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Questões práticas em torno dos efeitos da Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça sobre o processo administrativo disciplinar e a sindicância

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6. Caracteriza desvio de função a nomeação de servidor inscrito na OAB como defensor dativo do acusado revel?

De outra banda, não procede considerar, concessa venia, que o desempenho de múnus funcional, expressamente previsto no Estatuto dos Servidores Públicos (art. 164, § 2º, Lei n. 8.112/1990), qual seja o exercício da função de defensor dativo em processo administrativo disciplinar, possa ser considerado, paradoxalmente, desvio de função.

Se o regime legal dos servidores públicos estipula o desempenho da função de defensor dativo por qualquer integrante do funcionalismo, quando designado pela autoridade administrativa competente, consignando a disposição no bojo do regime disciplinar de direitos e deveres dos agentes públicos, não há que se falar que o funcionário designado para o mister estaria desempenhando labor impróprio, não previsto em lei, em desacordo com suas atribuições.

Trata-se de exercício de múnus funcional, expressamente estatuído para os servidores públicos distritais como dever legal, modo por que é incorreto assertar que ocorreria um ilegal desvio de função, haja vista que o previsto em lei não pode configurar uma ilegalidade, sob pena de uma "contradictio in terminis".

Por essa causa que não se pode julgar que ocorreria, supostamente, desvio de função no ato de designação de servidor para funcionar como defensor dativo em processo administrativo disciplinar, na medida em que, além das atribuições funcionais específicas do cargo em que investido, o agente público ainda se sujeita a regras gerais de atuação, a deveres de caráter geral, vinculantes de todo o funcionalismo, como a de cumprir o encargo de atuar como defensor dativo em processo administrativo disciplinar, quando designado pela autoridade competente, sem que se verifique pretenso desvio de função, mas mero cumprimento de múnus funcional legalmente instituído de forma expressa.

O desempenho de múnus funcional não implica desvio de função. Não é porque um médico foi nomeado para atuar como membro de comissão de sindicância, ou que um engenheiro foi designado como integrante de conselho de processo administrativo disciplinar, que terá sucedido desvio de função.

O cumprimento do dever funcional de colaborar com a Administração Pública para o descobrimento da verdade e para a apuração ou punição das irregularidades no serviço público, na qualidade de componente de colegiado sindicante ou processante, ou ainda como defensor dativo em processo administrativo disciplinar (para assegurar a validade formal do feito apenador), não implica qualquer desvio funcional dos agentes públicos, mas atendimento a dever legal (arts. 149, caput e §§ 1º e 2º, e 164, § 2º, Lei n. 8.112/1990).


7. Exerce advocacia contra a Administração Pública o servidor nomeado defensor dativo do acusado revel?

Não se pode reconhecer, contudo, que os agentes públicos que se sujeitam a impedimento, isto é parcial limitação de exercício da advocacia contra a própria Fazenda Pública que os remunera (art. 30, I, Estatuto da OAB), não possam funcionar como defensores dativos, nomeados em processo administrativo disciplinar desenvolvido pela Administração Pública do Distrito Federal.

A norma legal em questão, compreensivelmente, estabeleceu vedação legítima de que o servidor público, integrante da Administração Pública de certa entidade federada ou de pessoa jurídica pública ou privada da administração descentralizada, viesse a exercer a advocacia contra os interesses da Fazenda Pública que o remunera e emprega.

O direito positivo brasileiro não admite, de fato, que o agente público passe a atuar contra seu próprio empregador ou entidade a cuja estrutura administrativa se vincula.

O que não se antolha acertado, no entanto, é julgar que o fato de o servidor, nomeado por uma autoridade administrativa da Administração Pública a que se vincula para atuar como defensor dativo eventual em processo administrativo disciplinar ou sindicância, estaria supostamente agindo no sentido oposto aos interesses estatais.

Ao contrário, é do mais inequívoco interesse público que o processo administrativo disciplinar e a sindicância sejam processados de forma válida e eficaz pela Administração Pública, em face de a exigência constitucional de ampla defesa e contraditório reclamar a atuação de defesa técnica nos feitos punitivos administrativos.

Sem a atuação de defensor dativo em favor do servidor acusado revel, os processos sancionadores administrativos seriam nulos de pleno direito, não podendo atingir o fim esperado do efetivo exercício do poder disciplinar da Administração Pública.

Ao invés de colidir com os interesses estatais, a eficiente atuação de defensor dativo, como pressuposto formal de validade dos processos punitivos, é medida indispensável para o interesse público, o qual reclama a obediência da formalidade "sine qua non" para o desempenho pelo Estado do seu direito de punir os servidores infratores.

Por conseguinte, não se aplica, na hipótese, a idéia de que o servidor público estaria atuando contra, mas sim, como sucede, em favor dos interesses estatais. Como o próprio Estado, se considerasse a intervenção do defensor dativo uma atividade supostamente desconforme com os fins públicos e administrativos, tomaria a iniciativa de nomear um funcionário seu para atuar contra a Administração?

A ação originária de uma autoridade administrativa dever nomear, por força da previsão legal expressa no Estatuto dos Servidores Públicos, um funcionário de nível hierárquico igual ou superior ao acusado, como defensor dativo no processo administrativo disciplinar, não poderia jamais constituir uma atuação, contraditoriamente, em desfavor do próprio Estado.

Se a atuação do defensor dativo representasse medida agressiva do interesse público, como poderia a própria Lei n. 8.112/1990 (art. 164, § 2º), paradoxalmente, prevê-la como medida obrigatória a cargo da autoridade administrativa competente? Se não houvesse interesse público, como o próprio Estatuto dos Servidores albergaria a intervenção em comento como mister para a salvaguarda da validade formal do feito sancionador e do posterior exercício eventual do jus puniendi estatal?

Calha, demais, rememorar que a Administração Pública se sujeita ao princípio da legalidade, por cujo efeito o administrador público está obrigado a cumprir e fazer cumprir, em sua atuação, as disposições legais, como é o quanto regra o art. 164, § 2º, da Lei n. 8.112/1990, a qual prevê que deve ser nomeado, como defensor dativo, um servidor da própria Administração Pública, agora com o requisito adicional de que seja inscrito na OAB e não esteja sujeito a incompatibilidade, por força da Súmula n. 343, do Superior Tribunal de Justiça.

Se o dispositivo legal está em vigor, não tendo sua constitucionalidade ou revogação em momento qualquer questionada, ao que consta, deve ser cumprido e aplicado pela Administração Pública, por força da presunção de constitucionalidade que lhe é imanente.

Outro pressuposto equivocado, data maxima venia, seria a assertiva de que haveria um antagonismo, necessariamente, entre a atuação do defensor dativo e os interesses do Estado quanto à desejada punição do servidor acusado.

O processo administrativo disciplinar não é destinado, obrigatoriamente, à punição do acusado, mas sim à realização de justiça, tanto que se prevê a hipótese de absolvição do servidor indiciado (a autoridade poderá isentar o servidor de responsabilidade: art. 168, par. único, fine, da redação original da Lei n. 8.112/1990), além de que a comissão acusadora e instrutora deve atuar com isenção, independência e imparcialidade (art. 150, caput, da Lei n. 8.112/1990).

Ora, se a própria lei prevê que o conselho instrutor e acusador deverá agir com imparcialidade e que a autoridade julgadora poderá isentar o servidor de responsabilidade, é evidente que o processo administrativo disciplinar e a sindicância têm por escopo fazer justiça no caso concreto apreciado, e não punir, de qualquer sorte, o acusado.

Desse modo, sob a ótica de um sistema acusatório, em que a autoridade julgadora não exerce função de acusar (confiada pela lei a um conselho isento e imparcial trino de servidores estáveis, insuspeitos e desimpedidos), não é certo julgar que a Administração Pública tenha outro desiderato senão de fazer justiça e aplicar corretamente a lei in concreto.

Sendo assim, se o propósito administrativo é de que se faça justiça, e não que se puna arbitrariamente o acusado, a intervenção de defensor dativo, inscrito na OAB, ainda que servidor da própria Administração Pública, concorre para o bom curso dos trabalhos processuais e para o exercício do legítimo exercício do poder disciplinar administrativo.

Destarte, o defensor dativo não advoga contra os interesses da Administração Pública, antes em favor dela, pois auxilia no sagrado encargo de fazer justiça e de boa aplicação da lei administrativa no caso concreto, além de influenciar no convencimento da autoridade julgadora sob as luzes do direito e da eqüidade, o que afasta, por completo, a subsunção do afazer do servidor nomeado como defensor dativo da hipótese do art. 30, I, da Lei federal n. 8.906/1994. Não reside, pois, impedimento parcial de atuação, na hipótese, diversamente do que alegado pelo nobre parecerista, data venia.

Se alguma autoridade administrativa, seja a que instaura ou julga o processo administrativo disciplinar ou a sindicância, revela ou manifesta à comissão processante, ou ao defensor dativo designado, uma pessoal vontade de punir o servidor de todo modo, à revelia das provas dos autos ou da boa aplicação do direito na espécie, trata-se de desvio de finalidade ou de abuso de poder, com agressão aos princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade da Administração Pública, conduta que macula o exercício da função administrativa e deve ser denunciada às autoridades superiores e Corregedorias, por se cuidar da mais odiosa ilegalidade, porquanto a lei é expressa em exigir imparcialidade e isenção nos feitos sancionadores estatais.

Um eventual desvio de conduta da autoridade instauradora ou julgadora, isoladamente, não justifica a conclusão de que o defensor dativo seria supostamente um estorvo para a vontade de punir estatal, pois o processo administrativo colima realizar justiça na esfera disciplinar.

Daí que o defensor dativo não postula contra a Fazenda Pública que o remunera, ao contrário, age por designação de uma autoridade da própria Administração Pública, em vista de um interesse público e administrativo de que o processo administrativo disciplinar e a sindicância sejam conduzidos sob a ótica dos princípios constitucionais e da legalidade, com a atuação de defesa técnica.

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8. Independência de atuação do servidor nomeado como defensor dativo

Outro prisma analítico que igualmente merece ser mais bem elucidado consiste na idéia errônea de que o defensor dativo não disporia de imparcialidade e independência para se desincumbir da defesa, pois, supostamente, atuaria de forma contrária ao premeditado e inevitável interesse estatal de punir o acusado.

Novamente se verifica o erro da premissa inicial quanto aos fins do processo administrativo disciplinar e da sindicância, os quais se voltam para a realização da justiça e para a boa aplicação do direito na Administração Pública, e não para saciar a sede de sacrifícios ou de punições injustas de autoridades hierárquicas superiores.

Se o servidor não atua contra os interesses públicos, mas, diversamente, age em proveito do Estado, assegurando, com sua intervenção como defensor dativo, a validade formal do processo punitivo, em face da efetiva concessão de defesa ampla e contraditório no feito, não há que se falar que o funcionário defensor designado teria que lutar contra forças incoercíveis de hierarcas superiores, sequiosos da suposta inflição de castigo ao acusado, contra as quais perderia sua plenitude de atuação defensória como patrono do acusado.

Por esse motivo, não há razão para a desenhada e pretensa falta de capacidade de servidor público atuar como defensor dativo em feito sancionador, porquanto estaria, supostamente, obrigado a desafiar superiores hierárquicos, sedentos por punir o acusado.

Um bom defensor dativo não consubstancia ameaça à pretensão punitiva estatal, mas sim auxilia na melhor desenvoltura dos trabalhos processuais e na melhor aplicação do direito quando da apreciação da responsabilidade do acusado e do julgamento, apontando questões de mérito e formais relevantes, as quais deverão ser ponderadas pela Administração Pública.

Abandonou-se, no processo penal e no administrativo disciplinar, o relato Beccariano de que a punição deve ser infligida de todo modo, ainda que seja necessário arrancar a confissão do acusado por meio de torturas, nem ainda se toleram os métodos processsuais medievais das ordálias ou juízos de Deus, quando o acusado era submetido a suplícios horríveis para, se conseguisse resistir, provar sua inocência, como o ferro em brasa, sobre o qual o pretenso culpado tinha que passar com os pés descalços, sendo inocentado se não suportasse queimadura, o que era improvável e somente sucedia em caso de milagre. [26]

O objetivo dos processos sancionadores estatais não é mais martirizar o acusado, mas fazer justiça, ainda que a correta aplicação da lei envolva a imposição de penalidade disciplinar.

Por essa razão, o defensor dativo desfruta, sim, da mesma independência legal de atuação que os próprios membros das comissões de processo administrativo disciplinar ou de sindicância.


9. Requisitos subjetivos do defensor dativo

Já no que concerne aos pressupostos subjetivos do defensor dativo, é mister que disponha dos mesmos atributos dos integrantes de comissões de processo administrativo disciplinar, necessários para sua atuação com independência e imparcialidade: seja servidor estável, e não mero ocupante de cargo comissionado, de nível hierárquico igual ou superior ao acusado, além de não estar sujeito a causas de impedimento e suspeição previstas em lei.

O ordenamento jurídico se preocupou em regular as hipóteses de suspeição e impedimento no processo administrativo disciplinar. Dar-se-á a suspeição dos membros de colegiados processantes ou sindicantes ou do defensor dativo: se forem inimigos ou amigos íntimos do acusado, ou dos respectivos cônjuges, companheiros ou parentes até o terceiro grau (art. 20, Lei Geral de Processo Administrativo da União: Lei federal 9.784/99 e Lei distrital n. 2.834/2001).

O impedimento ocorrerá se os servidores que formam o conselho disciplinar ou o defensor dativo: a) tiverem interesse no assunto que deflagrou o feito apenador; b) estiverem litigando judicial ou administrativamente com o processado; c) tiverem sido os autores da denúncia da irregularidade (representantes), ou tiverem elaborado perícia na fase de sindicância ou processual sobre a matéria dos autos, além de terem sido ouvidos como testemunhas no feito sindicante ou no processo disciplinar realizado por anterior comissão; d) forem parentes consangüíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, cônjuge ou companheiro do servidor acusado (art. 149, § 2º, L. 8.112/90, c.c. arts. 18 a 20 e 69, da Lei federal 9.784/99 e Lei distrital n. 2.834/2001).

Os servidores que, em sindicância investigativa prévia, concluíram pelo cometimento de infração disciplinar pelo servidor investigado não podem ser novamente designados para atuar no processo administrativo disciplinar, nem como defensores dativos, porquanto já formaram convencimento pela culpabilidade do acusado, de forma que não mais atendem os pressupostos de isenção e imparcialidade (art. 150, caput, Lei 8.112/90), entendimento jurisprudencial dos Tribunais Regionais Federais da 1ª Região (AG 2005.01.00.064319-5/DF, 2ª Turma, julgamento em 17/05/2006) e da 4ª Região (REO 12072, Processo: 200004010650490/PR, 4ª Turma, decisão de 17/10/2000).

Pela mesma razão, os integrantes do conselho processante (inclusive se o defensor dativo ocupou essa condição) que elaboraram, previamente, indiciação e relatório pela punição do processado não podem ser renomeados para coleta de provas adicionais, no caso de a autoridade julgadora converter o julgamento em diligência, com a necessária designação de novo trio instrutor, haja vista que a tendência seria de antecipada manutenção da opinião já declinada conclusivamente acerca da responsabilidade do indiciado pelos componentes do colegiado anteriormente indicado, os quais, ao subscreverem essas peças acusatórias, formaram peremptoriamente seu convencimento sobre a culpabilidade do servidor.

Não poderiam, depois disso, agir com absoluta independência e liberdade para, com a reabertura da fase instrutória, reapreciar os novos elementos probatórios colhidos à luz dos já existentes e redigir nova peça de indiciação e relatório ou atuarem como defensores dativos pela eventual absolvição, porque, para isso, teriam que contrariar dezenas ou até centenas de laudas que subscreverem e motivaram, com rigor, contra o acusado, sem falar na hipótese comum de, nessa hora, já haver um natural desgaste entre o colegiado instrutor e o funcionário, decorrente dos atritos advindos de destemperos e até agressões verbais nas razões defensórias escritas apresentadas contra a peça indiciatória lavrada, o que pode levar a comissão a considerar a punição do indiciado uma "questão de honra" e um objetivo que guiará os motivos e fundamentos expressos nas peças oficiais submetidas à autoridade julgadora, o que decerto prejudica o ideal de sobriedade e isenção administrativas.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Questões práticas em torno dos efeitos da Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça sobre o processo administrativo disciplinar e a sindicância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1769, 5 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11222. Acesso em: 19 dez. 2024.

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