3. ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR ÀS ASSOCIAÇÕES PREEXISTENTES
Considerando a doutrina e a jurisprudência, a aplicação da LC 213/2025 às associações preexistentes deve observar a seguinte distinção entre as normas inaplicáveis retroativamente, a quelas que afetam o ato jurídico perfeito da constituição ou direitos adquiridos essenciais, como a exigência de novos requisitos para a validade da constituição original da associação, determinação de dissolução compulsória por não atender a critérios que não existiam na lei anterior (violaria Art. 5º, XIX e XXXVI, CF/88), alteração forçada da estrutura de governança fundamental definida no estatuto original (ex: número de diretores, órgãos essenciais), se esta era válida anteriormente ou anulação de atos de gestão passados (eleições, contratos) realizados validamente sob a égide da lei e do estatuto anteriores.
Sob o outro aspecto, acerca das normas aplicáveis prospectivamente, aquelas que regulam o exercício futuro da atividade e impõem deveres operacionais contínuos, sem desconstituir o ato original, como a exigência de contratação de uma empresa realizar atos de operação administrativa, a forma de cálculo de rateios ou a aplicação de novas regras de carência para eventos que ocorram após a vigência da lei, mesmo que o associado tenha aderido anteriormente ou a adoção de procedimentos padronizados para atendimento e regulação de eventos, ocorridos após a vigência da lei.
O STF, ao julgar a aplicação de novas regras previdenciárias (Emendas Constitucionais), tem consistentemente decidido que tais regras se aplicam aos benefícios a serem concedidos após a reforma, mas não podem alterar o cálculo ou os requisitos de benefícios para os quais o segurado já havia completado todos os requisitos sob a lei anterior (direito adquirido / ato jurídico perfeito) - v.g., Tema 334 de Repercussão Geral. A lógica é similar: a nova lei regula o futuro, mas não desconstitui o passado consolidado.
Consideremos a hipótese específica de a LC 213/2025 determinar que certas operações administrativas (como análise de eventos, regulação e processamento de pagamentos aos associados ou terceiros) devam ser obrigatoriamente realizadas por empresas terceirizadas especializadas (Administradoras), a partir da data de sua vigência. Como essa norma impactaria as ações e pagamentos já em curso nas associações preexistentes?
Tal dispositivo, a priori, incide sobre o modus operandi da associação, ou seja, sobre a forma de execução de suas atividades administrativas, e não diretamente sobre sua existência, estrutura fundamental ou sobre o direito substantivo do associado de receber a proteção mutualista contratada. Enquadra-se, tendencialmente, como norma de caráter procedimental ou organizacional, cuja aplicação costuma ser imediata. Inquestionavelmente, todos os procedimentos administrativos iniciados após a vigência da LC 213/2025 deveriam seguir a nova regra da administradora (atividades administrativas).
Para os processos administrativos de regulação de eventos ou pagamentos iniciados antes da nova lei, mas ainda não concluídos, a questão se resolve pela aplicação dos princípios do direito intertemporal, frequentemente sintetizados na Teoria do Isolamento dos Atos Processuais (aplicável por analogia a procedimentos administrativos). Conforme essa teoria, a lei nova aplica-se aos atos procedimentais (ou fases) que se realizarem sob sua vigência, respeitando-se os atos já praticados sob a lei anterior. Doutrina Pontes de Miranda que, em matéria de aplicação da lei no tempo, deve-se distinguir o plano da existência, o da validade e o da eficácia, sendo que a lei nova, geralmente, não atinge os dois primeiros se já consolidados, mas pode modular o terceiro (eficácia futura) (Tratado de Direito Privado, Tomo I. Campinas: Bookseller, 2000).
Se um evento ocorreu e foi comunicado à associação antes da LC 213/2025, mas a análise final, a autorização de reparo/indenização ou o processamento do pagamento ocorrem após sua vigência, a tendência é que essas fases finais do procedimento devam observar a nova exigência. O ato de comunicar o evento e iniciar a regulação foi um ato jurídico perfeito sob a lei antiga, mas as fases subsequentes do procedimento administrativo seriam regidas pela lei nova.
Contudo, a aplicação imediata e irrestrita pode gerar disfuncionalidades ou ferir a proteção da confiança legítima e a boa-fé. Se um processo de pagamento estava, por exemplo, na iminência de ser concluído pela própria associação, a exigência de transferi-lo abruptamente para um terceiro poderia causar atrasos injustificados e violar expectativas legítimas do associado. Nesses casos, a própria lei (idealmente por meio de regras de transição) ou a interpretação judicial (baseada na razoabilidade e proporcionalidade) poderiam admitir a ultratividade da norma antiga para a conclusão dos atos iminentes, ou exigir uma transição organizada que não prejudique o associado. O direito substantivo ao recebimento da prestação (se devido) permanece intacto; o que se altera é o procedimento para sua efetivação.
Com entendimento de aplicação de novas leis processuais a processos em curso, aplicando a lei nova aos atos processuais futuros, sem invalidar os já praticados., a lógica pode ser transposta, com as devidas adaptações, para procedimentos administrativos contínuos afetados por nova legislação operacional.
Em suma, a exigência de terceirização, por ser norma de caráter operacional e procedimental, tenderia a ter aplicação imediata aos atos e fases administrativas realizados após a vigência da LC 213/2025, mesmo para eventos iniciados anteriormente, ressalvada a necessidade de observar a razoabilidade, a proteção da confiança e eventuais regras de transição para não gerar prejuízos desproporcionais ou insegurança jurídica na conclusão de procedimentos já em fase adiantada.
4. CONCLUSÃO
Diante da análise sistemática dos preceitos constitucionais, da legislação infraconstitucional, da doutrina especializada e da jurisprudência consolidada, conclui-se, de forma fundamentada, sobre a aplicação da Lei Complementar nº 213/2025 às associações de proteção veicular preexistentes:
A ordem constitucional brasileira, ao consagrar a garantia da irretroatividade da lei em seu Art. 5º, inciso XXXVI, como cláusula pétrea, erige uma barreira intransponível contra modificações legislativas que pretendam desconstituir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. As associações de proteção veicular regularmente constituídas sob a égide da normatividade anterior (CF/88 e Código Civil) têm sua existência, estrutura fundamental e os direitos essenciais daí decorrentes salvaguardados por esta garantia primordial à segurança jurídica.
Destarte, quaisquer dispositivos da LC 213/2025 que visem impor, retroativamente, novos requisitos para a validade do ato constitutivo original, determinar a dissolução compulsória por critérios inexistentes à época da fundação, alterar forçosamente a estrutura de governança basilar definida estatutariamente (e válida sob a lei anterior), ou invalidar atos de gestão pretéritos legitimamente praticados, padecerão de inconstitucionalidade material, por violação direta ao Art. 5º, XXXVI, da CF/88.
Contudo, a proteção às situações jurídicas consolidadas não implica a imunização absoluta das associações preexistentes à incidência de novas normas regulatórias. O princípio do efeito imediato e geral da lei nova (Art. 6º, caput, LINDB) autoriza que a LC 213/2025 discipline o exercício futuro das atividades associativas e os efeitos pendentes de relações jurídicas estabelecidas, desde que não incorra na retroatividade vedada. Assim, as associações preexistentes deverão se conformar às disposições da nova lei complementar que estabeleçam, prospectivamente, novos padrões operacionais e de gestão contínua, obrigações de transparência e prestação de informações aos associados e ao poder público, regras procedimentais para a condução de processos administrativos internos (como a regulação de eventos ou pagamentos), aplicáveis às fases que ocorrerem sob a vigência da nova lei, ressalvada a observância da razoabilidade, da proteção da confiança legítima e de eventuais normas de transição para evitar prejuízos desproporcionais em procedimentos já em fase adiantada.
É imperativo ressaltar que mesmo a aplicação prospectiva da LC 213/2025 encontra limites nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, não podendo inviabilizar ou aniquilar o núcleo essencial do direito fundamental de associação (Art. 5º, XVII-XXI, CF/88) ou da livre iniciativa (Art. 170, CF/88). A regulamentação setorial, embora legítima, deve ser exercida de modo a compatibilizar o interesse público com as garantias individuais e associativas preexistentes.
Em síntese, a obrigatoriedade de cumprimento da LC 213/2025 pelas associações de proteção veicular preexistentes é parcial e prospectiva. Elas estão subordinadas às novas normas que disciplinam a continuidade e o modo de exercício de suas atividades a partir da vigência da lei, mas estão constitucionalmente protegidas contra qualquer aplicação retroativa que atinja seu ato constitutivo válido ou os direitos fundamentais adquiridos sob o regime normativo anterior. A análise concreta da aplicabilidade de cada dispositivo específico demandará a ponderação criteriosa entre o poder regulatório estatal e as salvaguardas constitucionais à segurança jurídica e à liberdade associativa.
Nota
1 Mendes, Gilmar Ferreira; Branco, Paulo Gonet. Série IDP – Linha Doutrina. Curso de Direito Constitucional.14 Ed. Saraiva Jur. P.308.