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O problema do início dos atos executórios nos crimes contra as instituições democráticas

30/11/2024 às 11:00

Resumo:


  • Discussão sobre início dos atos executórios em crimes contra instituições democráticas.

  • Iter Criminis: caminho da infração penal dividido em cogitação, preparação, execução e consumação.

  • Teorias objetivo-formal e objetivo-individual para determinar início da execução dos crimes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Código Penal não estabeleceu um marco objetivo para o início da execução. Então há um problema a ser solucionado: como aferir a transição dos atos preparatórios para os atos executórios?

Existe há algum tempo uma celeuma sobre o início dos atos executórios nos crimes contra as instituições democráticas, os quais se encontram previstos nos arts. 359-L (Abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (Golpe de Estado) do Código Penal.

Nos últimos dias, houve um recrudescimento dessa discussão acalorada, por ocasião da divulgação do teor de alguns dos elementos de informação colhidos pela Polícia Federal (PF) nos autos do Inquérito Policial em que se investiga uma possível organização criminosa constituída pelo ex-presidente da república Jair Messias Bolsonaro e membros das Forças Armadas1.

Tal debate, porém, está marcado por análises que refletem um grau acentuado de paixões, além de vieses cognitivos indisfarçáveis. Quase não se lê argumentos coerentes com a dogmática jurídico-penal e a sua evolução.

Pensando nisso, este simplório artigo foi idealizado com o objetivo de funcionar como um convite ao leitor para uma reflexão mais profunda, que leve em consideração os institutos constitutivos do Direito Penal brasileiro.

Não se pode abordar o início dos atos executórios dos crimes contra as instituições democráticas sem antes se ter uma compreensão, ainda que singela, sobre o que vem a ser o chamado Iter Criminis.

O Iter Criminis é uma abstração que indica o itinerário da infração penal, ou seja, o caminho que ela percorre até alcançar a consumação — que, normalmente, seria o seu estágio final. Nos principais Manuais ou Cursos de Direito Penal, tal itinerário é dividido em quatro etapas: 1 cogitação (que reflete basicamente os momentos de idealização e deliberação sobre a prática do crime); 2 preparação (a qual se dá quando os sujeitos ativos do crime se munem das estratégias e instrumentos necessários à realização da conduta delituosa); 3 execução (que é o momento de exteriorização da conduta idealizada e preparada, isto é, quando o crime começa a ser colocado em prática); e 4 consumação (a qual ocorre, basicamente, quando o delito perpassou as etapas anteriores e reúne todos os elementos da sua definição legal - o que, em geral, se dá quando o resultado pretendido é alcançado).

Em razão da previsão contida no art. 31. do Código Penal (“o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”), a manualística é unânime em afirmar que, via de regra, o crime só é punível a partir da fase de execução (fase 3 do Iter Criminis), e desde que não tenha passado para a fase posterior — ou seja, para a fase de consumação — por circunstâncias alheias à vontade do agente, isto é, por causas que lhe são exteriores (não originadas da sua própria vontade). Portanto, a rigor, não se pune a cogitação e a preparação do crime, salvo, neste último caso, se a legislação penal tipificar expressamente atos preparatórios de outras infrações penais — é o que ocorre, por exemplo, com o crime de associação criminosa (art. 288. do Código Penal) e com o crime de posse de maquinário destinado ao tráfico de drogas (art. 34. da Lei n. 11.343/2006).

A grande questão é que o Código Penal não estabeleceu um marco objetivo para o início da execução. Então, nesse contexto, há um problema a ser solucionado: como aferir a transição dos atos preparatórios para os atos executórios?

Visando solucionar essa aporia, a manualística brasileira lançou mão de pelo menos quatro teorias. Nos últimos anos, duas delas têm tido maior destaque, em razão das suas penetrabilidades na doutrina e nos tribunais. São elas: 1 Teoria objetivo-formal (ou lógico-formal) — idealizada por Franz Von Liszt; e 2 Teoria objetivo-individual — preconizada por Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli.

De um lado, para a Teoria objetivo-formal, os atos executórios — e, portanto, a execução — têm início com a realização do verbo-núcleo do tipo. De outro, segundo a Teoria objetivo-individual, a execução se inicia com os atos que, de acordo com plano concreto do autor, realizam-se no período imediatamente anterior ao começo da realização do verbo-núcleo do tipo penal.

Rogério Sanches Cunha se utiliza de um interessante exemplo hipotético para explicar as consequências da aplicação de cada uma dessas teorias. Imagine que o Sujeito A, almejando furtar um televisor no interior da residência do Sujeito B, aguarda a saída do morador e, ao constatar a ausência dele, escala o muro, entra na casa e subtrai o bem móvel. Para Cunha, nesse caso, se se adotar a Teoria objetivo-formal, se chegará à conclusão de que a execução se iniciou apenas no momento em que o Sujeito A adentrou no imóvel e começou a subtração do objeto, ou seja, no instante da realização inicial do verbo-núcleo do tipo legal previsto no art. 155. do Código Penal (“subtrair”). Todavia, caso venha a se adotar a Teoria objetivo-individual, não se concluirá outra coisa senão que a execução teve início com a escalada do muro por parte do Sujeito A, por ser o ato anterior à subtração e que demonstra a inequívoca intenção criminosa (plano concreto do autor)2.

Logo, no caso dos crimes contra as instituições democráticas, a punição das condutas — especificamente da tentativa de golpe de Estado — depende, em alguma medida, da teoria a ser considerada.

Se se adotar a teoria objetivo-formal, seria possível cogitar que a postura de inflamar simpatizantes, a edição de minutas que decretam um Estado de Exceção no país, a articulação do emprego da Forças Armadas em uma tomada violenta do Poder e outras ações são apenas atos preparatórios de um golpe de Estado e, portanto, insuscetíveis de punição em virtude da ausência de previsão legal específica.

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Por outro lado, adotando-se a teoria objetivo-individual, poderia se chegar à conclusão de que os atos apontados no parágrafo anterior — a postura de inflamar simpatizantes, a edição de minutas que decretam um Estado de Exceção no país, a articulação do emprego da Forças Armadas em uma tomada violenta do Poder etc. — são atos anteriores ao efetivo golpe de Estado e à abolição violenta do Estado Democrático de Direito que denotam a intenção delituosa ou o plano concreto dos agentes, permitindo-se a punição legítima das condutas.

Ocorre que, como em outros tantos temas, a jurisprudência dos tribunais é vacilante sobre a matéria. Por exemplo, a teoria objetivo-formal foi adotada recentemente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (vide AREsp 974.254/TO, rel. Min. Ribeiro Dantas, 5.ª Turma, j. 21.09.2021). Mas, no passado, a teoria objetivo-individual foi igualmente empregada (vide REsp 113603, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5.ª Turma, j. 20.08.1998), e não há nada que indique que ela se tornou uma corrente realmente minoritária.

A verdade é que, das teorias abordadas, a teoria objetivo-individual parece ser a única passível de aplicação no que diz respeito aos crimes contra as instituições democráticas. Isso porque as infrações penais do art. 359-L (Abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e do 359-M (Golpe de Estado) do Código Penal constituem crimes de atentado ou de empreendimento, uma vez que, na figura do tipos legais de crime, ambos preveem condutas na modalidade tentada3. Ambos têm como núcleo do tipo o verbo “tentar”, e isso traz obstáculos à aplicação da teoria objetivo-formal.

Como aplicar a teoria objetivo-formal a um crime cujo núcleo é a própria tentativa? Isso seria ilógico. Nesse caso, parece que ela simplesmente não conseguiria diferenciar os atos preparatórios dos atos executórios.

No fundo, o problema do início dos atos executórios nos crimes contra as instituições democráticas enseja reflexões mais profundas sobre a dificuldade de alguns dos institutos e teorias clássicas da dogmática jurídico-penal em conferirem respostas adequadas aos novos crimes de perigo. Mas esse é um tema para um próximo texto.


Notas

1 Polícia Federal desarticula organização criminosa que planejou golpe de Estado. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Brasília/DF, 19.11.2024. Disponível em: <https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2024/11/policia-federal-desarticula-organizacao-criminosa-que-planejou-golpe-de-estado >. Acesso em 23.11.2024. No mesmo sentido: Prazeres, Leandro; Alvim, Mariana. PF indicia Bolsonaro, Braga Netto, Heleno e outras 34 pessoas por tentativa de golpe de Estado e organização criminosa. Brasília/DF e São Paulp/SP, 21.11.2024. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgej589pplro >. Acesso em 23.11.2024. ︎

2 Cunha, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal - Parte Geral - Volume Único / Rogério Sanches Cunha - 13. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora JusPodvm. 2024. p. 495-496.

3 Nucci, Guilherme de S. Código Penal Comentado - 24ª Edição 2024. 24th ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.1426. ISBN 9788530994310. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530994310/. Acesso em: 23 nov. 2024.

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Sobre o autor
Victor Hugo Oliveira Leôncio

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-graduando em Direito Público. Estagiário de pós-graduação no Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÔNCIO, Victor Hugo Oliveira. O problema do início dos atos executórios nos crimes contra as instituições democráticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7822, 30 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111891. Acesso em: 7 jan. 2025.

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