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Intangibilidade salarial: qual seu limite frente à execução?

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Resumo:


  • A execução de dívidas tem evoluído historicamente para proteger o devedor, passando da execução pessoal para a patrimonial, com o intuito de garantir uma vida digna ao executado.

  • O princípio da boa-fé objetiva impõe que as partes ajam com ética, lealdade e confiança nas relações jurídicas, incluindo a execução de obrigações, onde o devedor não deve impedir o credor de receber o que lhe é devido.

  • A impenhorabilidade salarial, apesar de proteger o devedor, não pode ser absoluta, devendo ser ponderada com o direito do credor à efetividade das decisões judiciais, o que pode levar à mitigação da impenhorabilidade quando o salário excede um limite que garanta a subsistência digna do devedor.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. A PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS: EXECUÇÃO MENOS GRAVOSA VERSUS EFETIVIDADE.

As relações jurídicas em sociedade devem ser pautadas pelo princípio da boa-fé objetiva, sendo um instituto presente no campo das relações privadas e negociais. Este é um princípio geral, ou melhor, uma cláusula geral.

Agir com boa fé trata-se de atitudes não reprováveis pela sociedade, seguindo preceitos éticos, morais, de confiança e de lealdade. Desta forma, retira-se o caráter subjetivo, pois traz uma ideia de atitudes no qual o princípio pode ser violado, independentemente da crença pessoal do agente.

Segundo Ruy Rosado de Aguiar, boa-fé define-se como:

Um princípio geral de Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera deveres secundários de conduta, que impõem às partes comportamentos necessários, ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da celebração e da execução da avenca. (AGUIAR JR., 1995, p.24)

O civilista Caio Mário da Silva Pereira corrobora tal entendimento e ensina:

A boa-fé, em sua concepção objetiva, como conduta ética entre as partes que negociam, impõe correção e lealdade. Nesse contexto, ela sobrepaira como “princípio orientador de interpretação”. No entando, o princípio da boa-fé objetiva, segundo a moderna doutrina, também possui o condão de criar deveres jurídicos anexos, como deveres de correção, cuidado, cooperação, sigilo, prestação de contas, e mesmo de limitação ao exercício de direitos subjetivos, como ocorre nas proibições de venire contra factum proprium, do inciviliter agere e na invocação do tu quoque. (PEREIRA, 2010, p. 430)

O Código Civil atual, em vários artigos6, consagra o instituto da boa-fé, seja nos negócios jurídicos, nos contratos etc. Assim, quis o legislador infraconstitucional, atendo-se à necessária modificação de um viés social, adequar-se à sistemática principiológica trazida pela Carta Magna7 de 1988.

Tornou-se o princípio da boa-fé um filtro essencial para as relações em sociedade, de cunho comercial, pelo qual alguém oferece prestação a outrem tendo em vista uma contraprestação prometida ou pactuada.

Nesta feita, surge o dever de lealdade, originário da boa-fé, tendo como objetivo garantir um maior respeito ao próximo nas relações jurídicas, sendo vedada qualquer possibilidade de tirar vantagem sobre outrem. Esta concepção é oriunda do instituo romano nemo turpitudinem suam allegare potest, que significa: ninguém poderá se beneficiar da própria torpeza.

Ao pactuar uma obrigação, o devedor obriga-se a dar a contraprestação acordada, gerando uma expectativa no credor de receber aquilo que lhe foi prometido.

Ocorre que se o devedor sabe que a contraprestação pela qual garantiu o cumprimento não lhe é possível, e não há nenhum bem em seu nome (já que este poderia servir como uma garantia do cumprimento contratual), ele não deveria pactuar o acordo e ferir os ditames da boa-fé, já que causa no credor uma impossibilidade de execução e, como já estudado, a lei protege o devedor, a fim de garantir-lhe a dignidade.

Porém, ao impedir a penhora de vários objetos, inclusive as verbas salariais, o legislador deixa o credor de “mãos atadas”. Tal fato, se pensarmos em uma escala macro, tende a gerar uma grande insegurança jurídica, pois como garantir a eficácia do princípio da boa-fé objetiva se a execução contra o descumpridor deve passar por um denso filtro protetivo?

O credor acaba sendo prejudicado por não haver maneira de garantir o adimplemento da obrigação, o que gera inúmeros efeitos para a sociedade, como menor vontade de querer pactuar obrigações e aumento de juros.

A boa fé deve estar presente também na atividade jurisdicional. Para tanto, a doutrina criou o chamado princípio da boa fé processual, no qual o sentido basilar é que as partes devem tratar-se com lealdade. Este princípio é extraído expressamente do artigo 5º, do Novo Código de Processo Civil de 2015, que diz “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo coma boa-fé”.

Portanto, pensar em uma relação na qual o executado beneficia-se em detrimento do exequente, por força de uma determinação legislativa, sem analisar o caso concreto e a conduta individualizada daquele individuo, é negar uma série de direitos oriundos dos diversos princípios comentados ao longo desse trabalho.

Faz-se necessária uma ponderação sobre a possibilidade de mitigação dos direitos protetivos, atentivos à execução, com o princípio da efetividade, no qual aduz que para um processo ser devido, ele precisa ser efetivo. Desta forma, não há possibilidade de ser legalistas ao ponto de afirmar que tal discussão não é possível, pois além de perfeitamente possível, é necessária e essencial para garantir o preceito básico da confiança na jurisdição estatal.

O Estado, desde o contrato social, vislumbrado por Hobbes, Locke e Rousseau, no qual resumidamente a sociedade entrega ao rei o poder de garantir o melhor convívio em sociedade como forma de pôr fim ao estado de natureza em que se encontrava, passou, então, a jurisdição a ser de domínio estatal.

Assim sendo, como poderia haver confiança nesse Estado, se ele mesmo não é capaz de proporcionar a eficácia jurisdicional de suas decisões? A insegurança jurídica “paira no ar”, causando um descrédito do próprio Estado Democrático de Direito, sendo, desta maneira, urgente a ponderação de princípios como forma de garantir a efetividade das decisões advindas da jurisdição estatal.

Fredie Didier conceitua jurisdição desta forma:

Jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) criativo (c), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tonar-se indiscutível (g).” Havendo assim, valorização e reconhecimento da força normativa da constituição, principalmente das normas-princípios, que exigem do órgão jurisdicional uma postura mais ativa e criativa para a solução de problemas, desenvolvendo a teoria dos direitos fundamentais, que impõe aplicação direta das normas que os consagram, independentemente de intermediação legislativa” (DIDIER JUNIOR, 2010, p. 83).

Pode-se então extrair de sua lição que, para uma adequação ao atual sistema, o conceito de jurisdição teve que se atualizar, passando a possibilitar a aplicação direta e horizontal dos direitos fundamentais.

Se pensar em um estudo de direito comparado, irá verificar-se que em outros países a impenhorabilidade na totalidade dos vencimentos é exceção, pois foram ponderados os interesses do executado e do exequente, a fim de garantir a defesa do direito fundamental da dignidade da pessoa humana de ambos.

O direito italiano tem a vanguarda dos ideais processualistas, dentre eles está Giuseppe Chiovenda, sendo de sua autoria a idealização da efetividade como escopo maior do processo, celebrizando a seguinte frase: Il processo deve dar per quanto possible praticamente a chi há un diritto quello e propio quello ch''egli há diritto di conseguire 8 . (CHIOVENDA, Giuseppe; 1911).

Os países europeus, em sua grande maioria, seguem a perspectiva italiana para garantir uma maior efetividade processual.

No Código de Processo Civil Alemão há possibilidade de penhora parcial de salários, tenho em vista que o art. 811, n. 8, considera-se impenhorável apenas o mínimo para preservar dignidade do executado, sendo impenhoráveis somente os valores necessários para suprir o lapso temporal entre a penhora e o próximo pagamento. Assim, os valores são ponderados pelo magistrado no caso concreto, levando-se em consideração o valor dos ganhos advindos do trabalho pelo executado e suas necessidades.

No direito português, existe previsão no Código de Processo Civil, art. 823, n. 1, letra e, de que somente 2/3 do salário são impenhoráveis, admitindo-se que a penhora incida sobre o 1/3 restante. Ainda na península ibérica, “o direito espanhol, na ‘Ley de Enjuiciamiento Civil’” (NEVES, 2010), não cria um valor fixo, e cria um sistema progressivo, no artigo 607, que varia de 30% a 90%, dependendo da faixa em que se verifica o valor total dos vencimentos.

No direito argentino previu expressamente a possibilidade de penhora salarial, porém condicionou no limite de 20% do valor do salário que exceder o limite necessário para garantir a subsistência do executado.

Nos Estados Unidos existe verdadeira discricionariedade judicial no arbitramento da porcentagem do salário que pode ser objeto de penhora, levando o juiz em consideração as necessidades mínimas do executado e de sua família no caso concreto. Contudo deve-se respeitar a “lei federal que limita tal desconto, exigindo que na fixação da penhora o devedor mantenha no mínimo 75% ou 30 vezes o valor do salário mínimo vigente, o que for maior” (NEVES, 2010).

Percebe-se, portanto, um atraso no sistema executório brasileiro quando o compara aos sistemas preponderantemente europeus. Como observado o sistema espanhol é o extremo oposto do brasileiro, pois criou mecanismos cujo objetivo é garantir a eficiência processual e, assim, garantir o pagamento ao exequente do que lhe é justo. Nosso Código de Processo Civil ainda, infelizmente, garante um resguardo de direito excessivo ao executado, impedindo uma maior confiabilidade no sistema jurisdicional.

Dessa forma, Marinoni assevera:

“O impedimento de penhora de tais bens obstaculiza a tutela prometida pelo direito material e, por consequência, o exercício efetivo do direito fundamental de ação ou à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV. Da CF). Ou melhor, o Estado, diante do veto, está conferindo proteção insuficiente ao direito fundamental de ação, impedindo o seu exercício de forma efetiva ou de modo a permitir a tutela do direito de crédito. Na verdade, ao chancelar a intangibilidade do patrimônio do devedor rico, o Estado abandona o cidadão sem fundamentação constitucional bastante”. (MARINONI, 2010, p. 260).

O §3º do art. 649 do Código de Processo Civil e o veto presidencial por ele sofrido serão abordados de maneira mais aprofundada no capítulo seguinte desta obra. Mas, como se está falando de ponderação de uma execução menos gravosa com a efetividade processual, é necessário pontuar, mesmo que de maneira rápida, o dispositivo citado, pois foi consenso tanto na sua elaboração, quanto na doutrina, de que ele garantia o meio termo necessário entre esses dois extremos.

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O texto vetado mitigava a impenhorabilidade salarial, desde que atendidos certos critérios escolhidos pelo legislador, como em apenas salários superiores a 20 (vinte) vezes o salário mínimo vigente, e a penhora somente poderia ser de até 40% (quarenta por cento) dos vencimentos, após os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária etc. Desta forma, a penhora cairia sobre o salário líquido.

Neste sentido Fredie Didier aponta:

“O §3º trazia uma hipótese de relativização dessa regra da impenhorabilidade. Permitia-se a penhora de até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios (§3º do art. 649). A razão de ser regra era bem clara: considerava-se um determinado valor como impenhorável, para garantir a sobrevivência digna do executado (R$7.000,00 hoje), e permitia-se a penhora de apenas 40% do que excedesse esse piso. Muito razoável. Há profissionais que chegam a ganhar cem, duzentos, trezentos mil reais por mês, é irrazoável e inconstitucional, por aniquilar o direito fundamental à efetividade, a impenhorabilidade de qualquer parcela desta remuneração. Reforça-se o que já se disse acima. Pegue-se o exemplo de um salários de cem mil reais: poderiam ser penhorados 40% de R$91.700,00 (considerando o salário-mínimo de R$415,00), o que equivale a R$36.680,00, restando R$36.320,00 (o que corresponde a 153 salários mínimos) naquele mês para que a sua sobrevivência digna fosse garantida. Os valores seriam ainda mais absurdos se considerássemos o mês de pagamento do décimo terceiro salário...” (DIDIER JUNIOR, 2010, p. 545).

Após essa necessária ponderação entre os princípios da execução menos gravosa e o princípio da efetividade, percebe-se que por mais necessária à proteção do executado seja, ela não pode ser absoluta, pois subjugaria o direito da outra parte envolvida, ferindo os preceitos do devido processo legal e da garantia a uma vida digna, já que se trata de uma análise entre dois direitos fundamentais em conflito.

Assim assevera o mesmo autor:

Enfim, são em princípios constitucionais as regras que restringem a responsabilidade patrimonial, impedindo a penhora de certos bens. Em um Estado Democrático de Direito que busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88), a restrição à penhora de certos bens apresenta-se como técnica processual tradicional e bem aceita pela sociedade contemporânea. Mas essas regras não estão imunes ao controle de constitucionalidade in concreto, e por isso, podem ser afastadas ou mitigadas se, no caso concreto, a sua aplicação revelar-se não razoável ou desproporcional”. (DIDIER JUNIOR, 2010, p. 545).

Diante do exposto há uma forte tendência de aplicação das normas e principalmente dos princípios constitucionais nas relações entre particulares e, não apenas na relação vertical contra o Estado.

Feito esse importante estudo, passa-se ao estudo dos fundamentos do veto presidencial ao parágrafo terceiro do artigo 649, do Código de Processo Civil, e as razões defendidas pelos autores para a aplicação da mitigação da impenhorabilidade salarial com base nesse dispositivo.


4. OS FUNDAMENTOS PARA APLICAÇÃO DA MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE SALARIAL.

O legislador elegeu por sua vontade no sentido de proteger a figura do executado, assim, o inciso IV do artigo 833 do referido diploma contem a seguinte redação:

os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;

Como pode-se notar, o dispositivo ressalvou expressamente a possibilidade trazida pelo §2º, do mesmo dispositivo, qual seja:

§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3º..

Assim, como se denota de uma clara interpretação do texto legal, a inquestionável possibilidade, na vigência do Novo Código de Processo Civil, da mitigação da impenhorabilidade salarial, quando a verba alimentícia superar os 50 salários-mínimos mensais.

Neste diapasão se depara com uma situação na qual o princípio da proporcionalidade tem tido frequente aplicação do direito processual civil, sobretudo na execução, onde se verificam conflitos entre o princípio da efetividade e o da dignidade da pessoa humana, sobretudo no que diz respeito aos poderes exercidos pelo juiz.

Muitos doutrinadores entendem que esta impenhorabilidade não pode ser considerada de forma absoluta9, principalmente quando há conflito entre regras e entre princípios constitucionais vigentes no ordenamento jurídico.

Entre eles está Anita Puchta, possuidora do seguinte entendimento sobre tais impenhorabilidades:

As impenhorabilidades no Brasil constituem um sistema rígido, sem a flexibilidade necessária, sem uma ponderação, um equilíbrio necessário, tanto na elaboração de leis como nas decisões no caso concreto. Leis de impenhorabilidade excessiva possuem defeitos e vícios extrínsecos, de modo a macular a ordem jurídica, tornando-a fortemente injusta com quem busca o bem da vida. Em suma, é a própria ordem jurídica voltando-se contra si mesma.[...] Nenhum direito no ordenamento é absoluto. Sempre há necessidade que se ceda em um direito para observar outro. As normas de impenhorabilidade sem a mitigação necessária, ou seja, rígidas, estão a ofender a dignidade humana e o direito fundamental de ação da vítima de ilícitos.(PUTCHA, 2013, p. 156).

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Cândido Rangel Dinamarco leciona no sentido de que as impenhorabilidades devem ser relativizadas, principalmente aquelas utilizadas para proteger um devedor que não honra com o pagamento de seu débito e continua mantendo o mesmo padrão de vida:

É preciso estar atento a não exagerar impenhorabilidades, de modo a não as converter em escudos capazes de privilegiar o mau pagador. A impenhorabilidade da casa residencial, estabelecida pela Lei do bem de Família (Lei n. 8009, de 29.03.1990), não deve deixar a salvo uma grande e suntuosa mansão em que resida o devedor, o qual pode muito bem alojar-se em uma residência de menor valor. (DINAMARCO, 1998; p. 127)

O Poder Judiciário, ainda sobre a égide do CPC/73, quando não havia norma processual permissiva expressa vinha demonstrando uma tendência a atenuar a impenhorabilidade absoluta do salário, proporcionando, assim, uma maior efetividade na prestação da tutela jurisdicional ao credor. Desta forma, fundamentando-se nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o Judiciário vem aplicando reiteradamente decisões que buscam cominar a satisfação do credor.

As decisões do Poder Judiciário surgem tanto na esfera cível quanto na trabalhista. No âmbito trabalhista, a possibilidade da penhora do salário está elencada no enunciado 70 do TRT/MG, in verbis:

Nesse sentido, dispõe o Enunciado 70, determinando que, na aplicação do artigo 649, IV, do CPC, sejam observados o princípio da proporcionalidade e as particularidades do caso concreto. A proteção do crédito de natureza trabalhista suaviza muito o princípio da menor onerosidade para o devedor, previsto no artigo 620 do CPC, e reforça o princípio do resultado, pelo qual a execução é realizada em benefício do credor. (TRT-3/MG, 2006)

Seguem algumas decisões nesse sentido:

TRT/MG EMENTA: AGRAVO DE PETIÇÃO. PENHORA SOBRE PERCENTUAL DE APOSENTADORIA. MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE PREVISTA NO ARTIGO 649, INCISO IV, DO CPC. Mitiga-se a impenhorabilidade do valor da aposentadoria da devedora, posto que confrontada com a satisfação de crédito trabalhista de natureza alimentar. Nesse sentido, o Enunciado 70 aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho (23/11/2007): EXECUÇÃO PENHORA DE RENDIMENTOS DO DEVEDOR. CRÉDITOS TRABALHISTAS DE NATUREZA ALIMENTAR E PENSÕES POR MORTE OU INVALIDEZ DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. POSSIBILIDADE. Tendo em vista a natureza alimentar dos créditos trabalhistas e da pensão por morte ou invalidez decorrente de acidente do trabalho (CF, art. 100, § 1º-A), o disposto no art. 649, inciso IV, do CPC deve ser aplicado de forma relativizada, observados o princípio da proporcionalidade e as peculiaridades do caso concreto. Admite-se, assim, a penhora dos rendimentos do executado em percentual que não inviabilize o seu sustento. (TRT/MG, 2007)

TRT/RS EMENTA: IMPENHORABILIDADE. CONTA SALÁRIO. Hipótese em que se relativista a aplicação do disposto no art. art. 649, IV, do CPC, autorizando-se a penhora mensal de 20% de salário de sócio da executada para fins de satisfação da dívida trabalhista, dentro de um critério de razoabilidade, porquanto a norma deve ser aplicada conforme o princípio que a informa, de proteção do salário enquanto parcela a ser disponibilizada ao empregado para fins de subsistência, respeitado, no caso, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana em relação ao exequente e ao executado. (TRT/RS, 2009)

Contudo, ao passo em que a análise se volta para a Justiça Comum, essa tendência começa a ser inflexibilizada, já que em sua maioria os tribunais possuem juízes e desembargadores positivistas em sua essência. O tribunal que se excetua deste quadro é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS).

O TJRS sempre teve como característica a aplicação de novas tendências jurídicas, assim, não é diferente com a mitigação da impenhorabilidade salarial.

Como forma de demonstrar tais apontamentos, foram destacadas algumas decisões:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO. PENHORA ON LINE. INCIDENTE DE IMPENHORABILIDADE. VALORES DE TERCEIRO. PENHORA SALARIAL. ART. 649, IV DO CPC. MITIGAÇÃO DA REGRA DA IMPENHORABILIDADE. Os valores constritos na conta corrente da filha do executado devem ser liberados à sua titular, uma vez que não é parte na execução. Ausência de demonstração de que o dinheiro é transferido pelo executado com o objetivo de frustrar a execução. Manutenção da penhora recaída sobre a conta corrente do agravado. A impenhorabilidade salarial a que alude o art. 649, IV do CPC não é absoluta, podendo ser mitigada em situações como a do caso em concreto, em que a ação já tramita há muitos anos sem solução, o devedor possui salário acima da média e a constrição operada não comprometer sua subsistência. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME

(TJRS, 2014).

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal também se posiciona em tal sentido, a fim de possibilitar a penhora de vencimentos salariais, caso isso não impeça o devedor a ter uma vida digna. Segue decisão extraída do Juizado Especial Cível neste sentido:

JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATO MANIFESTAMENTE ILEGAL. INOCORRÊNCIA. RECLAMAÇÃO. ERRO DE PROCEDIMENTO. ATO APTO A CAUSAR DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. INOBSERVÂNCIA DO PRAZO LEGAL OBSTANDO A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. PENHORA DE PARCELA DE VERBA REMUNERATÓRIA. POSSIBILIDADE. PERDA DA NATUREZA SALARIAL. MITIGAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE LEGAL. ADEQÜAÇÃO AO FIM VISADO PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO. PRESERVAÇÃO DA SUBSISTÊNCIA DIGNA DO DEVEDOR E DA SATISFAÇÃO DO LEGÍTIMO DIREITO DO CREDOR. RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. SEGURANÇA DENEGADA. (...) 5) à vista da relevância social da tutela jurisdicional, devem-se mitigar as impenhorabilidades legais, adequando-as ao fim desejado pelo legislador ordinário, consistente na tutela do mínimo indispensável à sobrevivência digna, em harmonia às disposições constitucionais aplicáveis à espécie, condição atendida pelo juízo singular. 6) precedentes jurisprudenciais (TJDF, 2006).

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ainda que de forma bem tímida e incipiente, através apenas de decisões isoladas, já abarcou a possibilidade defendida neste trabalho acadêmico, como nota-se na decisão exemplificativa a seguir:

Agravo de instrumento. Decisão que, em ação monitória, determinou a expedição de mandado de penhora mensal da conta da executada, no Banco do Brasil S/A, até o limite de 30% dos proventos líquidos da mesma e até a satisfação do débito. Manutenção. A penhora no percentual de trinta por cento de valores que constam de conta-salário não implica em onerosidade excessiva ao devedor e muito menos em ofensa ao art. 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, havendo, assim, uma mitigação da regra da impenhorabilidade da verba salarial em prol da efetividade do processo de execução, sem, no entanto, se descurar do princípio de que a execução deve se processar da forma menos onerosa ao devedor. Aplicação do artigo 557, caput do CPC. DES. HELDA LIMA MEIRELES - Julgamento: 20/07/2011 - DECIMA QUINTA CAMARA CIVEL.

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO JUDICIAL. BLOQUEIO DO VALOR CORRESPONDENTE A 30% DOS PROVENTOS DE APOSENTADORIA DE UM DOS EXECUTADOS. DECISÃO EM SINTONIA COM A JURISPRUDÊNCIA (...)I-Na esteira dos precedentes jurisprudenciais, a penhora no percentual de trinta por cento de valores que constam de conta-salário não implica em onerosidade excessiva ao devedor e muito menos em ofensa ao art. 649, IV, do Código de Processo Civil, havendo, assim, uma mitigação da regra da impenhorabilidade da verba salarial em prol da efetividade do processo de execução, sem, no entanto, se descurar do princípio de que a execução deve se processar da forma menos onerosa ao devedor;II - Hipótese em que a execução judicial bloqueou valor correspondente a 30% da conta-salário do executado;II - Recurso ao qual se negou seguimento - art. 557, do Código de Processo Civil;IV - Improvimento ao agravo interno. (TJRJ, 2010)

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais também segue essa corrente, mas com decisões apenas pontuais:

EXECUÇÃO - PENHORA DE VALORES PROVENIENTES DE BENEFÍCIO DE NATUREZA ALIMENTAR - POSSIBILIDADE - LIMITE DE 30%. Tanto o texto constitucional quanto o processual vedam a retenção de salários, pois é através desses que os trabalhadores se mantêm e sustentam suas respectivas famílias, quitando seus compromissos cotidianos. O artigo que veda a penhora sobre os salários, soldos e proventos devem ser interpretados levando-se em consideração as outras regras processuais civis. Serão respeitados os princípios da própria execução, entre eles o de que os bens do devedor serão revertidos em favor do credor, a fim de pagar os débitos assumidos. “A penhora de apenas uma porcentagem da verba de natureza alimentar não fere o espírito do artigo 649 do Código de Processo Civil.” (TJMG, 2008)

Já os Tribunais Superiores, como o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), vinham adotando um posicionamento discrepante em relação a vários tribunais de segunda instância, pois estes interpretavam o art. 649, IV, do Código de Processo Civil de 1973 em sua literalidade. Ou seja, para esses tribunais o salário goza do privilégio de ser absolutamente impenhorável, salvo para o pagamento de pensão alimentícia, em oposição aos tribunais inferiores.

Os tribunais de segundo grau vinham partido do pressuposto de que o salário pode sofrer constrição judicial, desde que seja respeitada a subsistência digna do executado.

O próprio STJ, mais recentemente, passou a admitir a interpretação extensiva para possibilitar a penhora do salário para pagamento de algumas dívidas, incidindo a exceção do § 2º do artigo 649 do Código de Processo Civil, ao conferir caráter alimentar aos honorários sucumbenciais, conforme pode se vislumbrar da notícia descrita abaixo:

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão recente, autorizou a penhora de parte do salário de um trabalhador para o pagamento de uma dívida. A possibilidade foi permitida pela Corte porque o débito foi considerado de natureza alimentar, ou seja, destinado ao sustento da outra parte. O caso levado à análise da 3ª Turma é de um advogado que cobrava na Justiça o recebimento dos honorários de sucumbência, que por lei é devido pela parte que perde o processo. Trata-se de um dos primeiros casos em que o STJ autorizou o bloqueio de salário para essa finalidade (ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO, 2011).

No caso citado, há uma ponderação entre dois direitos alimentares: o do devedor e o do credor (por se tratar de verba advocatícia), assim, apesar de justa a decisão, ela ainda pouco entra em uma discussão mais ampla e genérica sobre o tema, limitando-se a esta situação específica.

A jurisprudência do STJ, em regra, é acerca da impossibilidade:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.ART. 649, IV, DO CPC. VERBA DE NATUREZA ALIMENTAR.IMPENHORABILIDADE. DISCUSSÃO QUANTO À SUA NATUREZA. REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.I. No caso, o Tribunal de origem, com fundamento nas provas dos autos, manifestou-se sobre a impossibilidade de se penhorar crédito decorrente de verba salarial, de índole alimentar. Assim, a pretendida inversão do julgado, para que se afaste a natureza alimentar da verba, em sede de Recurso Especial, demandaria incursão no conjunto fático-probatório dos autos, inviável, em face da Súmula 7/STJ. Precedentes (STJ, AgRg no Ag 1.296.680/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe de 02/05/2011; AgRg no AREsp 170.141/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, DJe de 29/06/2012).II. Consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, "a análise da afirmação de que os valores depositados nas contas objeto de penhora seriam de natureza salarial exigiria revolvimento do contexto probatório dos autos, providência vedada pela Súmula 7/STJ" (STJ, 2014).

Os Tribunais Regionais do Trabalho apresentam um posicionamento bem intransigente, para tanto tendo criado uma orientação jurisprudencial pela qual é ilegal qualquer possibilidade de penhora de verbas salariais, para isso usa-se a seguinte decisão como exemplo:

Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limitado a determinado percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o art. 649, IV, do CPC contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no art. 649, § 2º, do CPC espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista (TRT 4ª região, 2014).

Nesta Feita, a jurisprudência do órgão máximo da justiça trabalhista deve se pautar em tais critérios, como se observa nos seguintes acórdãos:

RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO TRABALHISTA. PENHORA. VERBA SALARIAL. IMPOSSIBILIDADE 1. O Tribunal Superior do Trabalho pacificou o entendimento de que é ilegal a penhora de créditos de natureza salarial depositados em conta-corrente, sendo inviável interpretação ampliativa da norma imperativa contida no art. 649, IV, do CPC (Orientação Jurisprudencial nº 153 da SbDI-2, do TST). 2. Desse modo, acórdão regional que mantém a penhora de percentual de créditos salariais para satisfação de dívida trabalhista viola o disposto no art. 7º, X, da Constituição Federal, que dispõe sobre a intangibilidade salarial. (...) (TST, 2014)

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENHORA DE SALÁRIOS E DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA. ILEGALIDADE. ART. 649, IV, DO CPC. INCIDÊNCIA DA COMPREENSÃO DEPOSITADA NA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 153 DA SBDI-2 DO TST. 1. Nos termos do art. 649, IV, do CPC, são absolutamente impenhoráveis -os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal-, salvo para pagamento de prestação alimentícia (§ 2º). (...) 3. O legislador, ao fixar a impenhorabilidade absoluta, enaltece a proteção ao ser humano, seja em atenção à sobrevivência digna e com saúde do devedor e de sua família, seja sob o foco da segurança e da liberdade no conviver social dos homens (CF, arts. 5º, -caput-, e 6º). 4. Diante do comando do inciso IV do art. 649 do CPC e da inteligência da Orientação Jurisprudencial 153/SBDI-2/TST, não se autoriza a penhora de salários ou de proventos de aposentadoria, sob pena de ofensa a direito líquido e certo do devedor. Recurso ordinário conhecido e provido. (TST, 2013)

Contudo, ainda está deveras breve o Novo Código de Processo Civil Brasileiro de 2015, com o inicio dos seus efeitos datados apenas em março de 2016, assim ainda não há ainda decisões relevantes já com a sua incidência, devendo-se aguardar como a jurisprudência se posicionará diante dessa nova possibilidade, dessa vez cunhada de forma expressa na Lei Processual.

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Sobre o autor
Haroldo José Cruz de Souza Júnior

Advogado. Mestre em Direito Internacional. Pós-graduado em Direito Público. Graduado em Direito. Experiência na realização de pesquisas doutrinárias e legislativas a fim de abordar os aspectos jurídicos das temáticas da Cibersegurança, da Proteção de Dados, do Vigilantismo, e da Privacidade. Vivência em mediação de conflitos, elaboração de pareceres administrativos e análise de contratos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA JÚNIOR, Haroldo José Cruz. Intangibilidade salarial: qual seu limite frente à execução?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7446, 20 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107258. Acesso em: 22 dez. 2024.

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