4. JUDICIALIZAÇÃO DA SÁUDE NO CONTEXTO DO STF
É de conhecimento de muitos, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é a mais alta instância do sistema judiciário brasileiro, e tem sido frequentemente chamado a decidir sobre casos relacionados à saúde. Isso ocorre porque os cidadãos buscam garantir o acesso a tratamentos, medicamentos ou procedimentos médicos que não estão prontamente disponíveis no sistema público de saúde ou não são cobertos pelos planos de saúde privados.
No contexto da judicialização da saúde o STF lida com várias questões fundamentais. É dele o dever, muitas vezes, de equilibrar o direito fundamental à saúde, previsto na Constituição Brasileira, com os recursos limitados disponíveis para a saúde, tal como é designado a ele, de mesmo modo, a função de racionalizar os recursos com a necessidade de decidir se os recursos públicos devem ser alocados para atender a demandas individuais por tratamentos caros ou se devem ser aplicados de forma mais ampla em benefício da população, bem como, também, a incumbência de avaliar se as políticas de saúde do governo são constitucionais e se cumprem os princípios de universalidade, equidade e integralidade estabelecidos na Constituição.
Enfim, o papel do STF é essencial para equilibrar os direitos individuais dos cidadãos com as responsabilidades do Estado na prestação de serviços de saúde.
4.1. Da prestação jurisdicional
A prestação jurisdicional do Estado no contexto da judicialização da saúde é um tema crucial que envolve o papel do sistema judicial em garantir o acesso à saúde e a resolução de conflitos relacionados a tratamentos médicos. Esse processo implica uma série de considerações legais e éticas.
Fato é que a prestação jurisdicional do Estado, por meio dos tribunais, desempenha um papel crítico na judicialização da saúde seja ele na garantia de direitos, na resolução de conflitos e até mesmo no monitoramento das políticas públicas.
No entanto, a prestação jurisdicional da saúde, também, enfrenta desafios significativos quando colocados a prova, tal como os impactos orçamentários, as disparidades visualizadas na preservação da equidade e universalidade, e também a incessante busca pela estabilidade de políticas públicas, onde os tribunais devem equilibrar as decisões judiciais com as políticas públicas de saúde existentes.
4.1.1. Do direito à saúde do indivíduo x o direito à saúde da coletividade
No contexto da judicialização da saúde, emerge um intricado conflito entre o direito à saúde do indivíduo e o direito à saúde da coletividade. Esta questão envolve uma complexa teia de considerações éticas, legais e pragmáticas que desafiam a busca por um equilíbrio sensato entre os interesses individuais e o bem-estar geral.
De modo geral, se entende por direito à saúde do indivíduo como um princípio inalienável, consagrado em direitos fundamentais e constitucionais. Cada pessoa tem o direito de procurar tratamento médico adequado e ter acesso a intervenções de saúde que atendam às suas necessidades específicas. Por outro lado, o direito à saúde da coletividade refere-se ao princípio de que a saúde e o bem-estar de toda uma sociedade devem ser protegidos e promovidos. Ele se baseia na ideia de que a saúde não é apenas uma preocupação individual, mas também uma questão de interesse público. A sobrecarga causada pela judicialização pode resultar em atrasos no atendimento e em uma distribuição desigual de recursos.
Nesse diapasão, elucidar acerca do que se refere ao que é direito individual, e o que trata da coletividade é de fundamental importância, porém é fundamental assegurar que ambos os direitos são protegidos pela Constituição Federal. Fato é que tais direitos está garantido a todos os indivíduos, independentemente de sua necessidade, quando se trata da preservação de sua integridade física, indo além do âmbito individual. Entretanto, a conscientização da reserva orçamentária do país, estado ou munícipio deve ser levada em consideração, para que prejuízos à larga escala não sejam fornecidos aos cofres do Estado brasileiro. Nesse sentido, Dalmo Dallari diz:
Outro ponto importante a ser considerado, na tomada de decisões políticas, é a conciliação entre as necessidades dos indivíduos e as da coletividade. Reconhecendo o indivíduo como o valor mais alto, em função do qual existem a sociedade e o Estado, pode parecer natural dar-se preferência, invariavelmente, às necessidades individuais. É preciso ter em conta, no entanto, que o indivíduo não existe isolado e que a coletividade é a soma dos indivíduos. Assim, não se há de anular o indivíduo dando precedência sistemática à coletividade, mas também será inadequada a preponderância automática do individual, pois ela poderá levar à satisfação de um indivíduo ou de apenas alguns, em detrimento das necessidades de muitos ou de quase todos, externadas sob a forma de interesse coletivo
(DALLARI, 2011, p.131).
Seguindo o apresentado, e considerando as ponderações anteriores, Mariana Filchtiner Figueiredo e Ingo Wolfgang Sarlet, vai destacar que a macrojustiça não pode existir sem a microjustiça. A resolução de questões individuais no sistema judicial desempenha um papel fundamental na concretização das condições necessárias para a dignidade humana em toda a sociedade. As múltiplas decisões judiciais individuais fornecem os alicerces essenciais para a macrojustiça. Discorrem os autores que:
Se, por um lado, é inquestionável que o direito à saúde é direito de todos, não se pode, por outro, agasalhar a tese de que se cuida de um direito coletivo e que, por ser direito coletivo, não poderia ser objeto de dedução individualizada em Juízo, especialmente para além das hipóteses previamente previstas na legislação infraconstitucional. Com efeito, tanto é equivocada a tese de que os direitos sociais são em primeira linha direitos coletivos, quanto é de ser afastada a tese de que não cabem demandas individuais. Em primeiro lugar, o fato de todos os direitos fundamentais (e não apenas os sociais) terem uma dimensão transindividual (coletiva e difusa) em momento algum lhes retira a condição de serem, em primeira linha, direitos fundamentais de cada pessoa, ainda mais quando a própria dignidade é sempre da pessoa concretamente considerada. Pela mesma razão, não se poderia afastar a possibilidade da tutela individual, o que não significa dizer que existem problemas a serem enfrentados e que em muitos casos (mas não em todos!) a tutela judicial mais adequada e efetiva deva ocorrer de modo coletivo. Os direitos sociais – o que sempre tivemos o cuidado de enfatizar - são sempre também individuais e, portanto, direitos de todos e de cada um, o que assume particular relevância no campo da saúde.
(SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p. 16)
Portanto, é fundamental encontrar um equilíbrio entre esses direitos. Isso envolve a promoção de políticas de saúde eficazes que minimizem a necessidade de ações judiciais, bem como a implementação de mecanismos de revisão e controle para garantir que a judicialização não prejudique a capacidade do sistema de saúde de atender às necessidades da coletividade. O desafio está em assegurar que o direito individual à saúde seja protegido sem comprometer o direito coletivo ao acesso igualitário e eficiente aos serviços de saúde.
4.1.2. Do fornecimento ideal de saúde aos cidadãos
No que se refere a ideia de uma prestação de serviço adequada e eficiente a população brasileira, traz à tona o fato dessa questão tratar de um aspecto crucial para o bem-estar e desenvolvimento de uma sociedade. Para entender melhor essa sistemática, é necessário abordar diversos aspectos, incluindo políticas de saúde, acesso à assistência médica, qualidade dos serviços e financiamento. O fornecimento ideal de saúde aos cidadãos é um objetivo fundamental para qualquer nação, refletindo diretamente na qualidade de vida de sua população. Para alcançar esse objetivo, são diversas as atitudes e sistemas que devem ser plantado para a eficácia do Sistema único de Saúde.
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece uma ampla gama de serviços que vão além do simples tratamento de pacientes doentes. Ele se estende até as residências das famílias para identificar problemas de saúde de forma preventiva e compreender a realidade de cada indivíduo, direcionando-os para os recursos públicos necessários. Este sistema faz parte da rede pública e tem como principal propósito fornecer assistência à saúde de maneira gratuita a todos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2023).
Uma base essencial para o fornecimento ideal de saúde é o acesso universal aos serviços de saúde. Isso significa que todos os cidadãos devem ter a oportunidade de receber assistência médica de qualidade, independentemente de sua condição financeira, geográfica ou social. Dessa maneira, deve ser colocado em pauta, a qualidade dos serviços prestados, posto que não basta, apenas, oferecer acesso, a qualidade dos serviços de saúde é igualmente importante. Isso envolve a disponibilidade de profissionais qualificados, instalações bem equipadas, medicamentos eficazes e um sistema de saúde que promova práticas baseadas em evidências.
Diante do apresentado, é válido tomarmos por base o que ensina Lenir Santos. A autora pondera de forma clara e concisa, acerca da universalidade e integralidade do acesso à saúde, em especial, da realidade brasileira com Sistema Único de Saúde. In verbis, relata a doutrinadora que:
O SUS destina-se a todos, mas todos que optaram pelo sistema público com seus regramentos administrativos, técnicos e sanitários. A universalidade não é uma porta aberta, mas sim uma porta ordenada e por si só não pode transformar o SUS num balcão de mercadorias e procedimentos concedidos a qualquer tempo, de qualquer modo à pessoa que não entrou no SUS pelas suas regras.
(SANTOS, 2014; 149)
À vista disso, é crucial que o fornecimento de saúde seja equitativo e justo. Isso significa que grupos marginalizados ou desfavorecidos devem receber atenção especial para eliminar desigualdades em saúde. Fato a ser demonstrado como exemplo, está reservado na lista de transplante do SUS, essa qual segue um padrão organizado e rigorosamente regulamentado com base em critérios técnicos específicos para determinar a ordem de prioridade dos pacientes. Esses critérios incluem a triagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos para cada órgão em questão.
Em conclusão, a busca pelo fornecimento ideal de saúde aos cidadãos é um desafio complexo e multifacetado. Envolve a necessidade de garantir o acesso universal a serviços de saúde de qualidade, bem como a promoção da prevenção e cuidados de saúde eficazes. No entanto, essa busca deve ser equilibrada com a realidade dos recursos limitados e a necessidade de alocação eficiente desses recursos. Além disso, a participação ativa da sociedade e a fiscalização adequada são cruciais para assegurar que as políticas de saúde atendam às necessidades da população. Em última análise, o fornecimento ideal de saúde requer um compromisso contínuo com a melhoria do sistema de saúde, considerando as necessidades individuais e coletivas, a justiça social e a eficácia dos serviços de saúde.
4.2. Do processo da judicialização da saúde comparada ao direito americano
A procedimentalização da judicialização da saúde no direito comparado refere-se ao processo pelo qual questões relacionadas à saúde são levadas aos tribunais e ao desenvolvimento de procedimentos legais específicos para lidar com essas demandas. Em diferentes países, esse processo pode variar, mas geralmente envolve a análise de casos individuais que buscam garantir o acesso a tratamentos médicos, medicamentos e serviços de saúde.
Tomando por base o direito estadunidense, é notória as diferenças significativas nos sistemas jurídicos e na abordagem para questões de saúde. Conforme elucidado anteriormente, o Brasil conta um sistema de saúde público, que visa garantir o acesso universal à saúde. No entanto, a demanda por serviços de saúde muitas vezes supera a capacidade do SUS, levando à judicialização, o que se analisado pela perspectiva comparada não consegue visualizar tal sistema no âmbito estadunidense, posto que tal país americano não conta, em sua maioria, com um sistema público de saúde.
Os Estados Unidos têm um sistema de saúde predominantemente privado, onde o acesso aos cuidados de saúde muitas vezes depende do seguro de saúde. A judicialização da saúde nos EUA é mais centrada em questões de negligência médica e acesso a tratamentos. Diferentemente do Estado Brasileiro, que enfrenta diversos problemas judiciais envolvendo a solicitação de medicamentos fora da lista do SUS e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), bem como também, problemas de litígios por negligência médica, os Estados Unidos é campeão nas disputas de seguro de saúde.
Os litígios médicos nos EUA podem ser extremamente caros, com prêmios de seguro médico e custos legais elevados, contribuindo para o alto custo geral do sistema de saúde. Embora, os Estados Unidos liderem em investimentos per capita na área da saúde, com uma média de US$ 10 mil despendidos anualmente por habitante, curiosamente, cerca de 30% da população norte-americana adiaria algum tipo de tratamento alegando falta de recursos financeiros para arcar com os custos (CREPALDI; MORAES, 2018). No entanto, essa situação não resulta em um aumento substancial de ações judiciais em busca de assistência médica, ao contrário do cenário brasileiro.
No Brasil, o investimento anual em saúde por paciente é consideravelmente menor se comparado a outras nações, o que coloca o país em uma posição desfavorável na lista de 20 países em termos de gastos. Surpreendentemente, o Brasil enfrenta um aumento significativo na judicialização da saúde, onde em média 80% dos processos que chegam aos tribunais são decididos favoravelmente aos requerentes (Edição Setor Saúde, 2018).
Essa disparidade entre os Estados Unidos e o Brasil é notável. Enquanto os Estados Unidos ostentam altos investimentos em saúde, a judicialização não é um fenômeno expressivo. Por outro lado, no Brasil, onde o financiamento em saúde por paciente é consideravelmente menor, a judicialização emerge como uma maneira atípica e não oficial de suprir as deficiências das políticas públicas de saúde. Essa complexa interação entre financiamento, acesso aos cuidados de saúde e judicialização demonstra como as dinâmicas na área da saúde podem variar amplamente entre os países.
Em resumo, a judicialização da saúde é um fenômeno presente tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, mas suas dinâmicas e motivos variam devido às diferenças nos sistemas de saúde e nas leis.
4.3. Da judicialização da saúde nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal
A judicialização da saúde nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) é um fenômeno intrinsecamente ligado à busca pela efetivação do direito fundamental à saúde no Brasil. Este tema suscita uma reflexão profunda sobre a interseção entre o sistema de saúde, o Poder Judiciário e a concretização dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos, visto que, nas últimas décadas, o Brasil testemunhou um aumento notável no número de ações judiciais relacionadas à saúde.
As sentenças emitidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desempenham um papel crucial na padronização da jurisprudência, especialmente em temas como a disponibilização de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a utilização de medicamentos experimentais e a definição da responsabilidade solidária entre os diversos níveis de governo.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, tem desempenhado um papel fundamental na interpretação das questões jurídicas envolvendo a saúde no país. Suas decisões influenciam diretamente a jurisprudência e as políticas públicas relacionadas ao setor. Enfim, a judicialização da saúde levanta questões complexas e multifacetadas, envolvendo não apenas a disponibilidade de recursos e o acesso a tratamentos, mas também questões éticas, econômicas e de equidade.
4.3.1. Da medida cautelar ao tema 1.234 do STF
A fim de tratar sobre o tema 1.234 do Supremo Tribunal Federal, é imprescindível, que em um primeiro momento, que se relate o que vem a ser o tema:
TEMA 1234 - Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023).
O tema apresentado em questão, teve decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, em abril deste ano. A liminar concedida determina que até que o Recurso Extraordinário (RE) 1366243, um caso de grande relevância conhecido como Tema 1.234, seja julgado de forma definitiva, as ações judiciais relacionadas a medicamentos não incluídos no rol do Sistema Único de Saúde (SUS) devem seguir sendo analisadas e decididas pelo tribunal (seja ele estadual ou federal) ao qual foram inicialmente apresentadas pelos cidadãos.
Durante o período que antecede o julgamento final desse recurso, que envolve a discussão sobre se a União deve ser solidariamente responsável pelo fornecimento desses medicamentos, fica proibida a transferência da competência para outro tribunal ou a inclusão da União como parte requerida nas referidas ações judiciais. Tal medida é aplicada, também, aos processos que envolvem a aplicação do Tema 793, no qual o STF determinou que os entes federativos compartilham responsabilidade solidária em relação a demandas de natureza assistencial na área da saúde.
A decisão tomada em questão relata grandiosa relevância, uma vez que há uma demonstração do Supremo em não retroceder em suas jurisprudências, posto que as demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos padronizados devem incluir no grupo de réus os responsáveis pelo fornecimento de acordo com as normas do Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de não retroceder a jurisprudência atual.
Quando se trata da responsabilidade solidária do Estado no fornecimento de medicamentos, essa abordagem oferece uma perspectiva mais ampla sobre o uso dos recursos públicos. No entanto, é importante notar que esse entendimento pode impor ônus substanciais aos entes federativos, dada a multiplicidade de suas obrigações. Como resultado, foi necessário criar leis que segmentassem esse tipo de responsabilidade, com o objetivo de garantir que tais normas fossem respeitadas, evitando assim possíveis prejuízos para a sociedade como um todo. Isso ocorre quando se tenta atender às necessidades individuais de um único cidadão ou mesmo de uma minoria (SANTOS, 2011).
Fato é que dentro das indústrias farmacêuticas há um mercado extremamente dinâmico e expansivo. Desse modo, é notória a grande pressão farmacêutica para medicamentos que agreguem novas tecnologias, mais avançadas, e que muitas vezes, possuem um custeio exacerbado devido à dificuldade em encontrar tais medicamentos, e até seus insumos de produção. Nesse liame, reforça Dino (2020):
Dentro da área de farmácia, existem vários tipos de fármacos para várias situações e casos diferentes e, assim, é possível dividir não só pela sua finalidade ou suas substâncias, mas também por serem medicamentos especiais ou medicamentos comuns.
(DINO, 2020, p. 2).
Evidenciou-se no Brasil, diante tais acontecimentos, um aumento considerável no número de processos judiciais relacionados à área da saúde, com ênfase na assistência farmacêutica e em procedimentos médicos. Essas demandas judiciais relacionadas a medicamentos podem ser atribuídas a duas principais razões. A primeira delas é a busca pela inclusão de um medicamento específico na lista de medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A segunda ocorre quando o medicamento já está listado no SUS, mas, devido a falhas na gestão, não é disponibilizado de maneira eficaz para os cidadãos. Devido a problemática em questão, o pais se vê por enfrentar debates judiciais que o desgasta e abarrota o orçamento do Estado, conforme aduz Brauner (2011):
[...] o aumento das ações judiciais acaba por desvirtuar a destinação de recursos provenientes do governo para as áreas prioritárias de atendimento. As distorções provocadas por processos judiciais em que há a exigência de compra de medicamentos de alto valor, que não estão incluídos na lista elaborada pelos gestores de saúde acabam por comprometer a atual política da saúde pública
(BRAUNER; CIGNACHI, 2011, p.37).
Em conclusão, o fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS e da Anvisa no Brasil é um desafio complexo, que envolve questões de acesso à saúde e disponibilidade de recursos. A judicialização tem sido uma via frequentemente utilizada para buscar a inclusão desses medicamentos, entretanto têm causado lacunas grandiosa no orçamento fiscal, destacando a necessidade de um debate amplo e aprofundado sobre como equilibrar o direito à saúde com a capacidade financeira do sistema de saúde público.
4.3.2. Da ADPF 45 e os recursos extraordinário 855.178, 657.718 e 566.471
Diante dessa situação complexa, o sistema judicial tem se esforçado para estabelecer critérios que determinem as condições sob as quais as solicitações de medicamentos e tratamentos devem ser acatadas. O Supremo Tribunal Federal (STF) desempenhou um papel fundamental ao analisar essas ações em instâncias recursais. Alguns dos vereditos proferidos por essa Corte ilustram sua postura em relação a essa questão.
No proeminente caso, a Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional nº 45 (ADPF 45), o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que no caso de falha por parte dos órgãos estatais em garantir os direitos humanos de segunda geração, como o direito à saúde e os direitos sociais, é responsabilidade do Poder Judiciário garantir esses direitos aos cidadãos. Nessa decisão, a tese da Reserva do Possível foi derrotada, devido à natureza jurídica dos direitos em questão.
Apesar de ter sido proferida como uma decisão monocrática pelo Ministro Celso de Mello, desempenha um papel de significativa relevância na discussão sobre direitos sociais, o conceito do mínimo existencial e a teoria da reserva do possível. Mesmo que a ação tenha sido posteriormente considerada prejudicada, a análise dela continua a ser importante, uma vez que o Ministro Celso de Mello aborda e discute questões cruciais.
No decorrer do julgamento da ADPF 45-MC/DF, pode-se extrair o seguinte entendimento:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).”
(ADPF 45 MC, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 29/4/2004, publicado em DJ 4/5/2004. Informativo n. 345-STF, grifo nosso).
Já no que tange aos recursos extraordinário, o Supremo Tribunal Federal tem adotado decisões brilhantes a fim de apaziguar os litígios judiciais. No Recurso Extraordinário (RE) 855.178, originado no Estado de Sergipe, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu a responsabilidade solidária entre os entes federativos no cumprimento das obrigações decorrentes das demandas relacionadas à saúde. A Corte determinou que a incumbência de direcionar o ente responsável pelo cumprimento da ordem judicial cabe ao magistrado responsável pelo caso.
É valido lembrar, que o tema da responsabilidade solidária traz à tona o tema 793 do STF “Responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde” (Supremo Tribunal Federal, 2023), já que o tema se encontra suspenso a fim de ser julgado posteriormente. A responsabilidade solidária é necessária, entretanto não é viável pesar estados, municípios e a União a fim de resolver demandas judiciais que, muitas vezes, o próprio ente em questão consegue arcar. Além de atrasar a disponibilidade do medicamento, equipamento hospital ou qualquer outra demanda solicitada pelo cidadão, ocasiona em um abarrotamento gigante no Poder Judiciário.
Enfim, a responsabilidade solidária entre os entes federativos na saúde significa que União, estados e municípios compartilham a obrigação de fornecer tratamentos e medicamentos quando requisitados judicialmente. O STF determina, caso a caso, levando em consideração critérios como a disponibilidade do medicamento ou tratamento no âmbito do SUS, a localização do demandante e outros fatores pertinentes, assim se evidencia qual ente deve arcar com o cumprimento da ordem. Isso garante o acesso à saúde, mas também gera desafios financeiros.
Já o Recurso Extraordinário (RE) de n°. 657.718, originário do Estado de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que, em princípio, o poder público não possui a obrigação de fornecer medicamentos sem registro na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) quando estes são de caráter experimental. No entanto, foi estabelecida uma exceção a essa regra, na qual o fornecimento de medicamentos sem registro pode ser determinado, desde que se cumpram três requisitos específicos:
-
A existência de um pedido de registro do medicamento no Brasil, exceto para medicamentos órfãos destinados ao tratamento de doenças raras e ultrarraras.
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A comprovação de que o medicamento possui registro em renomadas agências reguladoras no exterior.
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A inexistência de um substituto terapêutico com registro no Brasil.
O Recurso Extraordinário 657.718 já passou por julgamento e teve seu acórdão oficializado. Inicialmente, teve o ministro Marco Aurélio como relator, porém, em razão de sua aposentadoria, a relatoria para o acórdão passou para o ministro Luís Roberto Barroso. Vale ressaltar que ainda não houve o trânsito em julgado deste processo.
Neste caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a questão da constitucionalidade de o Poder Judiciário determinar que o Estado forneça medicamentos que não possuam registro na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e definiu que tais ações devem ser direcionadas exclusivamente contra a União Federal, estabelecendo-a como a responsável pelo fornecimento desses medicamentos em casos excepcionais que atendam aos critérios mencionados.
O acórdão do tribunal de origem, que deu origem ao recurso extraordinário, foi assim sumarizado:
SUS FORNECIMENTO PELO ESTADO DE MEDICAMENTO IMPORTADO AUSÊNCIA DE REGISTRO NA ANVISA IMPOSSIBILIDADE. Não se recomenda o deferimento de pedido de medicamentos não aprovados na ANVISA Conclusão aprovada por maioria no 1º Curso do Fórum Permanente de Direito à Saúde, realizado no dia 9 de agosto de 2010 neste Tribunal. Se o medicamento indicado pelo médico do agravante não possui registro na ANVISA, não há como exigir que o Estado o forneça, já que proibida a sua comercialização
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Alcirene de Oliveira. Recorrido: Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2019).
Após a conclusão do julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) deliberou, por maioria, que, em geral, não é cabível que o Poder Judiciário determine ao sistema público de saúde o fornecimento de medicamentos que não estejam registrados na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Essa regra tem como exceção os casos em que ocorra uma demora injustificada na análise do pedido de registro por parte da agência pública.
Adicionalmente, ficou estabelecido que medicamentos experimentais, que ainda não tenham comprovação de eficácia e que estejam em fase de pesquisa, não podem, em nenhuma circunstância, ser objeto de ordem judicial para fornecimento pelo SUS:
DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. MEDICAMENTOS NÃO REGISTRADOS NA ANVISA. IMPOSSIBILIDADE DE DISPENSAÇÃO POR DECISÃO JUDICIAL, SALVO MORA IRRAZOÁVEL NA APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE REGISTRO. [...]. Provimento parcial do recurso extraordinário, apenas para a afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Alcirene de Oliveira. Recorrido: Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2019)
Por fim, o Supremo decidirá, ainda, acerca do RE 566.471 que traz em seu corpo sobre a obrigação do Estado em fornecer medicamentos de alto custo a indivíduos portadores de doenças graves que não possuem recursos financeiros para adquiri-los. Refere-se ao Recurso Extraordinário (RE) 566.471, originado no Estado do Rio Grande do Norte e com relatoria originária do ministro Marco Aurélio.
O acórdão proferido pelo tribunal de origem, que resultou na interposição do recurso extraordinário, apresentou a síntese do caso da seguinte maneira:
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. TUTELA ANTECIPADA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. TRANSFERÊNCIA PARA O MÉRITO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO. RECUSA DO ESTADO EM FORNECÊ-LO. IMPOSSIBILIDADE. AFRONTA A DIREITOS ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO APELANTE EM PROMOVER O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO IMPRESCINDÍVEL AO TRATAMENTO DE SAÚDE DA APELADA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE 1º GRAU. PRECEDENTES DESTA EGRÉGIA CORTE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO
(CONJUR, 2023. Recurso Extraordinário. Recorrente: Estado do Rio Grande do Norte. Recorrido: Carmelita Anunciada de Souza, julgado em 11/03/2020).
Na situação específica, o ministro reconheceu a inconstitucionalidade de determinar ao Estado o fornecimento de tratamento não registrado. Ele argumentou que permitir que o Judiciário tomasse essa decisão poderia colocar em risco a saúde do paciente, uma vez que "concordar com o contrário seria sancionar experimentos laboratoriais, terapêuticos, com benefícios clínicos e custos de tratamento fora de controle pelas autoridades públicas". Ele concluiu destacando que, em última análise, isso significaria "autorizar o experimentalismo farmacêutico à custa da sociedade, que financia a saúde pública por meio de impostos e contribuições", conforme exposto nas fls. de 12 a 15 do julgado em questão.
Tal situação bate frente a frente com o que está constitucionalizado na CF/88, posto que abarca a ideia do princípio da solidariedade expresso no art. 3º, inciso I, da própria Constituição:
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da república Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (PLANALTO,2023).
Em suma, os julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) em casos de judicialização da saúde têm sido cruciais para definir os limites e as diretrizes desse fenômeno no Brasil. A corte tem buscado equilibrar o acesso à saúde com a responsabilidade fiscal e a necessidade de critérios claros para a concessão de tratamentos e medicamentos não disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Esses julgamentos refletem a complexidade do tema, onde direitos individuais se confrontam com recursos limitados do Estado. Portanto, a jurisprudência do STF continua a desempenhar um papel fundamental na definição dos parâmetros legais que regem a judicialização da saúde, buscando garantir o acesso à saúde sem comprometer a sustentabilidade do sistema de saúde público brasileiro.