8. As Promessas de Anistia
Durante a tramitação do projeto, os articuladores da proposta divulgaram amplamente que as entidades que aderissem à regulamentação teriam todos os seus problemas e pendências "anistiados" pela SUSEP. Essa promessa incluiu:
A baixa de processos administrativos na SUSEP;
A suspensão de ações civis públicas contra associações e dirigentes;
A anistia de multas aplicadas pela SUSEP;
A extinção da punibilidade de eventuais crimes financeiros.
A princípio, esses benefícios foram anunciados como uma "trégua" para entidades que aceitassem a incerteza de optar por regras ainda desconhecidas, evitando decisões judiciais que prejudiquem ou inviabilizem sua operação enquanto o cadastramento e a adequação estão em curso.
Contudo, após uma análise minuciosa do conteúdo da lei, a constatação foi de que a vinculação desses benefícios ao cadastramento na SUSEP foi claramente uma estratégia para atrair associações e cooperativas à regulamentação, sem que exista a garantia de qualquer benefício, indicando que o cadastramento pode não justificar os riscos envolvidos, conforme exposto a seguir.
8.1. Os Processos Administrativos
A suspensão dos processos administrativos sancionadores instaurados pela SUSEP está prevista no § 2º do art. 9º da Lei Complementar, nos seguintes termos:
§ 2º Os processos administrativos sancionadores instaurados pela Susep até a data de publicação desta Lei Complementar em desfavor das associações e das demais entidades a que se refere o caput deste artigo, ou de seus dirigentes e gestores, por infração ao art. 113. do Decreto-Lei no 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado):
I – ficarão suspensos a partir da data de cadastramento da associação ou das demais entidades perante a Susep, independentemente da fase em que se encontrem, pelo prazo máximo de até 3 (três) anos, contado da data de publicação da regulamentação de que trata o inciso II do § 1º do art. 88-E do Decreto-Lei no 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), a ser editada pelo CNSP;
II – serão arquivados, sem análise do mérito e aplicação de penalidade, desde que a associação ou as demais entidades comprovem perante a Susep a regularização da sua atuação ou a cessação das atividades referidas no caput deste artigo, nos termos e nos prazos desta Lei Complementar e da regulamentação do CNSP;
III – serão retomados caso a associação e as demais entidades não comprovem perante a Susep a regularização da sua atuação ou a cessação das atividades referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei Complementar e da regulamentação do CNSP, ao final do prazo fixado no inciso I deste parágrafo.
Racionalizando o texto acima, podemos trazer as seguintes constatações:
O benefício se aplica apenas a quem se cadastrar na SUSEP;
Não há anistia imediata: a suspensão é temporária (até 3 anos) e condicionada ao cumprimento de regras futuras;
Se a entidade não se adequar ou cessar as atividades, os processos serão retomados, sem prejuízo de novas penalidades.
Vale lembrar que com o cadastramento, a SUSEP terá acesso a todos os dados e informações da entidade e de seus dirigentes, o que pode resultar em novas autuações, penalidades e ações.
8.2. As Multas Aplicadas pela SUSEP
Em relação às multas aplicadas pela SUSEP, a realidade não é muito diferente dos processos administrativos. A suspensão das multas é prevista no § 4º do art. 9º, que trata sobre o cadastramento na SUSEP, nos termos abaixo:
§ 4º As multas pecuniárias aplicadas e ainda não pagas referentes aos processos administrativos sancionadores de que tratam os §§ 2º e 3º deste artigo que já tenham transitado em julgado:
I – terão a exigibilidade suspensa a partir do cadastramento da associação e das demais entidades perante a Susep;
II – não serão mais exigíveis caso a associação e as demais entidades comprovem a regularização de sua situação ou a cessação das atividades mencionadas no caput deste artigo, nos termos e nos prazos desta Lei Complementar e da regulamentação do CNSP;
III – terão a exigibilidade retomada caso a entidade não comprove a regularização da sua atuação no prazo de que trata o inciso I do § 2º deste artigo, nos termos e nas condições fixados nesta Lei Complementar e regulamentados pelo CNSP.
Do texto acima, podemos constatar:
O benefício não se aplica a multas ainda em fase de julgamento – apenas àquelas já transitadas em julgado e ainda não pagas;
O simples cadastramento não extingue a multa – ele apenas suspende sua exigibilidade temporariamente;
Caso a entidade não cumpra as exigências futuras ou cesse as atividades, as multas voltam a ser cobradas;
Assim como nos processos administrativos, a SUSEP poderá impor novas penalidades, diante da análise dos documentos recebidos no cadastramento.
Portanto, nota-se que assim como no caso anterior, é possível que os benefícios não justifiquem os riscos do cadastramento.
8.3. As Ações Civis Públicas
No caso das ações civis públicas da SUSEP, a regra é prevista no § 5º do art. 9º, que trata sobre o cadastramento na SUSEP, e a realidade imposta pela Lei Complementar é um pouco mais confusa. Vejamos abaixo o que dispõe o § 5º do art. 9º:
§ 5º As ações civis ajuizadas pela Procuradoria-Geral Federal como representante da Susep com base no art. 113. do Decreto-Lei no 73, de 21 de novembro de 1966 (Lei do Seguro Privado), até a data de publicação desta Lei Complementar em desfavor das associações e das demais entidades a que se refere o caput deste artigo, ou de seus dirigentes e gestores:
I – ficarão suspensas a partir da data de publicação desta Lei Complementar, independentemente da fase em que se encontrem, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias;
II – serão retomadas ao final do prazo referido no inciso I deste parágrafo caso a associação e as demais entidades não procedam ao cadastramento perante a Susep nos termos do caput deste artigo;
III – permanecerão suspensas pelo prazo de até 3 (três) anos, contado da data de cadastramento da associação ou das demais entidades perante a Susep, na hipótese prevista no inciso I do § 2º deste artigo, independentemente da fase em que se encontrem;
IV – serão extintas, sem resolução do mérito, caso a entidade comprove a regularização da sua atuação ou a cessação das atividades referidas no caput deste artigo, nos termos desta Lei Complementar e da regulamentação a ser editada pelo CNSP;
V – serão retomadas ao final do prazo referido no inciso III deste parágrafo caso a entidade não proceda à regularização de sua atuação nos termos desta Lei Complementar.
Abaixo, trazemos nossa interpretação e riscos identificados no texto legal:
A suspensão inicial das ações civis públicas ocorre independentemente do cadastramento, e apenas por 180 (cento e oitenta) dias;
Ocorrendo o cadastramento, a suspensão passa a ser de 3 (três) anos;
A única forma de extinguir definitivamente a ação é cumprindo integralmente as exigências da SUSEP (ainda desconhecidas), ou cessando as atividades;
Se a entidade não acatar e cumprir as regras, ou cessar as atividades, as ações civis serão retomadas.
Além disso, há uma contradição jurídica no texto que pode gerar divergências interpretativas. A regra de suspensão proposta nos incisos I a III do artigo 9º (independente do cadastramento) não está alinhada ao caput, que trata do cadastramento. Considerando que os parágrafos não podem ser interpretados isoladamente do caput, esta contradição pode gerar discussões judiciais sobre sua validade e aplicação.
8.4. As Ações Penais
No que tange aos efeitos criminais das investidas da SUSEP face às entidades de Proteção Veicular, os efeitos da lei são ainda mais discretos, conforme previsto no § 7º do art. 9º, abaixo transcrito:
§ 7º Extinguir-se-á a punibilidade dos dirigentes e dos gestores das associações e das demais entidades a que se refere o caput deste artigo em relação ao crime previsto no art. 16. da Lei no 7.492, de 16 de junho de 1986 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro), no caso de comprovada regularização da atuação da entidade nos termos desta Lei Complementar.
Do texto acima, extraímos as seguintes conclusões:
A extinção de punibilidade só se aplicaria a entidades que se cadastrarem e cumprirem todas as exigências, não sendo citada sequer a possibilidade de cessação das atividades, como nos casos anteriores;
A extinção de punibilidade se aplica exclusivamente ao crime do art. 16. da Lei nº 7.492/1986, não sendo abrangidas outras infrações penais;
O texto contradiz o § 1º do art. 121-E, que estabelece que o cumprimento do termo de compromisso gera efeitos apenas no âmbito administrativo, não garantindo a extinção de processos criminais.
Importante ressaltar ainda que essa previsão terá um impacto irrelevante, pois as ações penais movidas com base no art. 16. da Lei nº 7.492/86 contra diretores de associações de Proteção Veicular geralmente são encerradas sem condenação.
Concluindo, embora a promessa de anistia tenha sido amplamente divulgada, os benefícios oferecidos são limitados e repletos de condicionantes. Diante disso, as associações devem avaliar com extrema cautela os riscos envolvidos no cadastramento na SUSEP, pois a adesão ao novo modelo representa mais incertezas e riscos, do que benefícios concretos.
9. Entidades Encerradas Antes da Vigência da Lei
Um ponto de grande interesse na Lei Complementar nº 213/2025 diz respeito às entidades que encerraram suas atividades antes da publicação da lei, em decorrência da repressão regulatória imposta pela SUSEP.
De acordo com o § 8º do art. 9º, essas entidades receberão o mesmo tratamento jurídico das que vierem a encerrar suas atividades dentro do prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação da lei. Vejamos o que diz o § 8º do art. 9º, abaixo transcrito:
§ 8º As associações e as demais entidades que tenham cessado as suas atividades antes da publicação desta Lei Complementar em decorrência de processos administrativos sancionadores, bem como da aplicação das multas e ações civis de que tratam os §§ 2º a 5º deste artigo, terão o mesmo tratamento previsto para as associações e as demais entidades que cessarem as atividades referidas no caput deste artigo no prazo nele previsto.
Essa previsão legal pode representar um alívio para entidades que foram compelidas a encerrar suas operações devido à atuação da SUSEP. De acordo com o dispositivo, essas entidades terão os mesmos benefícios aplicáveis às que encerrarem suas atividades dentro do prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação da lei. Isso significa que:
Os processos administrativos sancionadores em curso contra essas entidades deverão ser arquivados, sem análise de mérito e sem aplicação de penalidades (conforme inciso II do § 2º);
As multas pecuniárias aplicadas e ainda não pagas não serão mais exigíveis, conforme inciso II do § 4º;
As ações civis públicas movidas contra essas entidades deverão ser extintas, sem resolução do mérito, nos termos do inciso IV do § 5º.
Para entidades que já haviam encerrado suas atividades, esse dispositivo pode garantir a extinção de passivos administrativos e judiciais, eliminando riscos de cobranças ou penalidades futuras. No entanto, a interpretação e aplicação prática desse benefício ainda dependerão da regulamentação complementar pelo CNSP e da postura da SUSEP, o que exige acompanhamento atento das futuras normas para evitar entraves burocráticos na efetivação dos arquivamentos e extinções previstas na lei.
10. As Administradoras
Um dos pontos mais controversos da Lei Complementar nº 213/2025 é a questão das administradoras. Enquanto a Proteção Veicular sempre operou sob um modelo essencialmente mutualista e sem fins lucrativos, a Proteção Patrimonial Mutualista, criada pela nova lei, transforma a operação em uma estrutura essencialmente mercantil, empresarial e regulada pela SUSEP (embora não seja securitária).
Nesse novo modelo, as administradoras assumem um papel central na operação, enquanto as associações passam a ter um papel secundário, meramente “decorativo”. O escopo e as atribuições dessas administradoras estão previstos nos dispositivos abaixo da Lei Complementar:
Seção III - Da Administradora de Operações de Proteção Patrimonial Mutualista
Art. 88-H. A administração das operações de proteção patrimonial mutualista é privativa de administradora constituída sob a forma de sociedade por ações que tenha por objeto social exclusivo gerir a operação de proteção patrimonial mutualista e que seja previamente autorizada a funcionar pela Susep.
(...)
§ 3º O CNSP estabelecerá normas com o objetivo de assegurar a solidez, a liquidez e o regular funcionamento das administradoras, as quais deverão ser compatíveis e proporcionais aos riscos decorrentes da gestão das operações de proteção patrimonial mutualista.
(...)
Art. 88-L. O CNSP estabelecerá as condições para a emissão da autorização para funcionamento da administradora de operações de proteção patrimonial mutualista.
Parágrafo único. A posse dos administradores e conselheiros fiscais das administradoras é sujeita à prévia autorização da Susep, podendo o CNSP dispor sobre hipóteses em que essa autorização será dispensável.
O § 3º do art. 88-H estabelece que as regras de funcionamento das administradoras ainda não foram definidas, e que caberá ao CNSP editar normas complementares. Já o art. 88-L determina que o CNSP criará as normas para autorização das administradoras, deixando evidente que nenhuma administradora pode ser constituída ou operar até que essas normas sejam publicadas.
A Lei Complementar nº 213/2025 transfere toda a gestão das operações de Proteção Patrimonial Mutualista para as administradoras, conforme disposto no seguinte trecho:
§ 1º A administração das operações de proteção patrimonial mutualista compreende as seguintes atividades, sem prejuízo de outras que vierem a ser estabelecidas pelo CNSP:
I – processamento de adesões ao contrato de participação, bem como de renovações, de alterações, de repactuações e de cancelamentos;
II – arquivamento de dados cadastrais e de documentação de participantes, de beneficiários e, se for o caso, de corretores de seguros, de demais intermediários e seus prepostos;
III – cálculo, cobrança e recolhimento do rateio mutualista de despesas e demais valores previstos no art. 88-F deste Decreto-Lei;
IV – regulação e liquidação de eventos cobertos;
V – pagamento de indenizações e adimplemento de outras obrigações relacionadas à garantia de eventos cobertos.
Da análise dos trechos acima, podemos concluir:
As administradoras assumem todas as funções relevantes, que no modelo de Proteção Veicular, pertencem às associações;
As associações aderentes deixam de gerir sua própria operação e passam a depender de empresas terceiras para continuar existindo no novo modelo regulado;
A única forma para as aderentes manterem algum nível de controle seria a criação da própria administradora pela associação, evitando subordinação a terceiros e preservando parte de sua autonomia.
Contudo, a possibilidade de criação de administradoras já foi limitada pela SUSEP antes mesmo da regulamentação pelo CNSP. Segundo o Deputado Federal Reginaldo Lopes, em emenda apresentada ao PLP solicitando a criação de novos cargos na SUSEP:
“A Susep estima que, pelo menos, 20 administradoras de planos de proteção patrimonial mutualista e 5 sociedades cooperativas de seguros deverão ser autorizadas no primeiro ano após a entrada em vigor da Lei Complementar...”
Assim, podemos afirmar que a limitação da quantidade de administradoras não é uma dúvida, mas uma realidade já confirmada pela SUSEP, mesmo antes da criação das regras pelo CNSP.
Podemos extrair as seguintes implicações desta Restrição:
A abertura de administradoras será altamente controlada pela SUSEP, possivelmente de forma discricionária, criando uma barreira para associações que queiram constituir suas próprias administradoras, concentrando o mercado e reduzindo a concorrência;
O modelo proposto pode excluir a maioria das associações, forçando-as a contratar os serviços das poucas administradoras previamente escolhidas pelo mercado regulado;
As associações que não criarem suas próprias administradoras perderão totalmente a gestão de sua operação;
A limitação no número de administradoras pode beneficiar um seleto grupo de pessoas e empresas, que poderão ter o controle absoluto do setor;
Diante desse cenário, associações que cogitam aderir à regulamentação devem considerar seriamente a viabilidade de constituir suas próprias administradoras, sob pena de perderem completamente sua independência e se tornarem meras intermediárias inertes, de um mercado altamente controlado.