3. OS INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR
3.1. Plebiscito
Buscando uma participação mais ativa da população, a Constituição inovou nosso ordenamento jurídico ao propor a realização de plebiscito e referendo como instrumentos para participação por popular, para legitimar o processo legislativo do representante ou, até mesmo, direcionar sua atuação.
Para Lenza (2020), o plebiscito consiste em uma consulta prévia ao povo sobre matéria com importante relevância, seja de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. O plebiscito é convocado pelo Congresso Nacional, proposto por no mínimo 1/3 dos membros.
O Plebiscito também é utilizado em locais específicos abrangendo apenas uma parte da população brasileira, nos casos de formação de novos Estados e novos Municípios, como leciona Silva:
O plebiscito está previsto no art. 14, I, podendo ser utilizado pelo Congresso Nacional nos casos que este decidir seja conveniente, mas já também indicado em casos específicos, para a formação de novos Estados e de novos Municípios (art. 18, §§ 3º e 4º); (SILVA, 2016, p.144)
Observa-se que o plebiscito é requisito indispensável no processo de formação de Estados e Municípios, diferentemente dos optativos em que o Congresso busca a opinião da população sobre determinada matéria.
A CF prevê que a convocação de plebiscito se fará por meio de decreto legislativo do Congresso Nacional, que dará conhecimento a Justiça Eleitoral para a realização do plebiscito. O processo realizado pela justiça eleitoral, que também será observado pelo referendo, é detalhado por Masson:
Segundo determina a Lei n° 9.709/ 1998, se aprovada a convocação popular, o Presidente do Congresso Nacional cientificará a Justiça Eleitoral para que
haja a fixação da data da realização da consulta,
torne pública a cédula de votação,
expeça as instruções necessárias à realização, e, por fim,
se assegure o acesso e a divulgação das opiniões acerca do tema objeto da consulta (MASSON, 2020, p.533)
Em 1993 ocorreu o primeiro e único plebiscito, em âmbito nacional, pós Constituição de 1988. O plebiscito era previsto nos Atos das Disposições Transitórias, para tratar da escolha, pelo povo, da forma e do sistema de governo.
Em abril de 93, a população optou pela República e pelo Presidencialismo. Todavia, hoje, nota-se um movimento muito forte na Câmara dos Deputados para uma mudança para o semipresidencialismo como sistema de governo. Resta saber se haverá novo plebiscito ou se simplesmente será desrespeitada a escolha anterior do povo.
Após a redemocratização, não houve outro plebiscito de caráter nacional, apenas alguns poucos plebiscitos de caráter estadual e municipal. Nota-se que o instrumento é pouco utilizado mesmo em debates que geram verdadeira divisão da sociedade. O legislador deveria trazer a população para essa tomada de decisão convocando o plebiscito ou outro instrumento que veremos a seguir: o referendo
3.2. Referendo
Ao passo que o plebiscito ocorre de forma anterior à deliberação legislativa, o referendo é um instrumento de convocação posterior, para que o povo possa ratificar ou rejeitar o ato legislativo ou administrativo. A autorização para a realização de referendo é, também, realizado pelo Congresso Nacional através da proposta de 1/3 dos membros, conforme preceitua Lenza (2020).
No tocante as diferenças entre plebiscito e referendo, assim define a lição de Mendes:
A diferença entre plebiscito e referendo concentra-se no momento de sua realização. Enquanto o plebiscito configura consulta realizada aos cidadãos sobre matéria a ser posteriormente discutida no âmbito do Congresso Nacional, o referendo é uma consulta posterior sobre determinado ato ou decisão governamental, seja para atribuir-lhe eficácia que ainda não foi reconhecida (condição suspensiva), seja para retirar a eficácia que lhe foi provisoriamente conferida (condição resolutiva). (MENDES, 2019, n.p.)
Nota-se que os instrumentos de participação popular guardam estritas semelhanças, no entanto, ocorrem em momentos distintos. A proposta desses instrumentos é trazer o povo para decidir sobre matérias controversas ou com relevância.
A doutrina divide o referendo em algumas espécies, segundo Masson:
- constituinte: apreciaçâo popular de emenda constitucional; legislativo: apreciação de leis (legislativo de efeito constitutivo quando aprova a medida legislativa, e legislativo de efeito ab-rogativo, quando a rejeita);obrigatório: quando a Constituiçâo o exige; facultativo: quando a Constituição permite a algum órgão a prerrogativa de consulta. (MASSON, 2020, p. 533)
A primeira experiência com o referendo ocorreu em 2005: “deu-se com a Lei n. 10.826/2003 (art. 35 do Estatuto do Desarmamento), que estabeleceu a proibição do comércio de armas de fogo e fixou que a eficácia de tal proibição dependeria de referendo realizado em outubro de 2005” (MENDES, 2019, sem pág.). A proposta foi rejeitada pela população por aproximadamente 64% dos votos. Todavia, mesmo contrário a opinião e decisão do povo, muitas medidas e leis foram adotadas para desrespeitar a soberania popular.
Atualmente, o presidente da república tem adotado medidas armamentistas, o que tem sido alvo de decisões judiciais impossibilitando sua concretização.
O referendo, assim como o plebiscito, pouco foi utilizado. Pós CF de 1988, apenas houve este anteriormente citado, em âmbito nacional, e um no Estado do Acre, versando sobre a adoção ou não de fuso horário.
Ao que parece, os políticos evitam a utilização de tais instrumentos. E, como observado, quando os utilizam, os “atropelam” com manobras. Situações da nossa recente democracia.
A CF, ainda em seu artigo 14, previu outro instrumento fundamental para a participação popular: a iniciativa popular.
3.3. Iniciativa Popular e veto popular
Outro importante instrumento para assegurar a soberania do povo é a iniciativa popular. José Afonso da Silva reconhece a iniciativa popular como uma forma de desempenhar a democracia participativa. A iniciativa popular está prevista na Constituição, sendo explícitos os requisitos para ocorrer no âmbito federal e municipal. Assim é prevista, nas palavras de José Afonso:
a iniciativa popular pela qual se admite que o povo apresente projetos de lei ao legislativo, desde que subscritos por número razoável de eleitores, acolhida no art. 14, III, e regulada no art. 61, § 22; o projeto precisa ser subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional (cerca de 800.000 eleitores), distribuídos pelo menos em cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles; estatui-se também que lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual, enquanto que, em relação aos Municípios, já se dispôs que a sua lei orgânica adotará a iniciativa popular de leis de interesse específico do Município, da cidade ou de bairro, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado; pena, não ter sido acolhida a iniciativa popular em matéria constitucional; (SILVA, 2016, p. 143)
Constata-se que a iniciativa popular requer um determinado número de eleitores para propositura do projeto de lei. No âmbito federal, para propor uma lei, é necessário a subscrição de 1% do eleitorado – eleitores de fato, não apenas brasileiros – nacional, no mínimo eleitores de 5 estados abrangendo 0.3% da população destes.
Frisa-se que apenas pode ser apresentadas propostas de leis ordinárias e complementares. Não há previsão, na Constituição, para a propositura de emendas à Constituição, o que por si só é uma grande contradição. É compreensível o pensamento do legislador originário de preservar a Constituição de arroubos passageiro, como, por exemplo, um crime de comoção nacional envolvendo um menor impúbere que poderia mobilizar a população para emendar a constituição e permitir a prisão de menores de 18 anos ou pena de morte. No entanto, ainda sim, há uma contradição, já que a soberania política pertence ao povo, e, no momento que estão proibidos de definirem a sociedade que querem viver a própria essência da democracia e da soberania popular estão mitigadas.
Poder-se-ia considerar a possibilidade de emenda popular a Constituição com reserva de determinadas matérias, como por exemplo, as cláusulas pétreas. A não possibilidade de alteração dessa cláusula de forma direta pela população preservaria os ímpetos momentâneos.
No âmbito estadual, a CF deixa em aberto para definição dos próprios estados da federação como se daria a iniciativa popular. Isto é, cada estado definirá a porcentagem de população que deve subscrever a proposta de lei. Alexandre de Moraes discorre sobre a iniciativa popular em âmbito estadual:
Interessante ressaltar que as Constituições estaduais devem prever, nos 3.1.7 termos do § 4º do art. 27 da Constituição Federal, a iniciativa popular de lei estadual. Assim, por exemplo, a Constituição do Estado de São Paulo admite a possibilidade de sua alteração por proposta de cidadãos, mediante iniciativa popular assinada, no mínimo, por 1% dos eleitores. Igualmente, a Constituição do Estado da Bahia permite iniciativa popular para propositura de emenda constitucional
As iniciativas populares nos âmbitos estaduais permitem, até mesmo, proposta de emenda à Constituição Estadual, conforme entendimento do STF em relatoria do próprio ministro Alexandre de Moraes:
Apesar da ausência de iniciativa popular para apresentação de emendas à Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal entendeu possível que constituição estadual estabeleça essa espécie de iniciativa para proposta de emendas à constituição estadual.
A iniciativa popular no Estado do Ceará permite emenda a constituição estadual: “Para propor um projeto de lei ou uma emenda à Constituição do Estado do Ceará, por exemplo, o eleitor deverá elaborar o texto da proposta e colher assinaturas de, no mínimo, 1% do eleitorado do Estado (cerca de 58.757 eleitores, de acordo com o Censo 2011), distribuídos por pelo menos cinco municípios.” [1]
Nos municípios, a iniciativa popular deverá ser assinada por 5% do eleitorado municipal, por se tratar de populações majoritariamente menores.
Outro importante instrumento não previsto na Constituição que atuaria diretamente no controle de leis pela população é o veto popular.
O veto popular, instrumento pelo qual os cidadãos poderiam vetar a deliberação de projetos de leis que considerem não convenientes ao interesse público. A decisão final caberia à população que poderia arquivar a proposta legislativa de encontro ao interesse da Casa Legislativa.
Hoje, o que se constata é a eleição de um representante que se propõe a defender determinados interesses públicos, mas, quando no exercício parlamente, age de forma oposta. Podem-se citar recentemente as reformas trabalhistas e previdenciárias, que possuíam alta rejeição pela população e, todavia, foram promulgadas. Com o veto popular, a população atuaria para evitar qualquer projeto que considerasse ilegítimo.
Walber de Moura Agra, em seu Curso de Direito Constitucional, explica o veto popular e o diferencia do plebiscito:
A diferença entre o veto popular e o plebiscito é que, naquele, o seu uso se restringiria a projetos de leis que estivessem tramitando no Congresso Nacional, manifestando-se a população contra a sua aprovação, e este se refere a qualquer propositura que a população tenha interesse que passe a integrar o ordenamento jurídico, independentemente de sua tramitação no Congresso Nacional (AGRA, 2009, p. 297)
Algumas leis orgânicas preveem a possibilidade de veto popular. Inclusive, o primeiro veto popular ocorreu em Fortaleza em 2016 para a proteção de um parque ecológico.
Apesar de ser pouco utilizada, a iniciativa popular trouxe algumas normas interessantes ao ordenamento jurídico brasileiro. Gilmar Mendes (2019) aponta algumas importantes leis que foram promulgadas a partir da iniciativa popular: a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei da Ficha Limpa – iniciou por vontade popular, mas foi editada seguindo o trâmite legislativo comum – e a Lei de compra de votos.
3.4. Recall, Abberufungsrecht e Impeachment
Como abordado anteriormente, os agentes políticos são escolhidos pelo povo de forma direta ou indireta. Aos eleitos, por exemplo, é concedido um mandato eletivo, termo definido pelo TSE como “o exercício das prerrogativas e o cumprimento das obrigações de cargos específicos por um período de tempo determinado por lei. A habilitação para a investidura e a posse no cargo eletivo – seja nas esferas do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo federal, estadual ou municipal – se efetiva pela vitória em uma eleição.” [2]
Para Sudfeld, o eleito é um verdadeiro procurador de quem os elege, sendo estes passíveis de controlar a atuação destes a partir da não renovação do mandato ou até mesmo com a destituição:
A República, tal como consagrada por nossa Constituição, implica fazer dos agentes públicos, que exercem diretamente o poder político, representantes diretos do povo, por ele escolhidos e renovados periodicamente. Os agentes passam a exercer mandato - palavra que, em sua origem no direito privado, significa contrato entre o titular de certo direito e alguém por ele investido temporariamente no poder de exercê-lo. Estabelece-se, destarte, relação de representação entre o povo (titular do poder) e os agentes públicos (exercentes do poder), atuando estes como mandatários, como verdadeiros procuradores daquele. A procuração política se outorga por tempo determinado, através de eleições, de modo a permitir que o dono do poder seja chamado periodicamente a renová-la ou cassá-la, transferindo-a a outrem. Mas a renovação dos mandatos não é o único controle do povo sobre os exercentes do poder. Estes podem ser responsabilizados (puni dos e destituídos de seus cargos) quando violam seus deveres, excedendo ou descumprindo os termos do mandato que receberam (SUNDFELD, 2009, p. 51).
A revogação de mandato no Brasil é um instrumento restrito apenas ao Poder Legislativo, como regra. A Justiça eleitoral pode cassar o mandato eletivo, mas apenas em casos de descumprimento da lei. Ações como AIME (Ação de impugnação de mandato eletivo) ou a AIJE (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) podem ser apresentadas por cidadão ou por alguns legitimados visando a não diplomação ou cassação do diploma do eleito.
Dessa forma, a revogação de mandato eletivo por conveniência ocorre no Poder Legislativo. Hoje, existe a previsão de revogação do mandato eletivo dos chefes do poder executivo, dos chefes do Ministério Público, Procurador-Geral, no âmbito federal, e Procurador Geral de Justiça, no âmbito estadual, Ministros de Estados e de Ministros do STF. Em regra, esse processo, “impeachment”, é julgado no Senado com a participação da Câmara dos Deputados em um juízo de admissibilidade.
Fato é que o Brasil não prevê a possibilidade de destituição dos agentes políticos de forma direta. Algumas democracias mais consolidadas preveem instrumentos como o “recall” e o “abberufungsrech” como será visto posteriormente.
No Brasil, o processo de impeachment ocorreu duas vezes, sendo estas após a redemocratização e sob a tutela da nova CF. O “impeachment” é um instrumento político de revogação que visa proteger a instituições, conforme leciona Gilmar Mendes:
O impeachment é um processo destinado acima de tudo a proteger as instituições de pessoas sem o necessário preparo para exercício de cargos. O objetivo principal não é punir, mas resguardar as instituições. Por isso, se diz que o impeachment tem natureza predominantemente política, e não jurídica (MENDES, 2020, n.p.)
O impeachment tem origem no direito inglês, mas teve grande elaboração e aprofundamento doutrinário nos Estados Unidos. No Brasil, existe a possibilidade da revogação do mandato desde a Constituição de 1824, sendo, desde então, prevista em todas as constituições subsequentes:
Entre nós, o impeachment já foi previsto pela Constituição de 1824 (arts. 133 e 134) para os ministros de Estado e não para autoridades públicas em geral, como é da tradição anglo-saxônia. Lei complementar, de 15 de outubro de 1827, regulou-o em termos penais. O desenvolvimento da responsabilidade política, entretanto, o conservou sem uso, fora casos esporádicos, em 1827, 1828, 1829, 1831, 1832 e 1834, os quais não chegaram à condenação. Todas as Constituições republicanas, sem exceção, o previram em termos próximos (v. 1891, art. 53; 1934, art. 57; 1937, art. 85; 1946, art. 89; 1967 com a redação da EC n. 1/69, art. 82; 1988, art. 85) (FERREIRA FILHO, 2012,sem pág.)
A CF trouxe a previsão do impedimento ao Presidente de República no caso de cometimento de crimes de responsabilidade. Os crimes de responsabilidade estão previstos no artigo 85 em um rol taxativo:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
A lei 1.079/50 regulamenta os crimes de responsabilidade que são determinantes para a definição do procedimento a ser adotado no rito do “impeachment”.
O procedimento para os crimes de responsabilidade está na Lei 1.079/1950, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados e no Regimento Interno do Senado Federal. Já os crimes comuns seguem as regras estabelecidas no Código de Processo Penal (CPP) e no Regimento Interno da Câmara dos Deputados. (PADILHA, 2020, n.p.)
O PR poderá ter seu julgamento realizado no Senado, em caso de crime de responsabilidade, ou no STF, em caso de crime comum.
O impedimento terá uma fase denominada como juízo de deliberação que será realizada pela Câmara dos Deputados, que deverá autorizar admissão da acusação contra o Presidente por 2/3 dos votos. A segunda fase será a do processo e julgamento:
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.
§ 3º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.
§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
A Câmara dos Deputados exerce a função de autorizar a abertura do processo contra o PR, seja nos crimes de responsabilidade ou comum: “Com relação a crimes comuns, o Presidente da República há de ser processado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Entretanto, esse processo depende de licença por parte da Câmara dos Deputados, que exige o voto favorável de dois terços dos seus membros.” (FERREIRA FILHO, 2012, n.p.)
Nos crimes de responsabilidade, após a admissibilidade da Câmara dos Deputados, o processo correrá no Senado Federal. Nessa fase, o Senado fará o juízo de pronúncia para levar o julgamento para o plenário. Há de se respeitar o contraditório e a ampla defesa. Durante esta fase, o presidente já estará afastado do exercício do cargo. O afastamento perderá validade caso não ocorra o julgamento dentro de 180 dias.
Após a pronúncia, ocorrerá o julgamento no Senado Federal que será presidido pelo presidente do STF:
No dia designado, comparecerá no Senado Federal o Presidente do Supremo Tribunal Federal, que presidirá o ato e realizará audiência, com colheita de depoimentos orais e julgamento. A votação será realizada por votação ostensiva nominal e será condenado o Presidente da República se houver quorum de 2/3 (dois terços) do Senado Federal. Neste caso, o Presidente será condenado com perda de cargo e/ou inabilitação por oito anos para o exercício de função pública (PADILHA, 2020, n.p.)
O impeachment é um julgamento político concentrado sob a tutela de outros atores políticos. Recentemente, teve-se, no Brasil, o impeachment da presidente Dilma Roussef. Todo o procedimento está, ainda hoje, sob suspeita, já que ocorreu por grande pressão de setores econômicos, da mídia e da própria população. O julgamento não foi técnico, sendo inclusive protegidos os direitos políticos da ex-presidente, o que contraria a Constituição.
O substituto de Dilma Roussef, Michel Temer, atingiu índices baixíssimos de popularidade e houve grande pressão para ser pautado seu processo de impeachment após a divulgação de uma gravação em que combinava propina com um empresário. No entanto, por possuir grande trânsito no Congresso Nacional e nos Tribunais Superiores, nunca foi cogitada essa possibilidade na Câmara dos Deputados.
Fato semelhante ocorre hoje com o atual presidente Jair Bolsonaro. Existem diversos pedidos de impeachment que sequer são apreciados pelo presidente da Câmara que se baseia em um entendimento do regimento interno da casa para não dar continuidade.
Segundo pesquisas recentes, mais da metade da população deseja o impeachment do presidente: “Segundo o levantamento, 56% dos entrevistados se posicionaram a favor do processo, que depende de iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para ser iniciado. Outros 41% são contrários ao impeachment, e 3% não souberam opinar.” [3]
Dessa forma, nota-se que não é dado a população a possibilidade de revogar o mandato dos políticos que foram eleitos. Nesse sentido, deve-se considerar a possibilidade de implementação de novos instrumentos de revogação de mandato direto pelo povo.
Com isso, o “recall” surge como uma solução para a revogação do mandato eletivo dos representantes. O “recall” é um instrumento utilizado em algumas democracias, dentre elas, os Estados Unidos. De acordo com a atuação do agente político, pode-se, por um número específico de eleitores, revogar o seu mandato representativo, caso não haja de acordo com suas propostas ou o interesse público. José Afonso da Silva (2007) chama o “recall” de revocação popular.
Para Maria Benedita Urbano:
O direito de revocação popular consiste num meio ou procedimento ao dispor de um certo número ou percentagem de cidadãos eleitores, o qual tem como finalidade permitir-lhes requerer a destituição de um ou mais dos seus representantes, hajam eles sido eleitos ou nomeados (a lógica dessa figura compagina-se bem melhor, porém, com a ideia de eleição: se o povo tem o poder de eleger os seus representantes, deverá também deter
o poder de os destituir quando estes frustrem as expectativas nele depositadas, antes de expirar o prazo relativo ao cargo que estão a exercer. A eventual revocação terá lugar por via de uma eleição em que o povo é questionado sobre se pretende manter ou não em funções o representante visado. Em poucas palavras, trata-se de uma substituição antecipada de representantes. [4]
Para Ávila, o recall pode ser
entendido como mecanismo de controle político, diretamente relacionado à responsabilidade do representante e também como forma de correção dos problemas da representação política. Além disso, trata-se também de um procedimento eleitoral, dividida geralmente em duas fases distintas. A primeira se assemelha muito ao procedimento de iniciativa legislativa popular, uma vez que, para dar início ao mecanismo do recall, é necessário que uma parcela do eleitorado confirme sua intenção de instaurar o procedimento e de levar a questão da manutenção ou não do agente público à votação popular. Na segunda fase os eleitores decidem, por meio de votação, sobre a destituição e substituição do agente público. (ÁVILA, 2009, p.55 )
De forma geral, o recall é um instrumento que permite ao povo avaliar a atuação dos seus representantes, seja de forma política, ética, moral, jurídica ou, até mesmo, de conveniência, e revogar seus mandatos quando não houver compatibilidade com os anseios da população.
No Brasil, não ocorreu qualquer previsão de destituição do mandato eletivo na Constituição de 1988. Entretanto Ávila cita que durante a Assembleia Constituinte discutiu-se a possibilidade de constar o voto destituinte na CF:
Segundo Michel Temer, durante a Assembléia Constituinte foi apresentada uma proposta de emenda com o chamado voto destituinte, permitindo aos eleitores (0,5% do eleitorado de cada Município, Estado ou da União) encaminhar petição fundamentada às Mesas das Casas Legislativas, solicitando a destituição do parlamentar.( ÁVILA, 2009, p. 107)
Todavia, o voto destituinte não traz a prerrogativa diretamente a população, já que esta teria que encaminhar as Casas Legislativas o pedido para que estas analisassem.
Para Silva (2016), o que temos em verdade é o princípio do mandato irrevogável. No entanto, algumas propostas de emenda à Constituição, que visam a implementação do recall, já tramitaram pelo Congresso Nacional e por vezes voltam ao debate. Todavia, o que se percebe é uma grande resistência pelos parlamentares.
Outro instrumento de participação popular, originado na Alemanha e aplicado, hoje, em alguns cantões suíços, é o “abberufungsrecht”. Nesse instrumento, diferentemente do “recall”, há uma revogação coletiva de toda uma casa legislativa. A população teria o controle da atuação do parlamentar, não sendo satisfatória, haveria uma votação e, caso a aprovação seja da minoria, o então representante seria obrigado a renunciar.
Paulo Bonavides explica o abberufungsrecht:
O Abberufungsrecht é a forma de revogação coletiva. Aqui não se trata, como no recall, de cassar o mandato de indivíduo, mas o de toda uma assembleia. Requeria a dissolução, por determinada parcela do corpo eleitora, a assembleia só terá findo seu mandato após a votação da qual resulte patente pela participação de apreciável percentagem constitucional de eleitores que o corpo legislativo decaiu realmente da confiança popular. (BONAVIDES, 2000, n.p)
O autor ainda explica as diferenças quanto a revogabilidade do recall e do abberufungsrecht:
Com o recall revogar-se-ia o mandato do representante, antes de expirar o prazo legal de seus poderes, desde que determinada parcela de eleitores tomasse a iniciativa a esse respeito, daí o resultando eventualmente a cessação ou a renovação do mandato que se questionou:
Com o Abberufungsrecht, que a natureza do mandato representativo, igualmente repele, chegar-se-a ia ao mesmo resultado, ocorrendo desta feita não a revogação individual, mas a revogação coletiva. Extinto ou renovado ficaria o mandato de uma assembleia e não somente o de um representante mediante a aplicação desse institutio do regime representativo semidireto. (BONAVIDES, 2000, n.p)
Constata-se que neste instrumento busca-se uma confirmação do eleito como representante do povo. Caso não haja sua destituição, não há que se falar em uma reeleição, mas sim em uma confirmação de que a população ainda o quer como representante. Seria, neste caso, parecido com a moção de confiança nos parlamentos europeus, entretanto, no abberufungsrecht, esse voto de confiança seria dado pelo próprio povo.
Este instrumento já foi deliberado no Congresso Nacional e, assim como o recall, sofreu forte resistência, não sendo permitida pelos parlamentares a emenda a constituição que possibilitaria a aplicação de revogação coletiva pela população.
Como visto anteriormente, alguns instrumentos já são adotados em nossa democracia, outros estão aos poucos sendo introduzidos e alguns deveriam ser aprovados. Contudo, todos se aproximam quando se pensa em sua aplicação. De fato, hoje, poucos instrumentos fazem parte do cotidiano da população brasileiro e isso deve mudar.
O sistema de controle popular da atuação política atualmente no Brasil consiste na prestação de contas. Com isso, deve-se pensar no controle de forma hodierna com a aplicabilidade da accountability no setor público.