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Entre o riso e a responsabilidade:

limites da liberdade de expressão

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30/10/2024 às 21:52
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4. O ABUSO DE DIREITO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

O artigo 187 do CC introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o conceito de abuso de direito, que ocorre quando alguém exerce um direito de forma que excede os limites impostos pelo fim econômico ou social desse direito, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Assim, de acordo com Gustavo Tepedino e Milena Donato, o abuso de direito refere-se à ilicitude latu senso, ou seja, a antijuridicidade que se distingue com o ato ilícito strito sensu previsto no artigo 186 do CC, uma vez que a conduta do titular do ato abusivo é formalmente permitida pela legislação, se desviando, contudo, de seu propósito ao violar a finalidade econômica e social pretendida pelo legislador, além de infringir os princípios da boa-fé objetiva ou dos costumes aceitáveis.17

O principal objetivo do abuso de direito é evitar que os direitos sejam utilizados como instrumentos de opressão, conforme ressaltou Planiol ao afirmar que "o direito termina onde o abuso começa"18. Dessa forma, diferente da responsabilidade civil tradicional, o abuso de direito não exige a prova de culpa, sendo suficiente que o titular do direito ultrapasse de forma evidente os limites impostos.

No contexto do humor, a liberdade de expressão, quando exercida de forma abusiva, pode resultar em prejuízos tanto a indivíduos quanto a grupos inteiros. Casos como os de Rafinha Bastos e Danilo Gentili, condenados por piadas ofensivas, exemplificam essa complexidade. O impacto pode ser ainda maior quando a piada atinge coletividades com base em gênero, nacionalidade, religião ou orientação sexual. Um exemplo é a ação civil pública movida pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de Sergipe contra Léo Lins, que, em 29 de abril de 2022, fez piadas capacitistas contra a comunidade surda. A comunidade realizou protestos pacíficos, mas o humorista reagiu nas redes sociais, reiterando o conteúdo ofensivo ao comparar pessoas surdas a focas mortas e fazer associações pejorativas com a Língua Brasileira de Sinais durante shows em Alagoas e Bahia. Como resultado, Léo Lins foi condenado a pagar R$ 100 mil por danos morais coletivos e obrigado a remover os vídeos ofensivos, além de ser proibido de publicar novos conteúdos discriminatórios, sob pena de multa diária de R$ 5 mil.19

As questões jurídicas relacionadas ao humor frequentemente envolvem conflitos entre diferentes princípios e valores protegidos pelo ordenamento jurídico, que variam conforme o caso concreto. Por um lado, a criação e divulgação de piadas representam uma forma de liberdade de expressão. Por outro, é necessário garantir a proteção de direitos das pessoas que são alvo da sátira, como a honra, a privacidade e a imagem. Embora os resultados sejam variados, ora favorecendo uma posição, ora outra, tem prevalecido a ideia de que o direito ao humor não é ilimitado. Conforme ensina Perlingieri:

Ao identificar a essência da antijuridicidade em um conflito entre interesses contrapostos, o ordenamento deve ainda, nesta hipótese, adequar-se, na escolha do interesse prevalecente, a critérios personalistas e solidaristas (tutela da pessoa e satisfação de interesses gerais), confirmando uma opção da qual há ampla verificação em matéria privatística: pense-se na disciplina constitucional da iniciativa privada (art. 41 Const.), onde se encontra a contraposição entre o caráter ‘livre’ da mesma e os interesses constituídos pela ‘utilidade social’ e pela ‘segurança, liberdade, dignidade humana’. Iguais considerações valem também para a disciplina da propriedade privada (art. 42 Const.), que determina a harmonização do direito ao interesse geral, e para o direito à saúde que encontra o próprio limite, por força do art. 32, § 2, Const, no ‘respeito da pessoa humana.20

Os limites da liberdade de expressão no humor não se baseiam apenas no mau gosto ou na severidade das críticas, mas sim no abuso que ultrapassa o razoável, violando direitos da personalidade. Assim, para diferenciar a liberdade de expressão no humor do abuso, é possível identificar, a partir da jurisprudência e da doutrina contemporânea, parâmetros comuns que asseguram a segurança jurídica na análise dessas controvérsias. Esses critérios levam em conta o conflito entre princípios e valores igualmente importantes e incluem: a) a intenção do autor da piada; b) a percepção de um espectador razoável; c) o contexto em que as ações ocorrem; d) o conteúdo questionado; e) o impacto potencial dos meios de comunicação utilizados.21

A aplicação desses critérios pelos tribunais exige uma análise cuidadosa e contextualizada, respeitando a excepcionalidade das intervenções e reconhecendo a importância da liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, é fundamental que esses parâmetros sejam utilizados de forma integrada para avaliar cada situação específica, considerando as particularidades históricas e sociais. Por exemplo, o propósito e a percepção de um espectador razoável no Brasil atual são diferentes dos de uma década atrás.

Dessa forma, é possível garantir a plena liberdade de expressão no humor em consonância com os princípios constitucionais, sem que isso se transforme em abuso ou violação de direitos de terceiros, cabendo aos tribunais e à doutrina evitar interferir no mérito ou no gosto pessoal das piadas.


5. O PAPEL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO CONTEXTO HUMORÍSTICO

A responsabilidade civil, em sua concepção tradicional, tem como objetivo a reparação dos danos causados, seja por meio de indenizações materiais ou compensações morais. Essa abordagem ocorre geralmente após a prática de um ato ilícito e busca restaurar o estado anterior à lesão, embora, na maioria das vezes, essa reparação não consiga ser feita de forma integral, resultando apenas em uma amenização dos danos. Contudo, essa perspectiva se mostra limitada, pois a tutela civil deve também integrar uma dimensão preventiva, a fim de evitar a ocorrência de danos futuros, como se observa no art. 497, prágrafo único do CPC. Essa dimensão, conhecida como tutela inibitória, está intimamente relacionada à resposta ao ato antijurídico, sendo inadequado aguardar passivamente pela violação de um direito da personalidade para, somente então, recorrer à ação reparatória clássica,22 pois como leciona Gustavo Tepedino:

Nem parece suficiente o mecanismo simplesmente repressivo e de ressarcimento, próprio do direito penal, de incidência normativa limitada ao aspecto patológico das relações jurídicas, no momento em que ocorre a violação do direito (binômio lesão-sanção), exigindo-se, ao reverso, instrumentos de promoção e emancipação da pessoa, considerada em qualquer situação jurídica que venha a integrar, contratual ou extracontratualmente, quer de direito público quer de direito privado.23

Em ocorrendo, contudo, a violação de uma norma jurídica preexistente, especialmente aquela protegida por uma cláusula geral de tutela da personalidade prevista na Constituição Federal, que decorre do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, impõe ao infrator a obrigação de indenizar, denominado por danos morais. Isso se deve ao fato de que é inaceitável causar prejuízo a outrem, sendo necessário buscar, dentro do possível, a restituição do status quo ante, conforme o princípio do neminem laedere, que estabelece que ninguém pode prejudicar outra pessoa.24

Entretanto, isso não implica que a compensação se dê unicamente dinheiro. Ao contrário da indenização por danos materiais, que busca restaurar a vítima ao seu estado anterior, a compensação por danos morais raramente consegue oferecer uma reparação completa, limitando-se a uma compensação. Por consequência, essa prática pode transmitir mensagens equivocadas, reforçando uma aparente superioridade de quem paga e sugerindo, de maneira errônea, que o pagamento encerra as consequências da falha.

Nesse cenário, destaca-se a necessidade de uma reavaliação profunda das características individualistas e patrimoniais da responsabilidade civil, ampliando seu escopo para incluir mecanismos de reparação não pecuniários, como o direito de resposta. Esse direito assegura a uma pessoa a oportunidade de se defender de críticas públicas, notícias, comentários ou referências veiculadas em meios de comunicação, garantindo que sua resposta receba o mesmo ou maior destaque do que o dado à informação original. Com isso, busca-se um modelo de Direito de Danos mais eficaz, que não apenas compense os prejuízos sofridos, mas também previna novos danos e promova reparações mais abrangentes e justas.25


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão sobre o humor como forma de liberdade de expressão revela a intrincada relação entre a criatividade e os direitos fundamentais. O humor, com sua capacidade de provocar reflexão e crítica social, é uma manifestação essencial da natureza humana que, ao longo da história, tem sido reconhecida como uma ferramenta poderosa para questionar e desafiar normas sociais e políticas. Contudo, essa liberdade não é absoluta e deve ser exercida com responsabilidade, respeitando os limites impostos pela dignidade da pessoa humana, a honra e a imagem.

A análise dos casos judiciais evidenciou a necessidade de estabelecer um equilíbrio delicado entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. As decisões dos tribunais, ao ponderar esses direitos, reforçam a ideia de que o humor deve ser um meio de expressão que não perpetue a discriminação ou o preconceito. A aplicação de critérios objetivos, como o contexto, o impacto e a intenção do autor, emerge como fundamental para a análise de casos que envolvem a sátira e o humor. Esses critérios ajudam a diferenciar entre a liberdade de expressão legítima e o abuso que pode resultar em danos a indivíduos e grupos.

Além disso, a responsabilidade civil desempenha um papel crucial nessa conjuntura, não apenas como mecanismo de reparação, mas também como instrumento preventivo. A adoção de medidas que assegurem a proteção dos direitos da personalidade, como o direito de resposta e a proteção contra conteúdos ofensivos, é essencial para promover um ambiente onde a liberdade de expressão possa coexistir com o respeito à dignidade alheia.

Assim sendo, conclui-se que a liberdade de expressão no humor deve ser celebrada, mas também deve ser exercida com consciência e responsabilidade. Ao reconhecermos a importância do riso e da crítica social, devemos também nos comprometer a garantir que essa forma de expressão não se transforme em uma ferramenta de opressão, mas sim em um meio que enriqueça o debate público e promova a empatia em uma sociedade pluralista. A busca por um equilíbrio entre esses valores é fundamental para a construção de um ambiente social saudável e respeitoso, onde todos possam se expressar livremente, sem medo de ofensa ou discriminação.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3º Turma). Recurso Especial nº 736.015/RJ. Civil. Ação de compensação por danos morais. Revista humorística. Matéria satírica que teria maculado a honra de antepassado das recorrentes. Crítica social que transcende a memória do suposto ofendido para analisar, por meio da comparação jocosa, tendência cultural de grande repercussão no país. - Dentro do que se entende por exercício da atividade humorística, a matéria não teve por objetivo a crítica pessoal ao antepassado das recorrentes, mas a sátira de certos costumes modernos que ganharam relevância e que são veiculados, hodiernamente, por mais de uma publicação nacional de grande circulação. - O 'mote' supostamente lesivo, ademais, foi atribuído ao domínio público. - A conduta praticada não carrega a necessária potencialidade lesiva, seja porque carecedora da menor seriedade a suposta ofensa praticada, seja porque nada houve para além de uma crítica genérica de tendências culturais, esta usando a suposta injúria como mera alegoria. - Não cabe aos Tribunais dizer se o humor praticado é 'popular' ou 'inteligente', porquanto à crítica artística não se destina o exercício da atividade jurisdicional. Recurso especial não conhecido. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. julgado em 16/6/2005. Disponível em: https://scon.stj.jus.br.Acesso em 07 out. de 2024.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federa (2ª Turma). Reclamação 38.782 - RJ. Reclamação. 2. Liberdade de expressão. 3. Decisões reclamadas que restringem difusão de conteúdo audiovisual em que formuladas sátiras a elementos religiosos inerentes ao Cristianismo. 4. Ofensa à autoridade de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da ADPF 130 e da ADI 2.404. 5. Limites da liberdade artística. 6. Importância da livre circulação de ideias em um Estado democrático. Proibição de divulgação de determinado conteúdo deve-se dar apenas em casos excepcionalíssimos, como na hipótese de configurar ocorrência de prática ilícita, de incitação à violência ou à discriminação, bem como de propagação de discurso de ódio. 7. Distinção entre intolerância religiosa e crítica religiosa. Obra que não incita violência contra grupos religiosos, mas constitui mera crítica, realizada por meio de sátira, a elementos caros ao Cristianismo. 8. Reclamação julgada procedente. Relator: Ministro Gilmar Mendes. DJ. 24/02/2021. Disponível: https://portal.stf.jus.br. Acesso 10 out. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federa (Penário). ADI nº 4451. Liberdade De Expressão E Pluralismo De Ideias. Valores Estruturantes Do Sistema Democrático. Inconstitucionalidade De Dispositivos Normativos Que Estabelecem Previa Ingerência Estatal No Direito De Criticar Durante O Processo Eleitoral. Proteção Constitucional As Manifestações De Opiniões Dos Meios De Comunicação E A Liberdade De Criação Humoristica. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos II e III (na parte impugnada) do artigo 45 da Lei 9.504/1997, bem como, por arrastamento, dos parágrafos 4º e 5º do referido artigo. Relator: Ministro Alexandre de Moares. DJ. 06/03/2019. Disponível: https://portal.stf.jus.br. Acesso 09 out. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 60.382 São Paulo. Liberdades fundamentais de manifestação do pensamento e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. ADPF nº 130/DF. Adi nº 4.451/DF. Decisão que, em sede cautelar, opta imediatamente pela medida extrema de censura prévia. Proibições amplas e genéricas: violação da segurança jurídica e da liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. Proibição de se ausentar da comarca por mais de 10 (dez) dias e obrigação de comparecimento mensal em juízo: violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Procedência do pedido, sem prejuízo da eventual responsabilização penal ulterior do reclamante. Relator: Ministro André Mendonça. J. 28 set. 2023. Disponível: https://portal.stf.jus.br. Acesso 09 out. 2024.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região (6ª Turma Especializada). Apelação Cível nº 2007.51.01.025926-4. Constitucional. Programa Televisivo. Danos À Imagem De Categoria Profissional. Liberdade De Expressão. 1. Não É Viável Impedir Veiculação De Programa Televisivo Caricatural Sob A Infundada tese de que seu humor denigre a categoria dos nutricionistas. O humor faz caricatura com todas as searas profissionais e essa liberdade se revela saudável. No caso, o quadro não se volta a deturpar a imagem de categoria profissional, e nem de longe chega perto disso. Situações facilmente perceptíveis como absurdas ou esdrúxulas. O mero enquadramento de profissão em quadro humorístico não é motivo para vedar a transmissão do programa e restringir a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Honorários advocatícios de acordo com o art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC.2. Apelação desprovida. Sentença confirmada. Des. Federal Poul Erik Dyrlund. 6ª Turma Especializada, julgado em 07.02.2011. Disponível em: www.trf2.jus.br. Acesso em: 8 out. 2024.

FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; NERY, Maria Carla Moutinho. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade no humor. Disponível em: https://editoraforum.com.br/noticias/o-merito-do-riso-limites-e-possibilidades-da-liberdade-no-humor-coluna-direito-civil/. Acesso em 17 de out. 2024.

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MELO. Marco Aurélio Bezerra de. Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19.

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Sobre o autor
Eduardo Carlos Ferreira

Pós-graduando em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Constitucional. Advogado com atuação nas áreas do Direito Civil, Consumidor e Administrativo. Membro das Comissões de Direito Imobiliário e das Famílias e Sucessões da 20ª Subseção da OAB/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Eduardo Carlos. Entre o riso e a responsabilidade:: limites da liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7791, 30 out. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111374. Acesso em: 21 nov. 2024.

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