A Lei Complementar nº 213/2025, que criou a atividade de Proteção Patrimonial Mutualista, foi sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial da União em 16 de janeiro de 2025. A norma é originária do Projeto de Lei Complementar nº 519/2018 do Deputado Federal Lucas Vergílio, que tramitou no Senado como Projeto de Lei Complementar nº 143/2024.
Embora muito se fale na “regulamentação da Proteção Veicular”, esse conceito sequer é citado no projeto. Na realidade, o PLP 519/2018 estabeleceu uma nova atividade regulada no ordenamento jurídico brasileiro, cujas características contrastam significativamente com os contornos jurídicos e conceituais da Proteção Veicular. Trata-se de um arranjo empresarial e mercantil que incorpora várias características dos seguros privados, afastando-se completamente das atividades associativas típicas e dos princípios mutualistas, embora a própria lei afirme que não se trata de uma modalidade de seguro.
1. O Veto Presidencial
Ao sancionar a nova lei, o Presidente vetou, por inconstitucionalidade, o artigo 11, que previa a criação de 26 (vinte e seis) Cargos Comissionados Executivos (CCE) e Funções Comissionadas Executivas (FCE) na estrutura da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), com vigência já a partir de 1º de janeiro de 2025.
Segundo a justificativa do veto, essa criação de cargos extrapolaria os limites constitucionais, pois só poderia ser proposta pelo próprio Poder Executivo, e representaria um custo injustificado estimado em quase R$ 2 milhões por ano.
2. A Repercussão no Mercado
A sanção da lei foi amplamente comemorada pelos principais portais e sites do mercado de seguros, assim como por corretores de seguros. O presidente da Federação Nacional dos Corretores de Seguros (FENACOR), Armando Vergilio, celebrou a aprovação da norma, afirmando:
“Essa é a principal notícia de todos os tempos para o mercado.”
“Isso amplia o mercado, que poderá alcançar o seu lugar comparado com a própria economia. Esse tipo de ação vai fazer com que o mercado possa realmente se desenvolver.”
No próprio site da SUSEP, a sanção da lei foi anunciada como um grande avanço regulatório, destacando que:
“A nova legislação estabelece um marco regulatório para cooperativas de seguros e associações de proteção patrimonial, inserindo esses novos atores no Sistema Nacional de Seguros Privados e ampliando o alcance de supervisão da Susep.”
Claramente, a nova legislação foi bem recebida pelo setor de seguros, que a considerou “a principal notícia de todos os tempos”, principalmente porque fortalece os poderes regulatórios da SUSEP e amplia seu alcance sobre a nova atividade. O Plano de Regulação da SUSEP para 2025, inclusive, já prevê a implementação das diretrizes estabelecidas pela lei complementar.
2.1. A Reação do Mercado de Proteção Veicular
A mesma euforia vista no mercado de seguros também foi compartilhada pelo setor de Proteção Veicular até meados de 2024, quando o discurso predominante girava em torno da regulamentação da atividade, sem que o texto da proposta fosse conhecido.
Entretanto, com a publicação do teor do PLP 143/2024 após sua aprovação na Câmara dos Deputados, o mercado de Proteção Veicular passou a questionar e rejeitar massivamente o projeto, argumentando que o texto não atenderia às necessidades reais do setor e da sociedade. A mudança de postura revelou um descompasso entre as promessas de regulamentação e a realidade das exigências impostas pela nova legislação.
3. A Vigência da Lei Complementar
O artigo 13 da Lei Complementar estabelece um cronograma escalonado para a entrada em vigor de suas disposições, dividindo seus efeitos em três momentos distintos:
Art. 13. Esta Lei Complementar entra em vigor:
I – quanto ao art. 3º, na parte em que altera o Capítulo X do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), após decorrido 1 (um) ano de sua publicação oficial;
II – quanto ao art. 3º, na parte em que acresce o § 4º ao art. 88-E do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), após decorridos 4 (quatro) anos de sua publicação oficial;
III – quanto aos demais dispositivos, na data de sua publicação.
A maior parte da lei entrou em vigor imediatamente com sua publicação no Diário Oficial da União, o que significa que suas disposições já possuem aplicabilidade imediata. Contudo, a lei prevê prazos diferenciados para dispositivos específicos, visando permitir uma transição gradual para as novas regras.
Os trechos que alteraram o Capítulo “X” do Decreto-Lei nº 73/1966, que tratam do novo regime sancionador (infrações e penalidades, rito do processo administrativo, medidas acautelatórias e termo de compromisso) entrarão em vigor somente após 1 (um) ano da publicação da lei, oferecendo um prazo adicional para todos se adequarem às mudanças estruturais.
Já o § 4º do art. 88-E, que trata especificamente da substituição do regime de cadastro pelo de credenciamento na SUSEP, terá vigência apenas após 4 (quatro) anos da publicação da lei no DOU.
O cronograma de entrada em vigor escalonado reflete uma tentativa de equilibrar a necessidade de adaptação do setor às novas regulamentações, com a urgência de implementar mudanças. No entanto, seus impactos variam conforme o perfil das entidades afetadas. O prazo mais extenso para vigência é benéfico por um lado, pois permite que as associações e cooperativas que deseja aderir à regulamentação ajustem suas práticas e estruturas de forma mais planejada e sustentável, o que pode beneficiar sobretudo as entidades menores, que precisam de mais tempo para se adaptar às exigências regulatórias.
Por outro lado o prazo traz riscos por criar incertezas no mercado durante o período de transição, com entidades operando em um ambiente de regras parcialmente aplicáveis, gerando interpretações divergentes ou até conflitos jurídicos.
4. As Divergências entre o PLP e a Lei Complementar
O texto sancionado pelo Presidente da República foi publicado com centenas de alterações redacionais e corretivas, que contudo, não promovem mudanças substanciais no contexto jurídico.
A principal modificação foi, sem dúvidas, o veto à criação de 26 (vinte e seis) novos cargos na SUSEP. Esse veto ocorreu devido à clara inconstitucionalidade da proposta, pois a criação de cargos comissionados só pode ser feita por iniciativa do próprio Poder Executivo, conforme entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF).
Contudo, uma outra alteração significativa merece destaque: a inclusão do § 3º no art. 88-D, que prevê a autorização para operações em regime especial para grupos de transporte de cargas. O dispositivo traz a seguinte disposição:
“A operação de proteção patrimonial mutualista destinada exclusivamente ao transporte de carga prevista neste Capítulo deverá ter regulamentação específica pelo CNSP.”
A inclusão desse parágrafo estabelece um regime especial, determinando que sua regulamentação será feita de forma distinta e específica pelo CNSP, fora das regras impostas às demais categorias. Essa mudança é altamente relevante, pois visa preservar a natureza mutualista e associativa das entidades de socorro mútuo no setor de transporte de cargas, ao passo que institui uma diferenciação normativa em relação às demais entidades aderentes à regulamentação.
Além disso, essa diferenciação abre caminho para a busca por isonomia por parte de outras categorias que compartilham características semelhantes, e portanto merecem um tratamento isonômico por parte do Estado, conforme previsto na Constituição Federal. Esse tema será mais aprofundado mais a seguir, em outro artigo jurídico a ser publicado nas próximas semanas, com uma análise detalhada dos impactos que a criação deste regime especial pode causar, e sobretudo, no direito à isonomia do qual gozam outras categorias afetadas pela lei.
5. O Cadastramento na SUSEP
Após a sanção da Lei Complementar nº 213/2025, surgiram inúmeros questionamentos sobre a obrigatoriedade de cadastramento imediato na SUSEP. No entanto, o cadastramento na SUSEP somente é obrigatório para as entidades que desejam aderir à regulamentação e migrar sua operação para o modelo de Proteção Patrimonial Mutualista, modalidade criada pela nova legislação.
A norma prevê, em seu artigo 9º, um prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que as entidades de Proteção Veicular optem entre se cadastrar na SUSEP, ou cessar suas atividades:
Art. 9º As associações e as demais entidades que, na data de publicação desta Lei Complementar, estiverem realizando atividades direcionadas à proteção contra riscos patrimoniais, pessoais ou de qualquer outra natureza, socorros mútuos e assemelhados, sem a autorização da Susep, deverão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da publicação desta Lei Complementar:
I – promover a alteração de seu estatuto social ou contrato social para atender ao disposto no inciso I do § 1º do art. 88-E do Decreto-Lei no 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), e efetuar cadastramento específico perante a Susep; ou
II – cessar as atividades referidas no caput deste artigo.
§ 1º Para se cadastrar perante a Susep, as associações e demais entidades deverão firmar termo específico declarando que irão adequar-se à legislação pertinente, nos prazos e termos a serem definidos pelo CNSP.
Nota-se que a lei impõe um prazo que, em tese, já se encontra em curso. Contudo, como o CNSP ainda não emitiu a regulamentação da lei, e nem se manifestou firmando alguma data para que a publique. Portanto, o cadastramento na SUSEP éum verdadeiro “casamento às cegas”, visto que as entidades estariam firmando um compromisso, sem conhecimento das regras e prazos a serem atendidos. Em caso de discordância das condições, caberia somente a cessação das atividades, conforme previsto no § 9º do art. 9º, abaixo transcrito:
§ 9º As associações e as demais entidades referidas nesta Lei Complementar que cumprirem o cadastramento conforme disposto no § 1º deste artigo, e após conhecimento da regulamentação de que trata o inciso II do § 1º do art. 88-E do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), a ser editada pelo CNSP, poderão optar pela cessação das suas atividades no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data de publicação dessa regulamentação, sem prejuízo do disposto nos §§ 2º a 5º deste artigo.
Embora o mais coerente fosse o início do prazo para cadastramento após a publicação da regulamentação pelo CNSP, não é o que dispõe a Lei Complementar, o que coloca os interessados na adesão ao novo modelo em uma situação de extremo risco. A situação poderia, contudo, ser corrigida pelo CNSP no momento da regulamentação, sendo determinada a contagem do prazo a partir da regulamentação, mas não há qualquer indicativo ou garantia de que isso ocorra.
Diante da interpretação literal da norma, podemos indicar os seguintes impactos em relação ao cadastramento:
a) O cadastramento é imediato
A lei estabelece o prazo de 180 (cento e oitenta) dias desde a publicação da lei, já estando em curso. Contudo, o cadastramento ainda não é possível, pois a Lei Complementar não detalha o processo de cadastramento, nem especifica os documentos e requisitos necessários. A norma delega essa atribuição ao CNSP e à própria SUSEP, que deverão criar o procedimento em breve.
b) O cadastramento implica na aceitação integral das regras
O § 1º do artigo 9º estabelece que o cadastramento na SUSEP exige a assinatura de um termo, no qual a entidade declara que irá se adequar integralmente às normas, antes que as mesmas sejam publicadas e conhecidas, o que representa um risco inaceitável.
c) Ausência de regulamentação
O cadastramento é obrigatório para os interessados em aderir, mesmo com a ausência da regulamentação. Caso a associação discorde dos termos impostos após o cadastramento, a única opção será o encerramento suas atividades, sem qualquer garantia de que seus passivos anteriores serão "anistiados".
d) Incerteza sobre os benefícios da "anistia"
Mesmo com o cadastro e o aceite das regras após serem publicadas, a lei não garante a ampla anistia dos problemas jurídicos preexistentes como prometido. Não existe o “perdão automático” de pendências tributárias, administrativas ou judiciais relacionadas às entidades e seus diretores.
Em conclusão, o processo de cadastramento na SUSEP é um desastre, levanta suspeitas sobre a boa fé de seus autores em relação aos aderentes, e cria um ambiente de extrema incerteza e risco, mesmo aos interessados em aderir ao modelo regulado. Ademais, vale dizer que não se trata de algo obrigatório a todo o mercado, mas apenas aos que optarem por aderir à regulamentação. Entretanto, essa decisão não pode ser tomada de forma precipitada, pois o cadastramento implica compromisso definitivo com prazos e regras ainda desconhecidos, cujos detalhes sequer foram publicados pelo CNSP e pela SUSEP.
6. A Regulamentação da Lei pelo CNSP
A Lei prevê que o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) irá emitir a regulamentação necessária para a implementação da nova legislação. Contudo, o órgão não se manifestou sobre o prazo em que publicará as regras, deixando todo o mercado em grande expectativa, pois muitos aspectos operacionais só poderão ser aplicados após a publicação dessas normas complementares, o que gera uma série de desafios e incertezas para as entidades interessadas no novo modelo. A seguir, destacamos os principais impactos da dependência da regulamentação do CNSP:
6.1. Incertezas nos detalhes operacionais
Até que o CNSP publique a regulamentação, as associações e cooperativas permanecem em uma posição de espera, sem segurança para realizar o cadastramento e sem clareza sobre aspectos essenciais da adequação ao novo modelo regulatório, tais como:
Critérios técnicos e documentais para cadastramento e operação;
Formato exato dos fundos de reserva obrigatórios;
Exigências contábeis, administrativas e de governança.
Essa ausência de informações concretas dificulta o planejamento estratégico das entidades, que precisam em um prazo cada vez mais curto, aguardar diretrizes claras para tomar decisões seguras.
6.2. Planejamento provisório
As entidades podem iniciar ajustes gerais, como diagnóstico e revisão jurídica para garantir conformidade com os princípios mutualistas, e análises financeiras para identificar os impactos da regulamentação.
No entanto, qualquer decisão definitiva deve aguardar a análise da regulamentação do CNSP, pois somente após sua publicação será possível avaliar a viabilidade real da adesão ao novo modelo.
6.3. Pressão sobre o prazo de cadastro
O prazo de 180 (cento e oitenta) dias para cadastramento, em tese, já está em curso. Contudo, sem a publicação das regras pelo CNSP, trata-se de um verdadeiro “salto de fé”. Além disso, a demora na emissão das normas pelo CNSP poderá comprimir significativamente o tempo disponível para adequação, exigindo mudanças apressadas e possivelmente prejudiciais para as entidades.
7. Sugestões
Com base neste quadro de incertezas criado pela Lei Complementar, elaboramos algumas sugestões para que as entidades aproveitem adequadamente o tempo disponível para aplicabilidade total das disposições legais.
7.1. Participação Ativa
As associações e cooperativas devem acompanhar e participar ativamente de consultas públicas, audiências e discussões promovidas pelo CNSP e pela SUSEP. Ações recomendadas:
Cobrança da publicação das regras pelo CNSP, e exigência da extensão do prazo de cadastramento, que deveria ter início somente a partir da referida publicação;
Monitoramento constante das movimentações do CNSP;
Mobilização do setor para influenciar as regulamentações;
Participação em reuniões e debates sobre o tema, tanto em órgãos públicos quanto em entidades privadas representativas.
7.2. Acompanhamento Jurídico Especializado
O acompanhamento de advogados especializados no setor será essencial para:
Interpretar rapidamente cada nova norma publicada;
Tomar decisões estratégicas de forma segura;
Mitigar riscos e garantir segurança jurídica no processo de adequação.
Se a adesão ao novo modelo for considerada uma opção, o acompanhamento jurídico também será crucial para orientar a adaptação ao modelo da SUSEP e garantir que as exigências sejam cumpridas sem comprometer a sustentabilidade da entidade.
7.3. Gestão de Riscos
Durante o período de transição, as entidades devem minimizar riscos operacionais e aumentar a vigilância com as boas práticas de governança. Medidas recomendadas:
Reforço dos mecanismos de prestação de contas;
Auditorias internas periódicas;
Ajuste dos modelos contratuais para fortalecer a identidade mutualista.
Essas medidas são essenciais tanto para entidades que cogitam aderir à regulamentação quanto para aquelas que pretendem permanecer no modelo atual.
7.4. Criação e um Cronograma
Independentemente da decisão de aderir ao novo modelo ou permanecer na atual estrutura, é fundamental criar um cronograma de ações para os próximos semestres, garantindo que as entidades se antecipem às necessidades futuras. Sugestões de ações organizadas no tempo:
Curto prazo (0-6 meses): Acompanhar a regulamentação do CNSP e reforçar a governança interna;
Médio prazo (6-12 meses): Ajustar processos internos com base nas diretrizes publicadas;
Longo prazo (1-4 anos): Definir a estratégia final para adesão ou continuidade do modelo mutualista independente.
Considerando a possibilidade de opção pela adesão à regulamentação por parte de alguns dos nossos clientes, já preparamos um cronograma adequado, que será disponibilizado em breve.
Concluindo, podemos afirmar que a falta da regulamentação do CNSP introduz incertezas consideráveis para as associações e cooperativas interessadas na mudança para o novo regime regulado, tornando essencial que as entidades aproveitem esse tempo indefinido para fortalecer sua estrutura e definir sua estratégia de longo prazo.
Para quem deseja aderir à regulamentação, o momento é de preparação e análise de viabilidade. Para quem pretende permanecer fora do modelo regulado, o período pode ser usado para fortalecer sua identidade mutualista e buscar garantias jurídicas contra imposições indevidas. A chave para enfrentar esse cenário é a antecipação. Quanto mais cedo as entidades se prepararem, maior será sua capacidade de se adaptar aos desafios impostos pela nova legislação.