Capa da publicação Tribunal Branco: a convicção sem provas e o juiz infalível
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A “Síndrome do Tribunal Branco”: crítica à superação dos limites epistêmicos da jurisdição penal

Resumo:


  • A Síndrome do Tribunal Branco é uma preocupação na dogmática penal contemporânea, envolvendo decisões judiciais em contextos de incerteza probatória.

  • Essa síndrome se manifesta quando juízes atuam como se possuíssem percepção perfeita dos fatos, desconsiderando limitações do processo penal e impactando o devido processo legal.

  • A exigência de prova plena e a individualização da pena são requisitos constitucionais essenciais para o exercício legítimo do poder punitivo estatal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Juízes podem condenar sem prova plena, confiando em convicções pessoais de infalibilidade e ignorando a dúvida razoável? A “Síndrome do Tribunal Branco” viola a presunção de inocência e afeta a racionalidade no Tribunal do Júri.

1. Introdução

No campo da dogmática penal contemporânea, verifica-se crescente preocupação com o modo pelo qual os tribunais decidem em contextos de incerteza probatória. Essa inquietação motiva a construção da teoria da “Síndrome do Tribunal Branco”, uma proposta doutrinária que visa diagnosticar uma patologia decisória no processo penal: o abandono das exigências constitucionais de certeza e da prova plena em nome de um suposto “poder cognitivo absoluto” do julgador.

Tal síndrome manifesta-se quando juízes e tribunais atuam como se possuíssem uma percepção perfeita dos fatos, a despeito das limitações materiais e epistêmicas do processo penal. Trata-se, como se verá, de um desvio institucional com severas consequências para o devido processo legal, o contraditório, a presunção de inocência e, de forma ainda mais acentuada, para a individualização da pena e a racionalidade do julgamento pelo Tribunal do Júri.


2. Origem simbólica e conceitual

A expressão “Tribunal Branco” tem inspiração simbólica no Livro do Apocalipse (20:11-12), onde se narra o julgamento final, presidido por um Deus onisciente, onipotente e onipresente, capaz de julgar os vivos e os mortos com plena justiça, conhecendo os corações e intenções humanas. Neste juízo escatológico, não há dúvida, erro, nem equívoco.

Ao contrário da onisciência divina, o processo penal humano é falível, contingente, e limitado por barreiras técnicas, psicológicas, cognitivas e estruturais. O juiz não possui acesso direto à verdade dos fatos, mas deve construí-la por meio de provas admitidas e debatidas em contraditório, dentro das regras do jogo processual.

É precisamente quando o julgador ignora tais limites e decide como se sua percepção fosse infalível — dispensando a necessidade de prova suficiente ou relativizando a dúvida razoável — que emerge a Síndrome do Tribunal Branco: a confusão entre convicção pessoal e certeza jurídica.


3. Fundamento constitucional: presunção de inocência e exigência de prova plena

A Constituição Federal de 1988 estabelece, como regra matriz do processo penal, a presunção de inocência:

Art. 5º, LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Esse postulado impõe, como corolário, o ônus da prova ao Estado-acusador, e exige que a condenação penal esteja fundada em prova suficiente e válida quanto à autoria e à materialidade do delito.

A exigência de prova plena é, portanto, requisito legal e constitucional para o exercício legítimo do poder punitivo estatal.

Como adverte Luigi Ferrajoli:

“O garantismo penal exige que a condenação penal se funde em uma verdade processual construída mediante provas legalmente válidas e debatidas contraditoriamente.”

(Direito e Razão, RT, 2002, p. 612).

A jurisprudência reitera esse entendimento:

“A regra constitucional da presunção de inocência exige prova cabal da autoria delitiva. Na dúvida, absolve-se.”

HC 84.078/MG, STF, Rel. Min. Eros Grau, j. 05.02.2009

“A condenação penal exige prova robusta e incontroversa. A dúvida razoável impõe absolvição.”

HC 180.144/SP, STJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26.10.2021


4. A irracionalidade decisória no Tribunal do Júri

O problema da Síndrome do Tribunal Branco se agrava no Tribunal do Júri, dada sua estrutura peculiar: composto por jurados leigos, sujeitos a apelos emocionais e sem domínio técnico do direito penal e processual penal.

A crítica doutrinária à ausência de fundamentação das decisões do Júri é antiga. Os jurados julgam com base em íntima convicção, manifestando-se apenas com um “sim” ou “não” a quesitos formulados. Como observa Alexandre Morais da Rosa:

“A íntima convicção dos jurados, dissociada da racionalidade argumentativa, potencializa decisões baseadas em emoções, preconceitos e arbitrariedades.” (Jurisdição e Processo Penal, 5ª ed., São Paulo: Empório do Direito, 2021, p. 210)

Além disso, o plenário do Júri é palco de dramatizações, recursos retóricos e estratégias teatrais que, por vezes, afastam a racionalidade probatória. O julgador não técnico pode se impressionar com a narrativa acusatória, mesmo que fragilmente instruída.

O STF já reconheceu essa fragilidade:

“ O veredicto do Tribunal do Júri, ainda que soberano, não está imune ao controle jurisdicional quando manifestamente contrário à prova dos autos.”

HC 139.963/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.02.2018


5. Falta de individualização da pena como sintoma da síndrome

Outro traço marcante da Síndrome do Tribunal Branco é a deficiência na individualização da pena, especialmente no contexto do Júri. Após o veredicto condenatório, o juiz togado deve aplicar a pena com base nos critérios do art. 59. do Código Penal. Contudo, o veredicto genérico do conselho de sentença limita a atuação do juiz, que muitas vezes aplica penas padronizadas, sem consideração das circunstâncias reais do caso.

Essa ausência de análise criteriosa e motivada viola frontalmente os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena:

Art. 5º, XLVI, CF – “a lei regulará a individualização da pena [...]”

A jurisprudência reforça essa exigência:

“A individualização da pena é garantia constitucional e exige a consideração das peculiaridades concretas do réu e do fato criminoso.”

STJ, HC 380.315/SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 09.11.2017

Assim, a imposição de sanções penais com base em juízos genéricos, sem análise adequada da culpabilidade, da motivação ou das circunstâncias do crime, constitui mais um reflexo da atuação judicial contaminada pela Síndrome do Tribunal Branco.

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6. Diagnóstico e consequências da síndrome

A Síndrome do Tribunal Branco se manifesta, em síntese, nas seguintes condutas judiciais:

  • Condenações com base em provas frágeis, como meros indícios ou confissões isoladas;

  • Desconsideração do contraditório, com base em elementos produzidos na fase inquisitorial;

  • Inversão do ônus da prova, exigindo do réu a demonstração de inocência;

  • Ignorância da dúvida razoável, substituída por uma convicção pessoal inabalável;

  • Sentenças que não individualizam a pena, desconsiderando o art. 59. do CP;

  • Submissão da decisão a componentes emocionais e retóricos, típicos da dinâmica do Júri.

Essas práticas comprometem a legitimidade do processo penal e violam frontalmente as garantias constitucionais do réu.


7. Conclusão: por um paradigma de autocontenção cognitiva

A Síndrome do Tribunal Branco é um desvio institucional que precisa ser combatido com rigor. Juízes e jurados não são deuses, e o processo penal não é um oráculo: exige prova, contraditório e racionalidade. A função do julgador não é adivinhar a verdade, mas verificar se ela foi demonstrada dentro dos limites legais.

No Tribunal do Júri, em especial, essa crítica deve ser ainda mais enfática: o risco de condenações emocionais, punitivismo simbólico e penas não individualizadas exige controle judicial reforçado, sob pena de erosão da segurança jurídica e da confiança pública no sistema de justiça.

A construção doutrinária aqui proposta busca justamente servir como instrumento teórico de diagnóstico — e de resistência — diante da tentação inquisitória travestida de julgamento popular. A legitimidade do sistema penal reside na razão, não no clamor.


Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.

FERREIRA, Nereu José Giacomolli. Sistema Acusatório: Entre o Modelo Constitucional e a Realidade Brasileira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

GOMES, Luiz Flávio. Curso de Direito Processual Penal. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Jurisdição e Processo Penal: Entre Inquisição e Garantismo. 5. ed. São Paulo: Empório do Direito, 2021.

STF – Supremo Tribunal Federal. HC 84.078/MG, Rel. Min. Eros Grau, j. 05.02.2009.

STF – Supremo Tribunal Federal. HC 139.963/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.02.2018.

STJ – Superior Tribunal de Justiça. HC 180.144/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 26.10.2021.

STJ – Superior Tribunal de Justiça. HC 380.315/SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 09.11.2017.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS JÚNIOR, Raimundo Wilson Pereira. A “Síndrome do Tribunal Branco”: crítica à superação dos limites epistêmicos da jurisdição penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7956, 13 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113518. Acesso em: 24 abr. 2025.

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