17. A INDISPENSABILIDADE DO CONSENSO
Mais um argumento se expende contrariamente à tese de que pode o juiz suspender o processo ex officio ou a requerimento do acusado. É que, para a deliberação judicial, é necessário que antes tenha havido uma denúncia apta e que o acusado aceite a proposta. Depois, o juiz receberá a denúncia e só então poderá suspender o processo. Percebe-se, então, que a suspensão do processo somente ocorre após a aceitação da proposta pelo acusado e o recebimento da denúncia. Não havendo proposta, não poderá o magistrado tomar a iniciativa de propô-la, sob pena de ferir o princípio da inércia da jurisdição e de usurpar atribuições administrativas do Ministério Público.
E mesmo havendo requerimento do acusado, é vedada a suspensão contra a vontade do Parquet, porque não haverá o consenso objetivado pela lei e estarão ameaçados os interesses público e institucional pela possibilidade de breve implementação da extinção da punibilidade, ainda que certa a culpa.
Ao dispor que o juiz poderá suspender o processo, a lei estabelece expressamente que isso se dá caso seja "aceita a proposta pelo acusado e seu defensor". Para que algo seja aceito, é necessário que antes seja proposto. Aceita-se uma oferta e não um direito. A lei não tem palavras inúteis. Direito exerce-se. Proposta aceita-se. Quem propõe? O Ministério Público. O direito do Ministério Público é o de propor ou não. O direito subjetivo do acusado é o de aceitar ou recusar a proposta, não o de aceitar o que não lhe foi ofertado, nem o de exigir o que não lhe pertence, ou seja, exigir que o dominus litis abdique de seu direito à persecução penal, que, em última análise, nem é direito seu, mas da sociedade. Pensar o contrário é admitir que se façam liberalidades com o direito alheio.
Aqueles que defendem a possibilidade de suspensão ex officio, por si só absurda, esquecem que a tese desvia-se do princípio da inércia da jurisdição, prejudicando o direito ministerial ao processo e à condenação, pela interrupção daquele. No mínimo, prejudica-se o direito da sociedade à um provimento de mérito, qualquer que seja.
A Constituição impôs a separação de funções do Estado não apenas na fase pré-processual, mas também no transcurso do processo. Segundo aquele princípio, o Judiciário constitui um poder inerte, que somente se movimenta mediante a função de alavanca do Ministério Público e das advocacias pública e privada, representando essa inércia uma garantia do princípio da imparcialidade do julgador.
Ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA (in Curso de direito constitucional positivo, São Paulo: Malheiros, 9ª edição, p. 506) que "é um princípio basilar da função jurisdicional que o ‘juiz deve conservar (...) uma atitude estática, esperando sem impaciência e sem curiosidade que os outros o procurem e lhe proponham os problemas que há de resolver’. A inércia, lembra ainda Calamandrei, é, para o juiz, garantia de equilíbrio, isto é: de imparcialidade, que, sendo ‘virtude suprema do juiz, é resultante de duas parcialidades que se combatem’, parcialidades dos advogados das partes em disputa".
Segundo LUIZ FLÁVIO GOMES (op. cit., p. 168), o juiz não pode tomar a iniciativa da suspensão condicional do processo. Ou seja, não pode agir ex officio, porque "pelo jus positum (...) quem detém a legitimidade ativa é o Ministério Público", mas refere que o art. 89. confere ao Parquet um poder-dever que reclama manifestação positiva, no sentido da proposta, sempre que presentes os requisitos legais. E sustenta que, em caso de negativa ministerial, cabe ao acusado requerer a suspensão, que será deferida ou não pelo magistrado. Ainda assim, afirma o autor que tal deve se dar apenas como exceção à natureza bilateral da suspensão.
Sem dúvida essa não é a melhor solução, pois assim não se está a assegurar um direito subjetivo do réu, mas uma mera expectativa de direito , o que afasta a violação ao art. 5º, inciso XXXV, da CF, que trata de "lesão ou ameaça a direito". Ademais, as partes continuam em juízo, podendo o Judiciário, ao final, emitir decreto absolutório ou decisão condenatória conforme a culpabilidade do acusado. Em suma, nenhum prejuízo haverá.
Também não é boa solução porque desatende o princípio da consensualidade e usurpa atribuição ministerial (art. 129, §2º, CF), incorrendo em arbítrio. É evidente que a lei está sendo ferida pelo ato judicial, e não pela recusa fundamentada do MP, porque a suspensão perde sua natureza transacional, deixa de ser ato personalíssimo do titular da ação penal e perde o caráter voluntário.
Ademais, por força do princípio da isonomia processual (que garante a igualdade entre as partes), deve-se aplicar o art. 89, §7º, da Lei n. 9099/95, dando-se seguimento ao processo, caso a proposta de suspensão seja negada pelo promotor de Justiça e pelo Procurador-Geral, nos moldes do art. 28. do CPP.
O que se deve compreender é que o direito subjetivo do acusado à suspensão somente nasce após a conformação da avença processual, com a homologação da postulação pelo juiz. É que, a partir daí, o Ministério Público estará vinculado ao acordo firmado, não podendo ao seu alvedrio reiniciar o curso do processo, salvo se o acusado der ensejo ao rompimento do acordo. Ainda assim, o prosseguimento da ação não é automático, sendo necessária a revogação da suspensão, por ato judicial, assegurado, ainda aí, o contraditório, mediante a oitiva prévia do acusado.
18. PROPOSTA DE SUSPENSÃO SUBSIDIÁRIA
Ousamos colocar uma tese, que nos parece inédita, embora não seja a que melhor resolve o problema da oferta da suspensão condicional, em caso de negativa ministerial.
Recusando o Ministério Público o consenso, poder-se-ia prever a possibilidade de oferecimento de proposta de suspensão subsidiária , a ser manejada pelo ofendido ou seu representante legal, nas mesmas circunstâncias da ação penal privada subsidiária da pública, prevista no art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal, o que representaria uma forma legítima de controle da atuação do Ministério Público, em caso de inércia injustificada. Estaria instalado um verdadeiro controle externo da atividade ministerial.
Claro está que tal proposta subsidiária só seria factível quando o Ministério Público silenciasse na fase do art. 89, vale dizer, quando não propusesse a suspensão e não oferecesse fundamentação para a negativa. Nesta hipótese, abrir-se-ia à vítima ou a seu representante legal o ensejo de propor a suspensão, sempre em defesa de um eventual interesse à imediata reparação do dano.
Tal solução levaria certamente a uma maior participação do ofendido na relação processual penal, atendendo-se à principiologia da Lei n. 9099/95, sem ofender o sistema acusatório adotado na Carta Federal de 1988, que já prevê a exceção subsidiária como garantia individual.
E isto é fora de dúvida, pois, sendo a queixa-crime subsidiária a única exceção constitucional à regra da privatividade da ação penal pública, o aproveitamento da idéia in bonam partem, criando-se a proposta de suspensão condicional subsidiária, somente contribuiria para o êxito dos propósitos da Lei n. 9099/95, sem as contra-indicações da "transação" ex officio.
A inovação também teria a vantagem de manter o magistrado em sua posição original de imparcialidade, afastando-o da mesa de negociações como parte, mas mantendo-o nela como mediador e interlocutor qualificado do Ministério Público e do acusado.
Assim, não sendo proposta a suspensão pelo Ministério Público e não sendo apresentada justificativa plausível para a negativa, poderia a vítima ou seu representante legal oferecê-la, para atender o seu imediato interesse de reparação do dano sofrido. E aí estaria o interesse de agir do ofendido, cuja intervenção na lide se daria na condição de assistente da acusação, visando à defesa da pretensão primária cível.
Em tal hipótese de transação substitutiva, seria vedado ao Ministério Público opor-se ao consenso, segundo a regra dormientibus non sucurrit jus, devendo a instituição limitar-se a opinar como fiscal da lei, para garantir o atendimento dos requisitos legais e assegurar o cumprimento das obrigações estipuladas.
Todavia, essa solução não seria aplicável às infrações nas quais a vítima é indeterminada ou corresponde a uma coletividade ou a uma entidade sem personalidade jurídica, como nos crimes vagos. Daí se propugnar que, nesses casos, a proposta poderia partir de qualquer interessado, agasalhando o interesse geral de repressão à criminalidade.
Quanto aos crimes de dupla subjetividade passiva, que são aqueles que têm dois ofendidos em razão do tipo (DAMÁSIO dá o exemplo da violação de correspondência), a proposta subsidiária poderia partir de qualquer das vítimas: v. g., o destinatário ou o remetente da correspondência, no tipo do art. 151. do Código Penal.
Essas são sugestões ao legislador, mas a aplicação imediata desse entendimento não é vedado aos operadores jurídicos, mediante uma interpretação analógica do art. 5º, inciso LIX, da Constituição Federal.
19. AINDA ESPECULAÇÕES SOBRE A INICIATIVA DA TRANSAÇÃO LATO SENSU
Admitindo-se a aplicação do instituto do art. 89. às ações penais privadas, mesmo em relação a elas não seria possível impor-se ao querelante a suspensão. Na ação privada, o CPP conferiu ao ofendido o poder discricionário de conceder ou não o perdão ao querelado, extinguindo-se a punibilidade pela aceitação da mesura processual (bilateralidade). Mesmo assim, quanto a este instituto de mais de cinco décadas (o perdão), jamais a doutrina propugnou tratar-se de direito subjetivo do acusado.
Se não é lícito ao juiz, na ação privada, deferir o perdão do art. 105. do CP, que se chama, bem a propósito, "perdão do ofendido", como lhe seria facultado, na ação pública, firmar acordo com o autor do fato, impondo a sua vontade (a do julgador) à do Ministério Público? Onde estaria a diferença entre as partes para tratamento tal desigual, se o que se busca na ação penal como gênero é sempre um provimento de mérito que atenda à pretensão deduzida?
Assim, se na ação penal privada, o juiz não pode obrigar o querelante a fazer a proposta, nem pode substituir-se a ele, deve-se concluir que o entendimento que repudia a legitimidade exclusiva do Ministério Público à proposta suspensiva é incongruente e contraria os ditames constitucionais de cunho acusatório. Se o juiz não pode o menos (na ação privada), não pode o mais (na ação pública). Eis mais uma vez a lógica do razoável.
IRAHY BAPTISTA DE ABREU figura interessante hipótese acerca dos riscos da corrente de pensamento que aceita a atuação do juiz ex officio: "Encerra-se uma última questão: negada fundamentadamente pelo Ministério Público a proposta de suspensão, o juiz, arvorando-se em seu substituto, a oferece ao acusado que, por sua vez, recusa a oferta. Como ficará a situação do Magistrado, invadindo seara alheia e vendo negada sua proposta?!? Manterá a imparcialidade até o fim ou a perderá quando da sentença, pelo desaforo da não aceitação?!?".
FÁBIO MEDINA OSÓRIO imagina tal hipótese com mais graves conseqüências, pois vê o acusado e seu defensor numa posição inferiorizada diante do juiz, além do que eventual não aceitação da proposta acarretaria ao réu o ônus de ser sentenciado por seu "oponente", pela "parte" sentada à cabeceira da mesa de audiências (op. cit.).
Por conseguinte, se o juiz insiste na proposta ex officio, seja de transação seja de suspensão, cabe ao Ministério Público a impetração de mandado de segurança ou correição parcial (na Bahia, denominada reclamação) contra o ato iníquo e desbordante dos princípios constitucionais do processo penal.
Tem o Ministério Público direito líquido e certo ao devido processo legal. Com a suspensão ex officio, há uma paralisação temporária do processo, à espera de que o acusado cumpra certas condições. Caso seja violado o pacto, o processo continuará, mas tudo será como no início no que se refere à presunção de inocência, perdendo-se, por outro lado, valioso tempo na busca da verdade real. Isso deixa bem claro que a proposta ex officio (e mesmo aqueloutra formada exclusivamente com a vontade do acusado) limita o exercício da ação penal pelo Parquet, podendo trazer prejuízos ao resultado útil da ação penal.
Sigamos adiante na atividade especulativa. Haveria direito subjetivo à suspensão condicional, sendo o acusado inocente? Parece-nos que não, porque, neste caso, teria ele direito subjetivo a uma sentença absolutória, ao final da instrução, e não ao cumprimento das condições e limitações próprias ao instituto do art. 89. da Lei de Juizados Especiais. Mas como saber da inocência do réu nos albores da instrução penal, antes mesmo do recebimento da denúncia? Nesta fase, a dúvida sobre a culpabilidade é a regra, sendo consabido que tal incerteza se resolve em prol da sociedade, e não em favor do réu. Indo adiante, percebe-se que, se há dúvida sobre o merecimento da suspensão, o que deve prevalecer é o interesse público, deixando-se que o processo siga seu curso, a fim de que, finda a colheita probatória, o juiz profira o veredicto quanto à culpabilidade ou não do acusado.
Ainda há de se ver que a suspensão condicional do processo leva imediatamente à obrigação de reparar o dano. Pode ser considerado um direito subjetivo o "direito" a uma obrigação? Essa tese é de penosa demonstração, máxime quando se sabe que o autor do fato, o denunciado, em certa medida está renunciando a um direito muito mais evidente: o da ampla defesa no processo penal e também em eventual ação cível reparatória ex delicto. Mais intrincado ainda se torna o problema, quando se considera também que a rapidez na imposição dessa obrigação reparatória é em certo sentido prejudicial aos interesses econômicos do acusado. Em face de tantas variáveis, mais ou menos prejudiciais ao réu, parece difícil continuar a afirmar a natureza de direito subjetivo da proposta de suspensão condicional do processo.
Deixemos as perguntas acima sem resposta. É que elas encontram solução em si mesmas, evidenciando que o único mecanismo consentâneo e compatível com o sistema processual penal emergente da Carta Republicana de 1988 é o que remete à aplicação analógica do art. 28. do CPP.
Como já advertia LUIZ FLÁVIO GOMES, na primeira edição de sua conhecida monografia (op. cit., p. 124), a tarefa de fixar os contornos finais da suspensão condicional do processo caberia à doutrina e à jurisprudência. De fato, isto tem sido feito, e o foi com muita propriedade, pelo Supremo Tribunal Federal. É isso o que agora se analisará.