Poucos temas foram objeto de tantas discussões nos últimos anos quanto o que trata dos direitos das pessoas com deficiência [01]. Fundados na cidadania e na dignidade da pessoa humana, nos objetivos da construção de uma sociedade justa e solidária, e da promoção do bem de todos, sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação, esses direitos apontam à consciência a questão dos limites e das diferenças entre os indivíduos, alcançando a aprovação e o reconhecimento unânimes.
Considerações intermináveis, e das mais diversas ordens, contudo, obstam a implementação desses princípios consagrados na Constituição Republicana de 1988, mantendo irresoluto o problema de igualar condições de convivência e oportunidades de participação social, política, econômica e cultural.
Os quadros estatísticos disponibilizados pelo IBGE, bem como os dados e estudos divulgados na página institucional da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) na Internet, constituem algumas das referências que permitem dimensionar as dificuldades a serem superadas, e, até mesmo, entender o encaminhamento das políticas públicas que vêm sendo implementadas.
De acordo com o censo do ano 2000, 14,5% da população brasileira, cerca de 24,5 milhões de pessoas, se declarou portadora de algum tipo de deficiência. As dificuldades visuais atingem quase a metade dessa população (48,1%), seguidas pelas deficiências de locomoção (22,9%), auditivas (16,7%), mentais (8,3%) e físicas permanentes (4,1%). As zonas urbanas, por sua vez, concentram aproximadamente 80% dessas pessoas, e 36,7%, cerca de 9 milhões, são economicamente ativas.
Os desafios que esses dados impõem permitem considerar as políticas públicas em vigor, traduzidas nas seguintes iniciativas: diretrizes para a elaboração de uma política nacional de integração; definição de regras de acessibilidade no âmbito dos espaços público e privado; e, o que mais nos importa aqui, estabelecimento de ações afirmativas, mais especificamente de quotas de reserva no mercado de trabalho.
As bases constitucionais da política de integração remetem aos capítulos da Assistência Social; da Educação; da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso que compõem a Ordem Social, e deram origem à Lei 7.853/89, que, além de criar a CORDE, com o fim precípuo de formular a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, instituiu sanções para condutas discriminatórias sem justa causa, ratificou a tutela dos interesses coletivos ou difusos dessas pessoas por parte dos Ministérios Públicos da União, Estados e Distrito Federal, e relacionou medidas para assegurar direitos básicos nas áreas da educação, saúde, formação profissional e do trabalho, recursos humanos e edificações.
Quanto às regras de acessibilidade, as Leis nº 10.048/00 e 10.098/00 determinam o atendimento prioritário das pessoas com deficiências em organizações públicas, medidas de facilitação no uso dos transportes, das vias e equipamentos urbanos e dos sistemas de informações e comunicação, além de definir prazos de ajustes e penalidades.
Recentemente, em 2004, a regulamentação destas últimas leis, ao explicitar o que deve ser entendido como deficiência e acessibilidade determinou, entre outras ações, a adequação de Planos Municipais de Transporte e Trânsito, dos Códigos de Obras e Posturas, a previsão orçamentária para fins compensatórios, definiu uma política especial de incentivos para as pesquisas de produtos focados no desenvolvimento da autonomia dessa população, condicionando, ainda, a aprovação e o financiamento de projetos em geral, a concessão de serviços públicos e a emissão de alvarás de funcionamento ou cartas de "habite-se", à observância das regras específicas de acessibilidade estabelecidas.
As ações afirmativas, conforme escólio do Ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Joaquim Benedito Barbosa Gomes, "consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física." (g.n)
Com efeito, a parte acima grifada de nosso texto constitui a chave para o entendimento da elevação do conceito de igualdade, que ao longo do correr da história e da evolução da direito (respectivamente, do Estado Liberal para o Estado Social, e do positivismo para o pós-positivismo), passou de uma concepção puramente formal, i.é, igualdade perante a lei, para um conceito material ou substancial, de modo a tornar acessíveis as oportunidades aos socialmente desfavorecidos. Tratou-se, pois, de dar dinamismo ao princípio da igualdade, com a promoção de condição de acesso (oportunidades) por meio de políticas públicas e leis que passaram a ponderar as peculiaridades dos indivíduos e dos grupos menos favorecidos., alterando-se, pela via da compensação, o marcador histórico, político, cultural e social.
Afinada por esse diapasão, a também hoje Ministra do STF, Carmen Lucia Antunes Rocha preleciona: "concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica".
A Constituição Republicana de 1988 é cristalina ao anunciar e enunciar a sua opção pela igualdade substancial, conforme os dispositivos a seguir:
"Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
...
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais.
...
Art. 7o São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
...
XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
...
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
...
VIII – A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;
...
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios;
...
VII – redução das desigualdades regionais e sociais ;
...
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País." (g.n)
É importante destacar que a ação afirmativa tem por objetivo não apenas coibir a discriminação atual, mas, sobretudo, excluir os efeitos culturais e comportamentais da discriminação de ontem. É dizer, visa a ação afirmativa a eliminar também o passivo histórico.
O estabelecimento de quotas – no caso, relativa à reserva de mercado de trabalho para as pessoas com deficiência - é, na verdade, a forma mais freqüente de manifestação de ação afirmativa [02]. Estribada no art. 37, inc. VIII, da Magna Carta, conforme exposto acima, o estabelecimento dessa quota foi materializada na Lei 8.112/90, que prevê uma reserva de até 20% dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência, e na Lei 8.213/91, que fixa percentuais de aproveitamento no âmbito das empresas privadas, de acordo com o número de empregados contratados.
Entretanto, neste horizonte normativo abrangente, que vem dando ensejo a um conjunto diversificado de regras e regulamentos nos três níveis da Federação [03], e que incluem inúmeras iniciativas de organizações de terceiro setor [04], surpreende que 36% das 60 empresas mais conceituadas do país e que se habilitaram ao recebimento do Selo Balanço Social Ibase/Betinho para aferir a responsabilidade social corporativa foram desclassificadas por não satisfazerem o pré-requisito de garantir de dois a cinco por cento de seus cargos para pessoas com deficiência. [05]
No âmbito das organizações governamentais, por sua vez, não são poucos os exemplos em que a adoção da política de quotas, tanto em concursos para provimento de cargos e funções públicas, como nos contratos de prestação de serviços, resulta em pedidos de exoneração por parte dos beneficiados ou na revogação tácita de exigências contratuais na manutenção dos percentuais de pessoas com deficiência.
Antes que se conclua pela não efetividade dos esforços legais e regulamentares, ou que a simples enunciação de regras e políticas, ou mesmo a intensificação das práticas de fiscalização são impotentes no enfrentamento de sistemas de crença estabelecidos e incapazes de fazer emergir valores e comportamento efetivo, há que se investigar em outras das possíveis razões que possam explicar tantas frustrações.
Nessa procura, é de se considerar que não basta a instituição de quotas para integrar pessoas com deficiências físicas, sensoriais e mentais, se não se dispõe, além de consciência, de equipamentos e instalações adaptados, e planos de acompanhamento e avaliação da inclusão intentada, da mesma forma como ocorrem com as ações de treinamento, a verificação do desempenho ou a política de benefícios no âmbito de toda organização.
Do mesmo modo, não é por outra razão que se discute o caráter não inclusivo dessa reserva legal, pois, como afirma o Prof. Sassaki, em entrevista à Revista da Inclusão, "não adianta só obedecer à lei, a empresa tem de ter pensamentos e atitudes inclusivas" [06].
Em condições inadequadas, os bons resultados das ações afirmativas restringem-se apenas àqueles que forem capazes de se adaptar às peculiaridades do contexto produtivo, o que desloca para o campo dos talentos individuais o problema da superação de um ambiente funcional quase sempre desfavorável à participação de pessoas com deficiência.
Urge, pois, que as organizações e os agentes políticos - no campo público e privado - comprometidos com o ideal constitucional de igualdade substancial, se preparem para receber e usufruir das contribuições desses indivíduos, para não reiterar a exclusão que se pretende combater.
Desta maneira, ações afirmativas não se esgotam na adoção de políticas de quotas, mas implicam, antes, planejamento, investimento e compromisso com ações administrativas capazes de sobrepor-se às visões de curto prazo que possibilitam prestígio e divulgação imediatos, mas que, em pouco tempo, revelam fracasso, frustração e exclusão.
Referências bibliográficas:
Fávero, Eugênia A. G. Direitos das Pessoas com Deficiência, Rio de Janeiro: WVA-Ed., 2004.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 131, jul./set. 1996.
SASSAKI, R. Inclusão: Uma questão de atitude. In: Revista da Inclusão. Sociedade Pestalozzi de São Paulo. Ano 1 – Ed. 1 – Março/Abril de 2007.
Notas
01 Para a discussão sobre a melhor terminologia a ser utilizada na questão das deficiências, veja-se Fávero, para quem a forma mais adequada para se fazer referência às pessoas que possuem deficiência é a do termo "pessoa com deficiência", em lugar de "pessoa portadora de deficiência", porquanto a palavra portador traz, a priori, um sentido negativo, que é amiúde associado a doenças, tudo conforme identificação dos movimentos sociais.
02 Esse mecanismo de inclusão social recebe nos Estados Unidos a denominação de affirmative action (ação afirmativa). Já na Europa tem o nome de discrimination positive (discriminação positiva) e de action positive (ação positiva).
03 Os exemplos mais comuns remetem à extensão da obrigatoriedade das cotas no preenchimento de cargos de direção e assessoramento superior, e a exigência do respeito às cotas nas licitações públicas que têm por objeto contratos de prestação de serviços (Decreto nº 4.228/2002).
04 Elaboração e divulgação de cadastros profissionais, organização de cooperativas, criação de entidades de apoio ao deficiente e campanhas de conscientização diversas.
05 Portal Ibase (http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1814) de 08/06/2007.
06 Sassaki, R., 2007.