Quando a autoridade policial tem conhecimento da prática de uma infração penal (ou comumente determinada como "a violação do dever de abstenção da conduta proibida" (1)), eis que emerge o dever de se realizar a perfeita subsunção, ou o devido correlato do que se perquire primordialmente como persecutio criminis.
É neste itere que surge para o Delegado (representante da Polícia Judiciária, no que concerne à fase investigatória da persecução criminal - a propósito vide o que aludem os arts. 4º. do Estatuto Processual Repressivo Pátrio e 144º., §4º. da Lex Suprema), o compromisso de diante da notitia criminis optar pelos caminhos que lhe aprouver: a elaboração do Termo Circunstanciado de Ocorrência para os casos concernentes à Lei nº. 9.099/1995; confecção de Boletim Circunstanciado de Ocorrência ou Auto de Apreensão se tratar de adolescentes em pleno cometimento de ato infracional e conforme a violência transcrita; e dentre inúmeras hipóteses (a exemplo do Auto de Apresentação Espontânea), a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito (talvez a mais importante devido a seus relevos e implicações).
Sem embargo do que venham a ser os chamados "estados de flagrância" (2), e sob os quais manifesta-se metaforicamente Carnelutti, como sendo "a chama que denota com certeza a combustão; quando se vê a chama, é certo que algo queima" (3), devemos ressaltar que a Autoridade Policial ao deparar-se com a presente situação, há de se portar e conduzir o mesmo sob os ditames e formalidade constantes do Código de Processo Penal (arts. 301º. a 310º.), bem como os que concernem à Carta Magna (e comumente denominados de garantias constitucionais) (4).
E quando a Autoridade Policial finda por "burlar a lei" infringindo alguns destes precitos ora mencionados? A questão é de simples e célere solução: caberá a parte sobre a qual recai o damnum impetrar o competente Habeas Corpus, instrumento de tutelas e garantias constitucionais ativas consagrado aos moldes da Lex Major de 1988 em seu excerto 5º., item LXVIII.
A propósito eis o que reza a Lei Adjetiva Penal, in verbis, quando ao consagrar o referido remédio jurídico finda por incorporá-lo ao art. 647º.: "Dar-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer o se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar".
E ainda: art. 648º. do diploma legal em exame: "A coação considerar-se-á ilegal: I - quando não houver justa causa; II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei autoriza; VI - quando o processo for manifestamente nulo"(sic).
Ex positis, cumpre-nos salientar que a enumeração existente neste artigo não é taxativa e sim enumerativa, admitindo a extensão deste instrumento a diversas hipóteses, como bem dispõe o eminente jurista Vicente Greco Filho: "A enumeração, cujos termos estão susoexpostos, não é taxativa...Não só porque a falta de "justa causa" que é prevista no inciso I é suficientemente ampla para abranger outros casos não previstos, mas também porque qualquer restrição que pretendesse a lei ordinária fazer seria inconstitucional, em face da amplitude do texto da Carta Magna" (5).
Ademais, é evidente que o Delegado ao lavrar o Auto de prisão em Flagrante Delito, deverá segundo orientação da própria Lex Suprema (art. 5º., LXII), encaminhar cópia do mesmo ao Ilustre Magistrado para que, sob seu crivo (e porque não afirmar, da Justiça), esteja caracterizado, de fato, "...o estado de flagrância e a veracidade da custódia cautelar" (6). In casu, se a ilegalidade da prisão for manifesta, e mesmo assim o Magistrado se desaperceber da mesma?
É mister advir que cabível será o Habeas Corpus. Mas figurando quem como Autoridade Coatora? a autoridade policial? a autoridade judicante? o Tribunal?
Segundo entendimento do célebre doutrinador Hélio Tornaghi, "...comunicada a prisão ao Juiz, o preso passa a ficar à sua disposição. Se for ilegal, deve, de imediato relaxá-la, sem que tal providência implique concessão de habeas corpus, pois se o preso lhe fica a disposição, é como se o ato ilegal partisse do próprio Juiz, e como não teria sentido pudesse este conceder habeas corpus contra si próprio, diz-se que o relaxamento de prisão, em casos tais não implica aquele remédio heróico" (7). Aconteceria o fenômeno vulgarmente denominado de relaxamento de prisão.
Cita Fernando da Costa Tourinho Filho: "...relaxando a prisão, cuja comunicação se fez por meio de envio da cópia do respectivo auto, o Juiz, faça-o de ofício ou mediante pedido de interessado, estará cumprindo imperativo constitucional..." (8). A propósito, constitui princípio basilar dentre os descritos à Carta Magna de 1988, e que velam pela garantia da liberdade individual, o princípio da legalidade da prisão (art. 5º., LXV).
Entretanto, caso o Magistrado, ao receber a cópia do Auto de Prisão em Flagrante Delito, profira despacho no sentido de que aguarde-se em cartório a vinda dos autos de inquérito após conclusos, a questão muda de aparência, pois nesta hipótese, e ao verificar que o preso está à sua disposição, nota-se que o Juiz transmuda-se em verdadeira autoridade coatora. In casu, qualquer pessoa do povo (9) poderá impetrar o remedium juris.
Nesta ótica, e segundo a lição de Afrânio Silva Jardim, ocorreria o fenômeno da jurisdicionalização da coerção, em que "...o Magistrado ao receber a cópia do Auto de Prisão em Flagrante Delito e não evidenciando a manifesta, ou não, ilegalidade, finda por "avocar" o feito para si, passando a figurar como autoridade coatora em um possível Writ" (10). É um coroamento indireto do ao status libertatis. A Autoridade Policial quiçá poderá ser elevada como Autoridade Coatora.
Aliás, o Juiz que toma conhecimento de prisão ilegal e não relaxa pratica abuso de poder, pois, como bem alude o Professor Geraldo Batista de Siqueira, "a lei nº. 4.898/1965, em seu art. 4º. Prevê a configuração do crime de abuso de autoridade para a conduta do Magistrado que mantiver detenção ilegal. ‘Constitui Abuso de Autoridade deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada" (11).
Assim sendo, é de se notar que sobredita opinião vem rompendo barreiras e ganhando espaço junto à jurisprudência, senão vejamos: "Se o Juiz recebeu os autos da prisão em flagrante e os mandou com vista ao Ministério Público obviamente aceitou-a como legítima. Se assim não a reputasse, caber-lhe-ia relaxá-la, consoante o art. 153º., §12º. da Lex Major" (Relator Ministro Alfredo Buzaid/STF, RHC 60.217-7-RO, 8.10.1982).
Mesmo assim, persiste uma dúvida: junto a quem devo propor o Writ? Diante dos fatos ora colacionado é eficaz interpô-lo perante o Tribunal Competente e não ao Magistrado. É o que recomenda a boa técnica jurídica.
- "Com a infração do dever de abstenção da conduta proibida, eis que surge a imposição da sanção e a realização do que efetivamente dispõe o preceito, tendo em vista que sem ela - a sanção -, a transgressão ficaria imune à atuação do Estado", Vincenzo Manzini, in Trattato de Diritto Processuale Penale Italiano, Torino, Torinese, 1943.
- Na lição de Francesco Carrara, em sua célebre obra Programa de Derecho Criminal (trad. Ortega Torres), I. Bogotá, Temis, 1971.
- Principios del Processo Penal, tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1971.
- Dos quais citam-se: o de ser assistido por um advogado durante seu interrogatório se assim o desejar; o de ter sua prisão comunicada à sua família ou pessoa indicada; o de permanecer calado somente manifestando-se em Juízo; de ter respeitada sua integridade física e moral...
- Manual de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1996.
- Romeu Pires de Campos Barros, Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro, Forense, 1984.
- Manual de Processo Penal, v.1., São Paulo, Justitia, 1979.
- Processo Penal, v. IV, São Paulo, Saraiva, 1997.
- Nada impede que os Delegados de Polícia impetrem Habeas Corpus. Não como Autoridade, mas, ut civis, como cidadão. Nesse sentido, veja-se a RT, 545/438.
- Direito Processual Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1995.
- Audiência do Ministério no Auto de Prisão em Flagrante, RT, 579:278.