Por fim, distinguem-se meios ordinários e extraordinários de tratamento pela obrigatoriedade ou faculdade ética, respectivamente, de sua utilização [12].
Mas, ainda que essa distinção, eventualmente, possa advir de um raciocínio aparentemente lógico que conclua pela interrupção de um tratamento inútil, é importante ponderar possibilidades remotas, ao se considerar que a questão é pertinente ao mais importante direito do ser humano, qual seja, a vida.
Ilustra-se a assertiva supra com o exemplo clássico de um caso ocorrido na França há tempos, quando um médico em desespero, vendo sua filha agonizar, acometida de difteria e sem maiores recursos, decide pôr fim ao seu sofrimento, ministrando-lhe morfina para que morresse sem dor. Ao voltar do enterro de sua criança, recebeu do hospital uma carta que lhe informava a descoberta do soro antidiftérico, com uma remessa já a caminho [13].
O caso retratado reflete os argumentos contrários à eutanásia, em se tratando de pacientes terminais cujos tratamentos paliativos podem ser a melhor alternativa. Não se discute a velocidade com que tem evoluído a Medicina, o que pode oferecer esperança para a cura das mais temíveis enfermidades.
Outras situações, porém, remetem a indagações mais complexas, que aferem à sociedade a responsabilidade pelo julgamento moral de certas condutas, tendo em vista que muitas vezes a legislação de um país não é suficiente para pacificar a questão. Nesse diapasão, não seria apropriada a valoração da conduta de Marie Humbert, que praticou a eutanásia em seu filho, Vincent Humbert. Tetraplégico, mudo e cego há vários anos, desde que sofrera um acidente automobilístico, Vincent clamava pela morte, entendendo que não possuía condições de viver a vida que lhe restou. Após longo tempo de cuidados com seu filho, a quem a justiça francesa negou o direito de dispor da própria vida, Marie finalmente rendeu aos seus apelos.
Tendo por pressuposto um ordenamento jurídico positivista, num país onde a prática da eutanásia é proibida, no qual se busca a formulação de uma norma pura fundamental, despida de considerações de ordem moral e alheia a fatores externos à lei, conclusivamente Marie Vincent seria punida. Especialmente, porque as conseqüências advindas do fato, aqui concebidas com a noção de justiça, implicariam a necessidade de definir qual dos bens tutelados, a vida ou a dignidade da pessoa humana, possui maior importância, merecendo valoração [14].
Cumpre esclarecer, contudo, que a doutrina positivista não prega extremo distanciamento entre o direito e a moral. Cita-se inclusive Hans Kelsen [15], que afirma ser a moral também fundada em um conjunto de normas de caráter social, assim como o direito, objetivando destarte a regulação da conduta humana. Todavia, para os positivistas, a idéia de ponderação de valores decorreria do arbítrio de critérios subjetivos válidos, não se baseando em critérios racionais, científicos [16].
No caso em tela, não bastaria à justiça positivista francesa a alegação de motivos piedosos ou caritativos para a absolvição penal da mãe de Vincent Humbert. O mesmo não ocorreria se o ato tivesse sido praticado na Holanda, país cuja legislação permite a eutanásia, sendo proeminente, portanto, considerações sentimentais.
No entanto, meditações a respeito da possibilidade de se obter como conseqüência da permissividade do ato a prática de homicídio contra pobres ou outras pessoas "socialmente inviáveis", devem ser sopesadas. O argumento, denominado de "ladeira escorregadia" chama a atenção. No Brasil é explícita predileção ao princípio da justiça em relação aos demais princípios bioéticos, opinião plausível, haja vista ser a justiça o que norteia as ações humanas. Alguns autores, como Campbell [17] por exemplo, defendem essa posição na legislação, aferindo que:
A busca por uma legislação que seja justa leva-nos para além da escolha individual, conduz-nos às questões dos direitos e do bem-estar de todos. Se o fato de estender a autonomia individual põe em risco os direitos de outrem, então esta não pode ser a base indiscutível para uma mudança na lei.
Episódio recente ocorrido nos EUA, o caso de Terri Schiavo, instiga dúvidas a respeito da maneira pela qual é entendida a questão da proteção dos direitos humanos, observando-se que nesse caso, mais que um desrespeito à vida, houve um flagrante desrespeito à dignidade da pessoa humana.
Sua morte não se configurou como eutanásia, ou "morte boa". Considerada em estado vegetativo por alguns médicos, situação bastante contestada por diversos especialistas, a americana foi largada à míngua, para morrer de fome e sede, sem o devido respeito à sua autonomia ou à justiça da decisão. Sua alimentação foi retirada, postura que em nada se assemelha ao que se denomina "eutanásia". Qualquer ser humano, por mais saudável ou consciente que seja, certamente morrerá em poucos dias perante a supressão da alimentação.
Ela não se encontrava em situação de risco de vida, tampouco em coma profundo ou outro estado caracterizado como deveras vegetativo. Os danos cerebrais por ela sofridos, devido à falta de oxigenação no cérebro por alguns minutos, deixaram seqüelas graves que, entretanto, lhe facultavam o reconhecimento de seus pais ao som de sua voz, conforme manifesto em diversos vídeos exibidos pela família.
O que ocorreu nesse episódio foi uma disputa pelo poder, concedida ao seu ex-marido, quando da recusa da justiça americana em oferecer sua tutela a seus pais, ainda que o debate na justiça tenha sido intenso e considerado cuidadoso. O caso foi comparado aos horrores cometidos nos campos de concentração nazista, quando milhares de judeus foram mortos de fome, definhando até o fim de seus dias. Importante mencionar que os EUA não ratificaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos [18], não lhe cabendo, portanto, meio de controle sobre arbitrariedades como a supracitada.
Teria sido aberto por essa situação um precedente à morte em massa, ou mistanásia, de milhares de pessoas socialmente ou economicamente inviáveis? Alguns especialistas visualizam dessa forma a questão [19]. Há que se atentar ao cuidado com o referido entendimento, pois, apesar de extremo, é passível de se tornar realidade.
3.Considerações finais acerca da prevalência dos princípios bioéticos na defesa dos Direitos Humanos
Primando-se pela prevalência dos princípios bioéticos da justiça e beneficência, é importante aferir que não se pode deixar que a medicina torne dúbia a capacidade de vida de um ser humano em razão de interesses de outrem, sejam financeiros ou de qualquer outra natureza. Isso seria ferir diretamente o direito fundamental à vida digna, que é o principal objeto da bioética, além de consagrado mundialmente.
No campo da atuação médica, é cogente a averiguação dos princípios bioéticos, que a norteiam desde seus primórdios, sob o risco da ocorrência de manipulação ideológica e econômica. Sob o pretexto de "qualidade de vida", o aparato técnico-científico, do qual dispõe a moderna medicina, pode ser utilizado contra a própria vida humana [20].
Para que haja efetividade dos direitos humanos, é preciso que profissionais de todas as áreas, em especial os aplicadores do direito e os profissionais da saúde, intensifiquem a luta em favor do respeito à dignidade humana, nada obstante acomodações ideológicas. Nesse cenário afirma-se a pertinência da bioética e do biodireito, haja vista serem instrumentos preciosos de garantia e recuperação de valores humanos fundamentais [21].
No entanto, é preciso lembrar que os direitos fundamentais também entram em choque entre si, a exemplo da relatividade do valor de uma vida humana, quando comparada à dignidade dessa mesma vida, em situações determinadas. Por esse motivo, é possível concordar com a afirmação de Bobbio [22] ao aduzir que "o problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter." (destaque do autor).
A bioética, como fonte direta do biodireito, possui destarte, a tarefa de humanizar o acesso às garantias jurídicas de proteção aos direitos humanos. Não pode admitir a existência de injustiças contra a pessoa, propiciadas pelo mau uso da biologia molecular ou da biotecnociência, sob uma máscara de modernização do progresso científico em prol da humanidade. Todos os atos médico-científicos devem ser consoantes às exigências ético-jurídicas dos direitos humanos, garantindo-se assim a dignidade a todos os seres da espécie, sem distinção de qualquer natureza.
Assim, importa salientar que não há um momento decisivo que represente a passagem de um ser não humano para humano. Tampouco há que se falar em um instante que defina quando uma vida não mais merece tutela proteção ou dignidade. Desde a concepção, até a morte, o ser humano está em processo de pleno desenvolvimento, mas é uma mesma pessoa, sujeita de direitos e deveres para com a sociedade.
Considerando-se que esse processo é ininterrupto e bastante longo, o respaldo jurídico oferecido aos cidadãos é facilitado pela criação de estatutos que tutelem fases específicas da vida, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso, para que não se perca a idéia do ser humano como um todo. Isso não significa que algumas vidas sejam mais dignas ou mereçam maior proteção que outras. No contexto ora discutido, entende-se que a dignidade da vida seja pautada no respeito à autonomia do sujeito, mas, sobretudo, na justiça das decisões tangentes às práticas médicas.