O Código Penal, em seu artigo 63, define o que é reincidência, nos seguintes termos: "Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior."
Segundo Capez1, a natureza jurídica da reincidência é de circunstância agravante genérica, cujo caráter é subjetivo ou pessoal, de modo que não se comunica aos eventuais partícipes ou co-autores. Assim prescreve o artigo 30 do Código Penal: "Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime".
A reincidência, como circunstância agravante, tem significativo relevo, por se refletir sobre um elevado número de situações jurídicas previstas na lei penal. Prado2 elencou essas hipóteses:
Influi na medida da culpabilidade, em razão da maior reprovabilidade pessoal da ação ou omissão típica e ilícita. Além de preponderar no concurso de circunstâncias agravantes (art. 67, CP), a reincidência impede a concessão da suspensão condicional da pena e a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito ou multa, na hipótese de crime doloso (cf. arts. 44, II ; 60, § 2º e 77, I, CP); aumenta o prazo de cumprimento da pena para obtenção do livramento condicional, se dolosa (art. 93, II); obsta que o regime inicial de cumprimento da pena seja aberto ou semi-aberto, salvo em se tratando de pena detentiva (art. 33, § 2º, b e c); produz revogação obrigatória do sursis na condenação por crime doloso (art. 91, I) e a revogação facultativa, na hipótese de condenação por crime culposo ou por contravenção (art. 91, § 1º); acarreta revogação obrigatória do livramento condicional, sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade (art. 96) ou a revogação facultativa daquele benefício, em caso de crime ou contravenção, se não imposta pena privativa de liberdade (art. 97); revoga a reabilitação quando sobrevier condenação a pena que não seja de multa (art. 95); aumenta de um terço o prazo prescricional da pretensão executória (art. 110, caput); interrompe a prescrição (art. 117, VI) e impede o reconhecimento de algumas causas de diminuição de pena (v. g. arts. 155, § 2º – furto privilegiado; 170 – apropriação indébita privilegiada e 171, § 1º – estelionato privilegiado, CP) e a prestação de fiança, em caso de condenação por delito doloso (art. 323, III, CPP).
Não se caracteriza a reincidência pela mera juntada da folha de antecedentes do réu ao processo, sendo a mesma comprovada somente por meio da certidão da sentença condenatória transitada em julgado, da qual constará a data do trânsito. Se o novo delito tiver sido praticado em data anterior à do trânsito em julgado, a agravante não se configurará.3
Para que haja a reincidência, de acordo com Fragoso4, não há a exigência de que a condenação anterior tenha sido executada. Entretanto, lembra que Carrara classificou a reincidência em verdadeira e ficta, sendo a primeira decorrente de condenação anterior já executada, e a segunda, decorrente de condenação em que o agente ainda não expiou a punição que lhe foi imposta.
Segundo Zaffaroni e Pierangeli5, para a lei, não há diferença se os delitos cometidos anteriormente e posteriormente foram dolosos ou culposos, entretanto, há que se ressaltar que a sentença em que se concede o perdão judicial não é condenatória, logo, não é apta a gerar reincidência, pois, conforme explica Fragoso6, ela não é condenatória, nem absolutória. Esse entendimento é pacífico no Superior Tribunal de Justiça, pois a súmula 18 desse tribunal preceitua que "a sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório".
O regime atual da reincidência, conforme Mestieri7, "é mais brando do que o vigente quando da entrada em vigor do Código Penal", pelo fato de a lei atual considerá-la temporária, tornando, assim, a primariedade "um bem que pode ser readquirido", já que, de acordo com Capez8, pelo decurso do tempo, a condenação anterior perde a eficácia para fins de reincidência.
Essa regra está prevista no artigo 64, I do Código Penal, que determina que não deve ser considerada para efeito de reincidência a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos, devendo ser computados nesse interregno o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação.
Há regras para a contagem desse prazo a serem aplicadas a cada caso específico, as quais foram assim sistematizadas por Capez9:
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a) se a pena foi cumprida: a contagem do qüinqüênio inicia-se na data que o agente termina o cumprimento da pena, mesmo unificada. O dispositivo se refere ao cumprimento das penas, o que exclui as medidas de segurança;
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b) se a pena foi extinta por qualquer causa: inicia-se o prazo a partir da data em que a extinção da pena realmente ocorreu e não da data da decretação da extinção;
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c) se foi cumprido o período de prova da suspensão ou do livramento condicional: o termo inicial dessa contagem é a data da audiência de advertência do sursis ou do livramento.
Em relação à extinção da punibilidade, Fragoso 10 explica que se a mesma ocorreu por anistia ou pela superveniência de lei que deixou de considerar o fato criminoso (abolitio criminis), a condenação vinculada a essas situações não tem o condão de gerar reincidência, diferentemente de "todos os demais casos em que a extinção da punibilidade apenas exclui a possibilidade jurídica de imposição de pena, deixando inalterável a qualificação do fato delituoso". Enfatiza ainda que o STJ tem entendido que "a condenação anterior, vencido o prazo de cinco anos, também não pode ser considerada para caracterizar maus antecedentes (nesse sentido: STJ, 6º T., RHC 2.227-2, Min. Cernichiaro, DJU 29.03.93, p. 5.267)".
Também não ficará caracterizada a reincidência se a condenação anterior tiver sido anulada por revisão criminal, conforme lembra Maggio 11.
Quanto ao termo final do qüinqüênio, Capez 12 lembra que ele "está relacionado à data da prática do segundo crime, não à data da nova sentença condenatória".
Embora a reincidência gere efeitos jurídicos sobre a aplicação da pena por cinco anos, Dotti 13 entende que o instituto sofreu um "temperamento" com a edição da Lei 9.714/99, que passou a permitir ao reincidente a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, "desde que, em face da condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não tenha se operado em virtude da prática do mesmo crime". Essa regra consta do artigo 44, § 3º do Código Penal.
Fragoso 14 ressalta que não se considera, para efeito de reincidência, condenação anterior por crime propriamente militar ou político, nem pena imposta por contravenção.
Explica que os crimes militares dividem-se em propriamente militares e impropriamente militares. Os primeiros estão previstos no Código Penal Militar e só podem ser praticados por militares. Os segundos são crimes previstos também no Código Penal e podem ser praticados igualmente por civis. Os impropriamente militares geram reincidência, pois têm natureza distinta dos propriamente militares, que não geram reincidência por estarem vinculados a questões referentes a disciplina e hierarquia. 15
Os crimes políticos, de acordo com Fragoso 16, são aqueles praticados contra a segurança interna e externa do Estado e dividem-se em puramente políticos e relativamente políticos. Os primeiros "são crimes que atentam exclusivamente contra interesses políticos da nação", e os segundos "são fatos puníveis segundo a lei penal comum, praticados com finalidade político-subversiva". Só os crimes puramente políticos não são considerados para efeito de reincidência.
Em relação às contravenções, Capez 17 assevera que o condenado definitivamente pela prática de contravenção penal que venha a praticar um crime não é considerado reincidente, pois o artigo 63 do Código Penal só se refere a condenação por crimes anteriores. Entretanto, se vier a praticar nova contravenção, é considerado reincidente, nos termos do artigo 7º da Lei de Contravenções Penais. Se o condenado por crime vier, contudo, a praticar contravenção, será considerado reincidente para efeito de fixação da pena pela contravenção.
A lei reconhece válidas a condenação nacional e a estrangeira, o que, de acordo com Zaffaroni e Pierangelli 18, "dá lugar à chamada ‘reincidência internacional’". No entanto, os autores defendem que, muito embora a lei "não exija nenhum requisito especial para a sentença estrangeira e nem a homologação da mesma" (que, conforme Capez 19, só é exigível para que a execução ocorra no Brasil), nem toda sentença condenatória estrangeira é apta a gerar reincidência.
Zaffaroni e Pierangeli 20 entendem que, para gerar reincidência, é necessário que a sentença condenatória estrangeira decorra de uma conduta que também seja típica no Brasil, "pois seria um absurdo que alguém fosse considerado reincidente, em razão de uma condenação anterior fundada num fato atípico no território nacional". Ou seja, deve ser contemplado o princípio da dupla tipicidade.
Outro requisito para que a sentença condenatória estrangeira funcione como agravante, de acordo com Zaffaroni e Pierangeli 21, é que a mesma tenha sido proferida como conclusão de um processo em que tenham sido respeitados os direitos humanos fundamentais" no que diz respeito às garantias processuais do due process of law.
Por fim, os autores defendem não ser possível que a sentença condenatória proferida no estrangeiro funcione, no Brasil, como reincidência, se a lei do país onde a mesma foi proferida não admita essa possibilidade. Por exemplo, "não seria possível condenar como reincidente no Brasil uma pessoa condenada na Colômbia, porque a legislação deste país não admite a reincidência". 22
Lenio Streck 23 entende que no Código Penal Brasileiro "a reincidência, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais, tais como a suspensão condicional da pena, o alongamento do prazo para o deferimento da liberdade condicional, a concessão do privilégio do furto de pequeno valor, só para citar alguns".
Esse duplo gravame da reincidência, conforme Streck 24, "é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivíduos em aqueles que aprenderam a conviver em sociedade e aqueles que não aprenderam e insistem em continuar delinqüindo".
Segundo a classificação elaborada por Zaffaroni e Pierangelli 25, a reincidência se define como circunstância agravante pelo maior conteúdo do injusto presumido juris et de jure, sendo atribuídos ao instituto da reincidência inúmeros fundamentos distintos, dentre os quais, o mais difundido é o de que a reincidência denota uma maior periculosidade da pessoa.
Os autores criticam esse fundamento, argumentando que os conceitos de pessoa e periculosidade não se compaginam, pois, "se por periculosidade se entende uma maior possibilidade de cometer um delito, de modo algum pode se afirmar isso na reincidência". Ou seja, "nada faz presumir ser mais provável que venha a praticar um delito de emissão de cheque sem provisão de fundos, quem antes causou um homicídio culposo com seu veículo, do que aquele que nada fez até então". Também nada indica ser mais provável que uma pessoa que foi intimada da sua condenação definitiva seja mais propensa a cometer um delito do que outra que ainda não o foi.
Para justificar a reincidência sob tais fundamentos, seus defensores criaram a figura da reincidência presumida, o que é uma incoerência jurídica, pois, uma vez que a periculosidade é valorável e permite uma apreciação fática, não pode ser presumida jure et de jure, ou seja, sem admitir prova em contrário, pois, desse modo, estabelecer-se-ia um fato quando o fato não existe, o que não se pode denominar presunção, mas sim ficção. 26
Outra tese cujo fito é justificar a agravação da pena pela reincidência se fundamenta na ampliação do conteúdo do injusto do fato, na medida em que "a pessoa que comete um delito depois de ter sido condenada pela prática de um delito anterior estaria afetando a imagem pública do Estado, como provedor da segurança jurídica". Ou seja, haveria dois bens jurídicos atingidos: o do segundo delito cometido e a imagem do Estado, que estaria denegrida em face da sua função de provedor da segurança jurídica. Segundo essa tese, presume-se um maior conteúdo do injusto, em face da dupla ofensa provocada pelo delito. 27
Há ainda quem defenda que a agravação da pena pela reincidência é justificável pelo fato de a pena imposta ao primeiro delito não ter sido suficiente para evitar o cometimento de outros. Esse argumento também não se sustenta, pois é sabido que a pena, via de regra, é motivadora e não contramotivadora do cometimento de delitos. Em outras palavras, a pena tem papel preponderante na assunção pelo indivíduo do seu caráter de infrator. 28
Como bem lembra Edson Passenti 29, "os reformadores do sistema penal, há mais de século, não cansam de constatar o fracasso da prisão como forma de reeducar e reintegrar o infrator depois de passar um certo tempo cumprindo pena".
Essa tese, assim como todas as outras que buscam fundamentar a elevação da pena pela reincidência, acabam por violar o princípio do non bis in idem, já que a pena agravada que se impõe ao segundo delito decorre da condenação pelo primeiro. 30
Nesse sentido, Alberto Silva Franco 31 argumenta que o princípio da legalidade veda, em qualquer caso, que seja imposta pena superior ou distinta daquela prevista e assinalada para o fato típico, de modo que a agravação da mesma pela reincidência faz com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes.
Numa tentativa de elidir o bis in idem decorrente do agravamento da pena pela reincidência, Armin Kaufmann 32 desenvolveu uma teoria segundo a qual a pessoa, ao cometer o segundo delito, estaria violando duas normas: a do segundo tipo e a que proíbe a prática de um segundo delito. Ou seja, a cada tipo corresponderiam duas normas: uma específica, destinada a tutelar o bem jurídico a que se refere, e outra, genérica, referente à proibição de um futuro delito. O que, para Zafforoni e Pierangeli 33, é insustentável, visto que o segundo bem jurídico tutelado seria o sentimento de segurança jurídica, que não é um bem jurídico independente, mas sim o somatório de todos os bens jurídicos a serem tutelados.
Para Carvalho 34, o instituto da reincidência é uma das maiores máculas ao modelo penal de garantias proposto pela Constituição Federal de 1999. Nesse sentido, remete-se a Cândido Furtado Maia Neto, que, ao confrontar a reincidência com o modelo garantista, percebe que "o instituto [...] é polêmico e incompatível com os princípios reitores do direito penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado". Ou seja, "quando o juiz agrava a pena na sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime", o que, de certo modo, vem a alterar coisa julgada, que é garantia constitucional e portanto inviolável.
De acordo com Bissoli Filho, citado por Carvalho 35, a reincidência criminal, tal como os maus antecedentes, "constitui importante fator de diferenciação do criminoso com os demais seres humanos". Assim, o indivíduo que é reincidente criminal acaba recebendo, da parte do sistema penal, um tratamento mais rígido, na medida em que é considerado pertencente a uma categoria específica. Essa diferenciação, como é sabido, "visa tornar nítida a linha que separa os ‘bons’ dos ‘maus’, confrontando-se, assim, com o princípio da igualdade".
Em face desses argumentos, é possível se sustentar que a reincidência não é compatível com um sistema jurídico fundado em garantias e que não coaduna com os princípios fundamentais do Direito Penal. Assim, ainda que se lhe queira atribuir diferentes fundamentos, sempre haverá algo de inconstitucional a definir-lhe os contornos.
A fim de dar uma solução à questão da apreciação da reincidência, Cernicchiaro 36 propõe que a circunstância "não seja interpretada de forma meramente objetiva, dado que considerar a pluralidade de infrações implicaria projetar a pena de um crime em outro".
Nesse sentido, Carvallho 37, lembra que para Cernicchiaro "a solução técnica admissível, e possível estrategicamente dado à imposição legal, seria a leitura do dispositivo do art. 63. do CP de acordo com o princípio constitucional da individualização judicial da pena". Assim, a reincidência não estabeleceria obrigatoriedade de aumento na pena baseado em dados estritamente objetivos. Sob essa ótica, o princípio da individualização limitaria a aplicação do instituto, cabendo à jurisprudência estabelecer referenciais para sua negação.
Referências
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