O microssistema de julgamento de casos repetitivos no processo civil brasileiro é um conjunto de instrumentos normativos e princípios processuais que visam assegurar a uniformidade e a isonomia na resolução de questões jurídicas repetitivas (Silva; Lima, 2017, p. 181).
Previsto no Código de Processo Civil de 2015, integra mecanismos como os Recursos Repetitivos, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (ibidem) e o Incidente de Assunção de Competência (STJ, 2024), todos estruturados para garantir decisões homogêneas e previsíveis em questões de direito que afetam um grande número de processos.
Os Recursos Repetitivos, regulamentados pelos artigos 1.036 a 1.041 do CPC, permitem que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal julguem conjuntamente recursos que discutam uma mesma questão jurídica. Para tanto, selecionam-se casos representativos da controvérsia, suspendendo-se os processos em curso no país sobre o mesmo tema até o julgamento do recurso. A decisão proferida no julgamento dos recursos repetitivos possui efeito vinculante e deve orientar as instâncias inferiores, garantindo coerência e celeridade na solução das demandas.
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, previsto nos artigos 976 a 987 do CPC, é instaurado nos tribunais de segundo grau e tem como objetivo unificar o entendimento jurídico em casos que envolvam questões de direito material ou processual repetitivas, desde que haja risco de decisões conflitantes ou repercussão social, econômica ou jurídica relevante.
O incidente de resolução é uma técnica processual destinada a criar uma solução para a questão replicada nas múltiplas ações pendentes. Bem por isso, como é obvio, a decisão proferida no incidente de resolução de demandas repetitivas apenas resolve casos idênticos. Essa a distinção básica entre o sistema de precedentes das Cortes Supremas e o incidente destinado a dar solução a uma questão litigiosa de que podem provir múltiplos casos
(Marinoni, 2015, p. 401).
Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça reafirmou a existência de microssistema de julgamento de questões repetitivas. A relatora, Ministra Nancy Andrighi, explica em sua decisão como a legislação permite esse entendimento:
CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. SUSPENSÃO DO PROCESSO EM 1º GRAU EM RAZÃO DE INSTAURAÇÃO DE IRDR. DISPOSITIVOS LEGAIS NÃO ENFRENTADOS E IMPERTINENTES. SÚMULA 211/STJ. SÚMULA 284/STF. PROCEDIMENTO DE DISTINÇÃO (DISTINGUISHING) DO ART. 1.037, §§9º A 13, DO NOVO. APLICABILIDADE AO IRDR. POSSIBILIDADE. RECURSOS REPETITIVOS E IRDR. MICROSSISTEMA DE JULGAMENTO DE QUESTÕES REPETITIVAS. INTEGRAÇÃO, QUANDO POSSÍVEL, ENTRE AS TÉCNICAS DE FORMAÇÃO DE PRECEDENTES VINCULANTES. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA NO CPC E INEXISTÊNCIA DE OFENSA A ELEMENTO ESSENCIAL DA TÉCNICA. PROCEDIMENTO DE DISTINÇÃO. AUSÊNCIA DE DIFERENÇA ONTOLÓGICA OU JUSTIFICATIVA TEÓRICA QUE JUSTIFIQUE TRATAMENTO ASSIMÉTRICO ENTRE RECURSOS REPETITIVOS E IRDR. REQUERIMENTOS FORMULADOS APÓS ORDEM DE SUSPENSÃO. OBJETIVO IDÊNTICO, QUE É DEMONSTRAR A DISTINÇÃO ENTRE A QUESTÃO DEBATIDA NO PROCESSO E AQUELA SUBMETIDA AO JULGAMENTO PADRONIZADO. EQUALIZAÇÃO DA TENSÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, SEGURANÇA JURÍDICA, CELERIDADE, ECONOMIA PROCESSUAL E RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE RESOLVE O PEDIDO DE DISTINÇÃO EM IRDR. AGRAVO DE INSTRUMENTO CABÍVEL (ART. 1.037, §13, I, DO NOVO CPC), SOB PENA DE CRIAÇÃO DE DECISÃO IRRECORRÍVEL SEM AUTORIZAÇÃO LEGAL OU DE TORNAR ABSOLUTAMENTE INÚTIL O DEBATE ACERCA DA CORREÇÃO DA DECISÃO SUSPENSIVA APENAS EM APELAÇÃO OU EM CONTRARRAZÕES. IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. TEMA REPETITIVO 988. PROCEDIMENTO ESPECÍFICO E DETALHADO PARA REQUERIMENTO DE DISTINÇÃO. CINCO ETAPAS SUCESSIVAS. INTIMAÇÃO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO. REQUERIMENTO DA PARTE, DEMONSTRANDO A DISTINÇÃO, ENDEREÇADA AO JUIZ EM 1º GRAU. CONTRADITÓRIO. PROLAÇÃO DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA RESOLVENDO O REQUERIMENTO. RECORRIBILIDADE. PROCEDIMENTO NÃO OBSERVADO PELA PARTE QUE INTERPÔS AGRAVO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO. AGRAVO DE INSTRUMENTO INADMISSÍVEL. PROCEDIMENTO DE OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. DENSIFICAÇÃO DO CONTRADITÓRIO EM 1º GRAU. IMPEDIMENTO A INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS PREMATUROS. NECESSIDADE DE PROLAÇÃO DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA A SER IMPUGNADA, QUE RESOLVE A ALEGAÇÃO DE DISTINÇÃO. VIOLAÇÃO AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 5- Embora situados em espaços topologicamente distintos e de ter havido previsão específica do procedimento de distinção em IRDR no PLC 8.046/2010, posteriormente retirada no Senado Federal, os recursos especiais e extraordinários repetitivos e o IRDR compõem, na forma do art. 928, I e II, do novo CPC, um microssistema de julgamento de questões repetitivas, devendo o intérprete promover, sempre que possível, a integração entre os dois mecanismos que pertencem ao mesmo sistema de formação de precedentes vinculantes.
(REsp n. 1.846.109/SP, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 10/12/2019, DJe de 13/12/2019).
Já o Incidente de Assunção de Competência é aplicado em casos com potencial de gerar repercussões graves, erga omnes, e cujas decisões necessitem de padronização para evitar insegurança jurídica e contradições entre julgamentos. Embora não seja voltado exclusivamente para situações com grande número de processos, visa também prevenir que questões controversas venham a se tornar repetitivas.
Desse modo, ao fixar teses vinculantes, o incidente permite que demandas semelhantes sejam solucionadas de maneira uniforme, reforçando a estabilidade e previsibilidade nas decisões judiciais.
O incidente de assunção de competência pode ser instaurado em qualquer tribunal, inclusive nos tribunais superiores. Enquanto não julgada a causa ou o recurso, é possível haver a instauração do incidente de assunção de competência, cujo julgamento produz um precedente obrigatório a ser seguido pelo tribunal e pelos juízos a ele vinculados. O incidente de assunção de competência é admissível em qualquer causa que tramite no tribunal. Não é sem razão, aliás, que o art. 947 do CPC-2015 estabelece ser ele admissível “[...] quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.”
(Cunha; Didier Jr., 2015, n.p, 2015).
Esses mecanismos encontram sustentação em princípios constitucionais e processuais fundamentais, como a isonomia, a segurança jurídica e a eficiência. A isonomia é garantida ao evitar que partes em situações idênticas recebam tratamentos jurídicos diferentes. A segurança jurídica é promovida ao assegurar estabilidade e previsibilidade nas decisões judiciais, elemento essencial para a confiança no Judiciário. A eficiência, por sua vez, é alcançada pela racionalização do sistema judicial, reduzindo o número de demandas idênticas e otimizando os recursos disponíveis.
Em síntese, o microssistema de julgamento de casos repetitivos representa uma evolução no processo civil brasileiro, permitindo que o Judiciário responda de forma organizada e uniforme aos desafios da litigiosidade de massa. A aplicação de seus mecanismos fortalece a confiança no sistema jurídico, garante celeridade e reduz a fragmentação de entendimentos, contribuindo para uma prestação jurisdicional mais justa e eficiente.
A dupla função do microssistema de julgamento de casos repetitivos
O microssistema de julgamento de casos repetitivos, conforme destacado por Freddie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha (2016, p. 590), possui duas finalidades principais, que devem ser interpretadas de maneira conjunta para garantir a unidade e a coerência do sistema processual: um microssistema de gestão e julgamento de casos repetitivos, que pertence ao microssistema de formação de precedentes obrigatórios.
Para alcançar essa finalidade, o Código de Processo Civil prevê instrumentos que asseguram um amplo debate sobre as matérias submetidas a julgamento, como a realização de audiências públicas e a participação de especialistas no tema. Isso ocorre, por exemplo, nos casos de recursos repetitivos e no incidente de resolução de demandas repetitivas, conforme os artigos 1.038 e 983 do CPC, respectivamente. Além disso, é garantida ampla transparência e publicidade nos processos de formulação das teses jurídicas vinculantes.
Após a fixação do precedente, ele vincula juízes e tribunais em casos futuros, permitindo a adoção de medidas que tornam o processo mais eficiente. Entre essas medidas, destacam-se o julgamento liminar de improcedência, previsto no artigo 332 do CPC, e a dispensa de remessa necessária em determinadas hipóteses, conforme o artigo 496 do mesmo diploma legal. O CPC também autoriza decisões monocráticas do relator para negar seguimento a recursos que contrariem os precedentes estabelecidos ou para resolver conflitos de competência quando já houver tese jurídica consolidada.
A segunda finalidade do microssistema refere-se à gestão processual dos casos repetitivos, garantindo uma administração eficiente desses processos. Essa função acessória busca viabilizar um julgamento aprofundado e uniforme das questões controvertidas, por meio da identificação de processos que envolvam a mesma matéria jurídica. Para isso, utiliza-se a técnica de seleção de casos-piloto ou paradigmas, enquanto os demais processos com temas correlatos são suspensos, como determina o artigo 982 do CPC no caso do IRDR. Essa suspensão pode abranger processos em âmbito estadual, regional ou até mesmo nacional, conforme o §3º do dispositivo.
Assim, ao combinar a formação de precedentes com a gestão eficiente dos processos repetitivos, o microssistema busca otimizar a atuação do Judiciário, garantindo tanto a eficiência quanto a uniformidade na aplicação do direito.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm Acesso em: 17 de nov. 2024.
CUNHA, Leonardo José Carneiro da; DIDIER JUNIOR, Fredie. Incidente de assunção de competência e o processo do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3. Região. Belo Horizonte, v. 60, n. 91, p. 163-178, jan./jun. 2015. Disponível em: http://as1.trt3.jus.br/bd-trt3/handle/11103/27276 Acesso em: 17 de nov. 2024.
DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, v. 3. 720 p.
MARINONI, Luiz Guilherme. O “problema” do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos extraordinário e especial repetitivos. Revista de Processo. vol. 249. ano 40. p. 399-419. São Paulo: Ed. RT, nov. 2015.Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/6013061/mod_resource/content/1/MARINONI%2C%20Luiz%20Guilherme%20-%20O%20problema%20do%20incidente%20de%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20de%20demandas%20repetitivas.pdf Acesso em 17 de nov. 2014
SILVA, Larissa de Almeida; LIMA, Daine Gonçalves Ornella. A técnica do julgamento de casos repetitivos e o devido processo legal. In: CONGRESSO DE PROCESSO CIVIL INTERNACIONAL, 2., 2017. Anais eletrônicos. Vitória, 2017, p. 180-184. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/processocivilinternacional/issue/view/860 Acesso em 17 de nov. 2024
Superior Tribunal de Justiça, Incidente de Assunção de Competência, informações veiculadas no portal e disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Precedentes/informacoes-gerais/incidentes-de-assuncao-de-competencia Acesso em: 17 de nov. de 2024
Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n.º 1.846.109, relatora: Min. Nancy Andrighi, julgado em 10 de dez. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/stj-reafirma-existencia-microssistema.pdf Acesso em: 17 de nov. 2024