Em decorrência do inato distúrbio de comunicação, inadequada interação social e de comportamentos repetitivos e restritos, entre outras características, os portadores do Transtorno do Espectro Autista (TEA), independente do nível de gravidade, precisam se submeter a um perene tratamento multidisciplinar - conforme assegura a Lei 12.764/2012 -, a fim de viverem com o suporte necessário e possibilitar sua inclusão na sociedade.
Com efeito, os autistas precisam de tempo para serem atendidos por profissionais (psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, entre outros, a depender de cada caso), que devem atuar em conjunto.
Nesta perspectiva, a fim de permitir a submissão ao pertinente tratamento, alguns entes da Federação previram legalmente o Direito à redução da jornada de trabalho, sem perdas remuneratórias, tanto para os próprios servidores com deficiência, quanto para familiares. Vale anotar que uma referência dessa regulamentação os preceitos da Lei nº 8.112/90, pela redação da Lei 9.527/97, que estabeleceu o Estatuto dos Servidores Públicos Federais:
“Capítulo VI - Das Concessões
Art. 98. …
§ 2º Também será concedido horário especial ao servidor portador de deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário.
§ 3º As disposições constantes do § 2º são extensivas ao servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência.”
Contudo, de fato, poucos foram as leis garantindo a redução da jornada de trabalho. De um lado não se editou uma regra de caráter nacional; por outro, a maioria dos entes da Federação não previram de modo explícito tal direito na legislação local.
Todavia, numa interpretação sistemática e teleológica, haveriam de conceder a redução sempre que comprovado que o servidor ou o familiar tem deficiência e, por conseguinte, precisam da redução da jornada para um adequado tratamento. Inclusive, deveriam haver reconhecido tal direito por analogia, aplicando os referidos preceitos da Lei 8112, independente das regras locais, de acordo com o artigo 4º, do Decreto-Lei nº 4.657/42, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB).
De todo modo, perante os vários casos de indeferimento desse direito aos autistas, houve o recente pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 1237867, com Repercussão Geral reconhecida, Tema 1.097.
Por unanimidade, firmou posição de que todo ente da Federação, em que porventura não se preveja em normas próprias o Direito de redução de jornada aos servidores e descendentes com TEA, deve-se aplicar por analogia os preceitos do Estatuto dos Servidores Federais. Profícuo se reportar a ementa desta Deliberação:
“I – A Carta Política de 1988 fixou a proteção integral e prioritária à criança e ao adolescente, cujas garantias têm sido reiteradamente positivadas em nossa legislação, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990) e da promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.170/1990).
II – A Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, no § 2° do art. 1° da Lei 12.764/2012, estipulou que eles são considerados pessoas com deficiência, para todos os efeitos legais. Assim, é incontestável que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência aplicam-se também a eles.
III – A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) foi assinada pelo Brasil e, por ter sido aprovada de acordo com os ritos previstos no art. 5°, § 3° da Constituição Federal de 1988, suas regras são equivalentes a emendas constitucionais, o que reforça o compromisso internacional assumido pelo País na defesa dos direitos e garantias das pessoas com deficiência.
IV – A CDPD tem como princípio geral o “respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade” (art. 3°, h) e determina que, nas ações relativas àquelas com deficiência, o superior interesse dela receberá consideração primordial (art. 7°, 2).
V – No Preâmbulo (item X), o Tratado é claro ao estabelecer que a família, núcleo natural e fundamental da sociedade, tem o direito de receber não apenas a proteção de todos, mas também a assistência necessária para torná-la capaz de contribuir para o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência.
VI – Os Estados signatários obrigam-se a “adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção” (art. 4°, a).
VII – A omissão do Poder Público, portanto, não pode justificar afronta às diretrizes e garantias constitucionais. Assim, a inexistência de lei estadual específica que preveja a redução da jornada de servidores públicos que tenham filhos com deficiência, sem redução de vencimentos, não serve de escusa para impedir que seja reconhecido a elas e aos seus genitores o direito à dignidade da pessoa humana e o direito à saúde.
VIII – A convivência e acompanhamento familiar para o desenvolvimento e a inclusão das pessoas com deficiência são garantidos pelas normas constitucionais, internacionais e infraconstitucionais, portanto, deve-se aplicar o melhor direito em favor da pessoa com deficiência e de seus cuidadores.
IX – O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que é legítima a aplicação da Lei 8.112/1990 nos casos em que a legislação estatal e municipal for omissa em relação à determinação constitucional autoaplicável que não gere aumento ao erário. Precedentes.
X – Tendo em vista o princípio da igualdade substancial, previsto tanto em nossa Carta Constitucional quanto na Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, se os servidores públicos federais, pais ou cuidadores legais de pessoas com deficiência têm o direito a horário especial, sem a necessidade de compensação de horário e sem redução de vencimentos, os servidores públicos estaduais e municipais em situações análogas também devem ter a mesma prerrogativa.
XI – Recurso extraordinário a que se dá provimento.
Fixação de tese:
“Aos servidores públicos estaduais e municipais é aplicado, para todos os efeitos, o art. 98, § 2° e § 3°, da Lei 8.112/1990”.
(Tribunal Pleno, RE 1237867, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, DJe 12/01/2023)
Assim, o advento da decisão da Corte Constitucional do País representou um importante leading case. Dever incontroverso da Administração Pública reconhecer o imprescindível Direito de redução da jornada de trabalho a todos servidores autistas e os com familiares ou dependentes autistas, o que permite o exercício de direitos fundamentais, notadamente a um tratamento multidisciplinar perene que propicie um suporte adequado às diferentes pessoas no espectro e, por consequência, uma maior inclusão social.